China faz contas: o alívio das medidas anti-covid poderá provocar milhares de mortos?

5 dez 2022, 06:45

Dezenas de cidades, incluindo Pequim e Xangai, anunciaram fim da testagem generalizada e possibilidade de quarentena em casa. Mas o fim súbito da política de covid zero pode ter um impacto avassalador. Estudos apontam até mais de 2 milhões de mortes

Numa semana, quase tudo mudou. Depois dos grandes protestos populares do último fim de semana de novembro contra a política de covid zero do governo chinês, as grandes cidades chinesas, e algumas das regiões onde as restrições anti-covid mais pesaram sobre o dia a dia das populações, estão a aliviar as medidas, acabando com a quarentena obrigatória indiscriminada para milhões de pessoas e com obrigatoriedade de testes diários ou dia sim dia não. Oficialmente, a política de covid zero mantém-se em vigor; na prática, quase tudo está a mudar desde a vaga de manifestações que abalou o país.

Nos últimos dias, mais de uma dezena de cidades por toda a China suavizaram as medidas anti-covid (“optimizaram”, segundo a linguagem oficial). Esta segunda-feira, foi a vez de Xangai, o coração financeiro da China: ao fim da tarde de domingo, as autoridades de Xangai anunciaram que a partir de hoje deixa de ser obrigatório ter um teste negativo de PCR com menos de 48 horas para andar de transportes públicos ou aceder a alguns locais ao ar livre, como parques públicos. Segundo o mesmo comunicado, as medidas "continuarão a ser optimizadas e ajustadas" em conformidade com a política nacional e a situação.

Xangai, que na primavera se tornou um símbolo da política de covid zero, com 25 milhões de cidadãos praticamente em prisão domiciliária durante dois meses, foi a última grande cidade chinesa a aligeirar algumas medidas de controlo da epidemia. A grande metrópole financeira foi também um dos locais onde as manifestações de final de novembro foram mais visíveis, e onde a polícia tomou medidas mais musculadas para reprimir os protestos, bloqueando ruas e inspecionando indiscriminadamente os telemóveis dos transeuntes. 

Hangzhou, capital da província de Zhejiang, perto de Xangai, tomou decisões semelhantes, e acrescentou que deixa de ser obrigatório apresentar teste negativo para comprar determinados medicamentos. Em Hangzhou fica a sede do gigante tecnológico chinês Alibaba.

Desde o final da semana passada, grandes cidades como Pequim, Shenzhen e Cantão começaram a relaxar as políticas anti-covid. O primeiro passo foi dado pelas autoridades de saúde nacionais, que admitiram erros na implementação das políticas de covid zero, devido a excessos por parte dos responsáveis locais. Depois disso, a vice-primeira-ministra Sun Chunlan, que supervisiona a resposta nacional à pandemia, reconheceu aquilo que os governos de todo o mundo assumiram há bastantes meses: que o vírus se tornou menos agressivo e que a vacinação protege as populações, por isso é possível viver com o covid - “Com o decréscimo da perigosidade da variante Ómicron, a crescente taxa de vacinação e a experiência acumulada de controlo e prevenção de surtos, a contenção da pandemia na China enfrenta uma nova fase e missão", disse a vice primeira-ministra, citada meios de comunicação estatais.

Por fim, o próprio Xi Jinping, o homem que desenhou e impôs a política de covid zero, admitiu - embora não publicamente - que é hora de a China mudar de atitude em relação à pandemia. Na sexta-feira, num encontro em Pequim com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, o líder chinês terá admitido que os protestos massivos de jovens chineses é um sintoma da frustração popular ao fim de quase três anos de pandemia, e reconheceu que a variante Ómicron, agora dominante, é menos severa, o que abre caminho a menos restrições. Não há registo dessas palavras de Xi, nem estas foram assumidas pela comunicação social oficial chinesa, mas o relato do encontro feito pelo lado europeu não mereceu qualquer reparo por parte de Pequim.

O reconhecimento de que a variante Ómicron, que se tornou dominante no início deste ano, impõe menos cuidados do que as variantes anteriores é a principal mudança destes dias na atitude de Pequim face à pandemia. O resto do mundo já havia chegado a essa conclusão, e também já havia reconhecido que a Ómicron é bastante mais contagiosa do que as anteriores variantes dominantes - ou seja, não faz sentido a pretensão de evitar o contágio por um vírus que se dissemina muito facilmente, mas em contrapartida não tem consequências tão sérias. Mas só recentemente as autoridades chinesas começaram a relativizar os perigos da Ómicron, forçadas a isso por uma vaga de contestação popular sem precedentes nas últimas décadas. Mas trata-se de uma mudança radical, num país onde o discurso oficial sobre a covid se tem baseado no medo.

Possibilidade de fazer quarentena em casa

 O fim da obrigatoriedade de testes PCR frequentes é uma das alterações mais significativas dos últimos dias. Cidades como Zhuhai, na província de Cantão, no Sul da China, ou Chongqing, no Sudoeste, anunciaram que os residentes só terão de fazer testes caso seja necessário - ou seja, em caso de contacto direto com alguém que testou positivo, ou se apresentar sintomas de covid. 

Diversas cidades e regiões evoluíram ao ponto de permitir que quem teste positivo mas não tenha sintomas possa ficar em quarentena em casa. Essa é a nova regra em rigor desde sexta-feira nalguns bairros de Pequim, cujas autoridades locais colocaram online instruções sobre como fazer quarentena em casa - um passo que marca uma mudança radical num país onde a regra era o confinamento em centros de quarentena, não apenas para os casos positivos e seus contactos diretos mas, em muitos casos, até para quem tinha simplesmente o azar de habitar num prédio com casos positivos.

Em consequência das novas políticas, nalgumas zonas de Pequim aconteceu a desativação de postos de testagem, e sua remoção da via pública. Os mesmos postos de testagem onde, há poucos dias, centenas de pessoas faziam longas filas para cumprirem a obrigação de se submeter ao teste que lhes permitiria fazer coisas tão básicas como sair à rua e ir ao supermercado ou à farmácia.

Há suspeitas de que, em muitos casos, os contágios poderão ter acontecido enquanto as pessoas esperavam ao longo de horas em longas filas para poderem fazer os testes obrigatórios. No sábado, as autoridades do distrito de Chaoyang, em Pequim - uma das áreas da capital mais atingidas pelo atual surto - lamentaram "profundamente" a coordenação inadequada que levou a tempos de espera excessivamente longos.

Urumqi permitiu passeios… numa rua da cidade

As restrições também estão a ser aligeiradas noutros pontos da China que foram notícia global nas últimas semanas. É o caso da cidade de Zhengzhou, onde fica a maior fábrica de iPhones do mundo. Desde ontem acabou a testagem geral obrigatória para as pessoas poderem usar os transportes públicos e entrar em diversos locais públicos.

Urumqi, a cidade onde começou a vaga de manifestações, depois de um incêndio ter matado 10 pessoas num prédio que estava sob quarentena, reabriu uma rua neste domingo, para que as pessoas possam passear. As estâncias de esqui também foram reabertas. E a partir de hoje os hotéis, restaurantes, supermercados e outros locais de uso público, como ginásios, também retomarão a atividade normal. Segundo a autarquia, o metro também vai voltar a funcionar. Em comunicado, as autoridades consideram que há condições para abandonar as regras mais restritivas que estavam em vigor - há casos de zonas da cidade que estavam sob lockdown total há dois meses, e outras onde a proibição total de circulação já durava há mais de cem dias.

Em Wuhan, onde o vírus surgiu pela primeira vez há quase três anos, também deixará de ser necessário teste para andar de metro, e os autocarros vão voltar a circular.

Qual o impacto da reabertura?

Os observadores veem estes passos como indício de que Pequim quer uma forma de deixar para trás a política de covid zero, embora esta permaneça em vigor. "Vemos sinais claros de que o governo chinês procura uma saída, e tenta minimizar, entretanto, o custo económico e social do controlo da covid", escreveu o economista-chefe do grupo Goldman Sachs Group na China, numa análise citada pelo  Japan Times.

Para Xi Jinping o ponto essencial das medidas anti-covid sempre foi evitar mortes, e Pequim tem apresentado esse indicador como a prova do seu sucesso: a China tem registo de menos de 6 mil mortes devido a covid, valor que contrasta com mais de um milhão nos Estados Unidos. Contudo, o levantamento da política de covid zero será o momento mais crítico do desempenho do país nesta pandemia.

Uma reabertura total e acelerada, parecida com aquilo que Hong Kong tentou fazer no primeiro semestre deste ano, poderia provocar entre 1,3 milhões e mais de 2 milhões de mortes, de acordo com cálculos dos cientistas.

Segundo a agência Reuters, Zhou Jiatong, diretor do Centro para controlo de Doenças de Guangxi, no sudoeste da China, é um dos estudiosos com uma perspetiva menos otimista. Num artigo publicado no mês passado pelo Shanghai Journal of Preventive Medicine, calculou que uma reabertura da China parecida com a que Hong Kong tentou terá como consequência mais de 233 milhões de infeções - e mais de 2 milhões de mortes.

De acordo com outro cálculo, a China poderá ver morrer 1,3 milhões a 2,1 milhões de pessoas se levantar a sua política de covid zero - as contas são da empresa britânica de informação científica e de análise Airfinity, também citada pela Reuters. As contas, neste caso, foram modeladas segundo os dados de Hong Kong em fevereiro passado, já com a Ómicron como variante dominante. Porquê valores tão altos de vítimas? Segundo a empresa, devido às baixas taxas de vacinação e de reforço entre os mais idosos, mas também por causa da falta de imunidade natural - ao contrário da maioria dos países, na China a população quase não esteve exposta ao vírus, por isso não desenvolveu anticorpos de forma natural.

Por fim, num estudo publicado em maio na Nature Medicine, cientistas chineses e norte-americanos estimaram que a China corre o risco de ter mais de 1,5 milhões de mortes por covid se abandonar a política de covid zero sem por em prática outras salvaguardas, tais como o aumento da vacinação ou um melhor acesso a tratamentos. Segundo os autores do estudo, o crescimento da procura de cuidados intensivos seria mais de 15 vezes superior à capacidade, resultando daí a estimativa de 1,5 milhões de mortes.

Esta é a principal preocupação das autoridades chinesas: a resiliência do sistema de saúde caso surja de repente uma grande quantidade de infeções - a probabilidade é que, dessa vaga, resulte também um número elevado de pacientes com doença grave, e há dúvidas sobre se a rede de unidades de cuidados intensivos da China estará preparada para um súbito aumento da procura de UCI.

Segundo um artigo publicado no ano passado pela Escola de Saúde Pública Fudan, de Xangai, a China tinha 4,37 camas de UCI por 100.000 pessoas em 2021, em comparação com 34,2 nos Estados Unidos em 2015. Para além disso, há dúvidas sobre a capacidade do sistema de saúde da China para lidar com um grande surto de casos de covid pelo facto de os recursos médicos estarem distribuídos pelo país de forma bastante desigual.

Mudanças mais profundas só na primavera

Muitos analistas duvidam que exista uma efetiva reabertura até finais Março. Para evitar a chamada “dupla epidemia” de inverno (ou seja, o efeito combinado da covid mais a gripe) e também para dar tempo para melhorar a taxa de vacinação entre a população mais idosa. O governo central anunciou na semana passada uma nova campanha de vacinação dirigida aos idosos.

Os dados oficiais dizem que mais de 90% dos 1,4 mil milhões de chineses estão totalmente vacinados, o que coloca a China numa boa posição a nível global. Porém, a taxa de vacinação diminui com a idade, e é particularmente baixa entre os mais velhos, sobretudo nas pessoas com mais de 80 anos de idade. Nesta faixa etária, apenas 65,8% das pessoas têm duas doses, e apenas 40% receberam as vacinas de reforço (terceira e quarta dose). 

Outro problema: só vacinas chinesas

E há outra preocupação adicional: a China só permite a vacinação com fármacos chineses, cuja eficácia é mais baixa do que a das vacinas ocidentais com tecnologia de RNA mensageiro. E nada incida que Xi Jinping esteja disponível para mudar essa política. 

Este fim de semana Avril Haines, diretora da National Intelligence  norte-americana (Serviço Nacional de Informações dos EUA) garantiu que Xi não está disposto a aceitar vacinas ocidentais apesar dos desafios que a China enfrenta com a covid-19. Xi, disse Haines, "não está disposto a aceitar uma vacina melhor do Ocidente, e em vez disso confia numa vacina chinesa que não é tão eficaz contra a Ómicron".

Segundo a Casa Branca, a China nunca fez qualquer pedido de vacinas aos Estados Unidos, nem há “qualquer expectativa" de que Pequim venha a aprovar vacinas ocidentais. Um responsável norte-americano ouvido pela Reuters considerou que seria "bastante rebuscado que a China desse dar luz verde às vacinas ocidentais neste momento. É uma questão de orgulho nacional, e eles teriam de engolir bastante se fossem por aí."

Segundo Avril Haynes, Washington não vê os protestos contra as políticas de covid como “uma ameaça à estabilidade [do regime chinês] neste momento, [que possa provocar] uma mudança de regime ou algo do género". Mas acrescentou que "a forma como se desenvolve [a gestão da pandemia] será importante para a posição de Xi".

Daí a cautela com que Pequim tem gerido este dossiê e o cepticismo de alguns observadores perante os anúncios de levantamento de restrições. "Nada disto deve ser interpretado como uma mudança fundamental em relação à política de covid zero, mas antes como um esforço para a tornar mais racionalizada e menos dispendiosa. O objectivo continua a ser o de conseguir que os casos voltem perto de zero", considera a Capital Economics, consultora de análise económica baseada em Londres. 

"A alternativa de deixar o vírus propagar-se amplamente antes que mais idosos sejam vacinados e a capacidade dos cuidados de saúde tenha sido aumentada resultaria numa taxa de mortalidade mais elevada do que em muitos países asiáticos que reabriram mais cedo, minando o sucesso da China em termos de covid zero", concluem os analistas britânicos.

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