China 'namora' a Alemanha para dividir europeus e americanos

21 dez 2022, 03:56
“Ameaças nucleares são irresponsáveis e altamente perigosas”. Scholz pede a Xi que use influência sobre a Rússia

Presidente chinês apela a Berlim para que resista à “interferência de terceiros” na relação com Pequim - uma referência às pressões dos EUA para que a Europa seja mais cautelosa na relação com a China

O presidente chinês, Xi Jinping, exortou o seu homólogo alemão para que a China e a Alemanha melhorem as relações entre os dois países, sem “interferência de terceiros” - uma referência velada às pressões dos Estados Unidos para que os países da União Europeia sejam cada vez mais cautelosos no relacionamento com Pequim.

O telefonema de Xi para Frank-Walter Steinmeier, presidente alemão, aconteceu no mesmo dia em que a diplomacia norte-americana avisou que a China e a Rússia estão a afinar estratégias para dividir os países ocidentais, nomeadamente aqueles que fazem parte da NATO. Julianne Smith, embaixadora dos Estados Unidos para a segurança na NATO, disse ontem ao Financial Times que “os dois [China e Rússia] estão cada vez mais a partilhar estratégias que devem preocupar a Aliança Atlântica”. A diplomata citou uma série de áreas em que os regimes de Putin e Xi estão cada vez mais alinhados no sentido de prejudicar as democracias ocidentais, desde as redes e fornecimento de energia até à cibersegurança, e alertou que os aliados da NATO devem intensificar os esforços para se defenderem de Moscovo e Pequim.

Nem de propósito, poucas horas depois da publicação da responsável norte-americana, Xi louvou a “autonomia estratégica da União Europeia”, a exortou os alemães a libertarem-se da “influência de terceiros”. "A China apoia a autonomia estratégica da UE e espera que o lado europeu adira ao posicionamento básico da China e da Europa como parceiros estratégicos (…) e ao princípio de que as relações China-UE não são visadas, não dependem, nem estão sujeitas a terceiros", disse Xi, citado pela televisão oficial chinesa.

Numa altura em que se adensa a guerra tecnológica entre os EUA e a China, com a Administração Biden a cortar o acesso dos chineses aos semicondutores mais sofisticados de fabrico norte-americano, e a pressionar os aliados europeus e asiáticos a fazer o mesmo, Xi foi também citado pela CCTV dizendo ao seu homólogo alemão que a China espera que a Alemanha proporcione um ambiente operacional justo, transparente e não discriminatório para as empresas chinesas na Alemanha, o maior mercado da UE. "Liderar o desenvolvimento saudável e estável das relações China-UE é uma direção para a qual a China e a Alemanha devem trabalhar em conjunto".

O interlocutor de Xi, o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier, foi no passado um dos grandes entusiastas do aprofundamento do relacionamento da Alemanha com a Rússia, ignorando os avisos sobre os riscos que o seu país correria ao tornar-se dependente, por exemplo, da energia russa. Este passado de Walter Steinmeier foi uma das razões por que Volodymyr Zelensky se recusou, no início da guerra, a receber em Kiev o chefe do estado alemão. Quando era ministro, nos governos de Gerhard Schröder e de Angela Merkel, Walter Steinmeier era um dos entusiastas do projeto NordStream - algo que reconheceu entretanto ter sido um erro.

Pequim e Moscovo partilham “táticas híbridas”

Os apelos de Xi ao seu homólogo alemão coincidem também com o cerco norte-americano ao TikTok, a rede social chinesa de partilha de vídeos que Washington suspeita que será usada para roubo de informação e manipulação da opinião pública ocidental por parte das autoridades de Pequim.

Segundo Julianne Smith, “não há dúvida de que a China e a Rússia estão a trabalhar para dividir os parceiros transatlânticos”, e esses esforços passam também por “partilhar táticas híbridas”: "Acho que a China observa de perto como a Rússia depende de desinformação e coisas como coerção ou segurança energética, e operações cibernéticas malignas ou maliciosas.” 

“Agora [que] estamos muito conscientes [destas táticas], todos temos uma visão mais profunda desses esforços e pretendemos abordá-los”, prometeu a diplomata ligada à NATO.

Em junho, numa cimeira histórica em Madrid, que contou também com a presença do Japão e da Coreia do Sul, a Aliança reconheceu pela primeira vez que a China é um “desafio” e uma das suas prioridades estratégicas para a próxima década, afirmando que as políticas de Pequim desafiam os "interesses, segurança e valores" dos países da NATO. No mês passado, numa cimeira de ministros dos Negócios Estrangeiros, em Bucareste, os Estados-membros aceitaram discutir medidas concretas para abordar os desafios colocados pela China, após grande pressão norte-americana.

"A China não é o nosso adversário", disse em Madrid o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, "mas temos de estar atentos aos sérios desafios que representa". "A China está a reforçar substancialmente as suas forças militares, incluindo armas nucleares, a intimidar os seus vizinhos, a ameaçar Taiwan (...) a acompanhar e controlar os seus próprios cidadãos através de tecnologia avançada, e a espalhar mentiras e desinformação russas", acusou Stoltenberg em declarações à comunicação social.

Alemanha, o amigo de negócios

Apesar deste reconhecimento coletivo, a Alemanha tem-se destacado pela forma como tenta aprofundar as relações económicas com a China, para defender os seus interesses naquele país, que é o maior parceiro de negócios das empresas alemãs.

E não estão apenas em causa os negócios de milhões de empresas de setores tão diversos como a indústria automóvel, maquinaria ou farmacêutica - também o Estado alemão tem insistido em abrir portas à China. No mês passado, o chanceler Olaf Scholz foi o primeiro líder europeu a deslocar-se a Pequim desde o início da pandemia de covid-19, fazendo-se acompanhar de uma grande delegação empresarial com fortes interesses na China. Como prova de boa vontade face ao seu interlocutor chinês, antes da visita oficial Scholz afrontou a opinião de reguladores e de seis ministros do governo alemão, insistindo em entregar a investidores chineses parte da exploração do porto de Hamburgo, uma infraestrutura estratégica para a Alemanha e para a Europa.

Scholz consegue uma vacina na China

E, durante essa viagem, Scholz e os empresários que o acompanhavam assinaram diversos negócios, tendo-se destacado um em particular: o chanceler assegurou que a vacina contra a covid-19 produzida pela farmacêutica alemã BioNTech seria administrada a cidadãos alemães residentes na China - um acordo de curto alcance, mas notável, tendo em conta que Pequim só permite a utilização de vacinas produzidas por fabricantes chineses. A BioNTech tornou-se, assim, o primeiro fabricante não-chinês a conseguir aprovação da sua vacina contra a covid-19 por parte das autoridades chinesas - uma enorme vantagem no caso de a China vir a autorizar vacinas de outros países, tendo em conta as dificuldades que está a enfrentar na gestão da pandemia.

Numa análise à viagem do chanceler a Pequim, o Wall Street Journal escreveu que “Olaf Scholz deixou que o foco nos laços comerciais prevalecesse sobre as chamadas para manter a distância em relação à China, fazer das preocupações com os direitos humanos uma prioridade, e apertar Pequim na sua relutância em condenar a guerra da Rússia na Ucrânia.” 

Quase ao mesmo tempo que Scholz apertava a mão a Xi Jinping no Grande Salão do Povo, o secretário de Estado norte-americano Anthony J. Blinken dizia, no final de uma reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do G7 (na cidade alemã de Munique): "Nós [G7] estamos de olhos bem abertos quanto à necessidade de nos alinharmos com a China". E não faltaram, mesmo no Parlamento alemão, vozes a criticar Scholz pela “atitude quase submissa” em relação a Xi.

Berlim ainda mais dependente da Huawei

Mas nem as críticas internas, nem os avisos dos parceiros, nem as lições dos negócios energéticos de Berlim com Moscovo, parecem travar o aprofundamento da ligação da Alemanha com a China. Na semana passada, soube-se que a rede alemã de G5 é ainda mais dependente do gigante chinês Huawei do que a infraestrutura de G4. No meio de uma intensa pressão diplomática por parte dos Estados Unidos, muitos países europeus afastaram totalmente, ou em parte, as empresas chinesas de telecomunicações das suas redes de 5G, por razões de segurança. Mas não a Alemanha.

Segundo dados da consultora de telecomunicações Strand Consult, a Huawei representa 59% da rede de 5G da Alemanha - ou seja, equipou e instalou as estações de base e infraestruturas relacionadas que ligam os smartphones à rede. Um peso superior àquele que a Huawei já tinha nas redes de 4G alemãs - a marca chinesa tinha 57% das redes 4G, agora subiu a sua quota em dois pontos percentuais, o que aumenta ainda mais a dependência alemã em relação ao gigante chinês numa infraestrutura crítica.

"Há indicações de que a Alemanha não levou a sério a ameaça de segurança que a China representa", diz o estudo, consultado em primeira mão pela agência Reuters. O documento faz comparações com o gasoduto NordStream 2, que desde o início foi apontado por diversos críticos (incluindo Donald Trump) como um risco de segurança, por tornar a Alemanha dependente da energia russa. Berlim jurava que Putin nunca iria usar a energia como arma, mas é isso mesmo que tem acontecido desde a invasão da Ucrânia.

"É mais perigoso estar dependente das redes de telecomunicações chinesas do que estar dependente do gás russo", afirma John Strand, fundador da consultora baseada em Copenhaga. “A infraestrutura digital é o fundamento da sociedade", enfatizou o consultor, citado pelo jornal Politico. 

A conclusão de Strand é que "é mais fácil pregar do que praticar" - ou seja, os governos da UE continuam a hesitar na hora de levantar barreiras efetivas à utilização de equipamento de telecomunicações chinês, mesmo em infraestruturas críticas como a rede de 5G, que servirá todos os cidadãos, mas também os departamentos governamentais e o aparelho de segurança e Defesa.

UE critica riscos da Alemanha no G5

A dependência alemã em relação à China na infraestrutura de G5 já mereceu críticas da Comissão Europeia.  "Não é só a Alemanha, mas é também a Alemanha", disse no mês passado a comissária europeia Margrethe Vestager, vice-presidente executiva da Comissão com a pasta das questões digitais.

Em conferência de imprensa, Vestager instou os 27 a reduzir os riscos associados ao equipamento de telecomunicações chinês em redes 5G, e destacou a Alemanha como um país que precisa de implementar as regras de segurança que a UE definiu de forma conjunta para o 5G. "Instamos os estados membros que ainda não impuseram restrições aos fornecedores de alto risco a fazê-lo sem demora, com urgência", disse Vestager. "Vários países aprovaram legislação mas não a puseram em vigor ... Fazê-la funcionar é ainda melhor".

Desde 2020 que está em vigor um conjunto de medidas denominado "5G Security Toolbox", aprovado para reduzir a dependência dos países da UE em relação a "fornecedores de alto risco" nas redes de telecomunicações. Desde o momento em que estas diretrizes foram aprovadas, foi claro que, apesar de as regras serem gerais e abstratas, visavam sobretudo travar a aquisição de equipamento à Huawei e também à sua concorrente chinesa, a ZTE.

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