Uma rivalidade suja na Premier League: «Vai buscar a arma do teu pai»

3 mar 2023, 10:56
Leeds-Chelsea (EPA/ANDREW YATES)

Os rivais que protagonizaram «o jogo mais brutal do futebol inglês»

Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias. O Maisfutebol traz-lhe a História de Um Jogo. Desta vez, a rivalidade entre Chelsea e Leeds que se defrontam no sábado.

«Bloodbath» ou, em português, «banho de sangue». Durante um longo período de tempo, aqueles jogos eram assim. Pernas e punhos a voar em direção a adversários, tackles diretos aos joelhos, socos trocados. David Elleray, em 1997, reviu "O" jogo. O antigo árbitro inglês distribuiu seis cartões vermelhos e 20 cartões amarelos aos 23 jogadores envolvidos naquela partida de 1970. Recentemente, Michael Oliver, árbitro em atividade na Premier League, observou a partida à luz das regras de hoje e nem hesita: onze cartões vermelhos, dois ao mesmo jogador! O que aconteceu mesmo, pode ver num dos vídeos abaixo e na última linha do texto.

A finalíssima de 1970 da Taça de Inglaterra não é apenas um dos jogos de futebol mais vistos na TV na história daquele país (só batido pela final do Mundial de 1966 e da final do Euro 2020). Ela é, em si mesma, o epítome da rivalidade entre Chelsea e Leeds. Uma rivalidade de jogo sujo, com listas negras e com um cântico que perdura quase desde o início dela, nos anos de 1960 até este sábado, quando as duas equipas se defrontarem em nova edição, em Stamford Bridge.

Norte vs Sul: o glamour de Kings Road vs «Dirty style»

O Chelsea é da capital, o Leeds é de Yorkshire e fica tão perto de Londres como de Edimburgo. A geografia e o que ela implica também foi combustível para a coisa. Apesar de Stamford Bridge ficar, na realidade, em Fulham, o clube ganha nome de uma das zonas mais caras de Londres, onde habita muita da classe alta e várias celebridades. Kings Road é chique nos anos 1960/70, enquanto Leeds e a sua massa operária viviam um declínio na produção têxtil.

Ou seja, havia duas culturas de clube diferentes, mesmo antes de as equipas pisarem o relvado. Depois, de chuteiras calçadas, a coisa começou a aquecer quando o Leeds subiu ao primeiro escalão para disputar a temporada 1964/65.

Eddie McCreadie, do Chelsea, numa entrada dura sobre Mick Jones, do Leeds (Peter Robinson/EMPICS via Getty Images)

Mesmo recém promovida, a equipa de Yorkshire começou a lutar pelo título logo no primeiro ano: perdeu na diferença de golos. O Chelsea é concorrente e os jogos entre ambos começam a ter relevância nos campeonatos vindouros. O que se segue é uma série de episódios «sangrentos».

Ao Leeds de Don Revie os adversários associaram sempre um «dirty style». Uma forma de jogar dura, desonesta até e se Brian Clough foi quem mais o disse, o sentimento era um pouco generalizado pelo país.

Peter Bonetti foi guarda-redes do Chelsea nesse período e contou ao site dos blues, em 2010.

«A rivalidade existia porque o Leeds tinha uma fama, uma reputação de jogar sujo. Eu diria que tinham um jogo muito físico porque sujo não é uma palavra muito agradável. Nós igualámos as coisas no lado físico, porque tínhamos os nossos próprios jogadores que eram fisicamente fortes. Provavelmente era por isso que éramos tão grandes rivais.»

A lista negra e os episódios de vingança séria

O jogo é dos jogadores e entre Chelsea e Leeds começa a haver maus fígados. Um tackle num jogo tem vingança no encontro seguinte, uma agressão em Stamford Bridge leva troco em Elland Road.

«Havia muitas contas a serem ajustadas de jogos anteriores sempre que os defrontávamos. Parecia que se enlouquecia, com toda a gente a pontapear-se uns aos outros», contou uma vez Tommy Baldwin, que atuou nos londrinos.

Jack Charlton, irmão de sir Bobby Charlton, foi campeão do mundo pela Inglaterra em 1966 e central do Leeds durante a carreira de futebolista. Um dia, numa entrevista à Tyne Tees Television, o defesa assumiu.

«Não posso citar nomes, mas tenho um livrinho preto com dois nomes e, se tiver a hipótese de apanhá-los, fá-lo-ei. Não vou fazer aquilo que considero as faltas mais sujas do jogo, como passar por cima de um adversário. Essa é a pior falta do jogo, mas vou entrar com a máxima força que puder para ganhar a bola. Não vou fazer as coisas sujas, as coisas realmente desagradáveis. Quando me fazem, eu faço o mesmo de volta. Porque não sou conhecido por ser assim, os adversários não fazem isso comigo, mas há dois ou três que fizeram e vou fazê-los sofrer antes de encerrar a carreira.»

Muitos admitiam que no topo da lista estava Peter Osgood, do Chelsea, mas Charlton assumiria mais tarde que, na realidade, era outro jogador dos londrinos.

A final de 1970, a finalíssima, «o jogo mais brutal do futebol inglês»

A final de 1970 entre Chelsea e Leeds tem vários marcos históricos na competição mais antiga do futebol. O 2-2 de Wembley obrigou a uma finalíssima. Foi a primeira vez que sucedeu desde 1912! Também foi a última vez que o vencedor da Taça de Inglaterra foi conhecido em abril e não maio. Nem Chelsea, nem Leeds tinham vencido a FA Cup alguma vez. O empate em Wembley já fora «quentinho» e foi, sobretudo, o «esquentador» perfeito para o que se viria a passar em Old Trafford, palco da finalíssima.

Eis o vídeo:

Os dois jogos levaram a muitas tempo de futebol pois ambos tiveram prolongamento. Ou seja, o vencedor só foi conhecido ao fim de quatro horas de futebol! Jogadores de um lado e outro eram como gladiadores na arena e todo o contexto, a rivalidade já existente, fez com que mais de 28 milhões de pessoas tivessem assistido ao jogo pela TV.

A partida é considerada como «o jogo mais brutal do futebol inglês».

Headhunters e a Service Crew: «Vai buscar a arma do teu pai»

O Chelsea venceu a Taça de Inglaterra de 1970 com um golo de David Webb no prolongamento do segundo jogo. um golo aos 104 minutos resultou no 2-1 final.

A rivalidade entrou então numa segunda fase. Na sua forma mais bruta, mais problemática. Do relvado, para as ruas. Com os dois clubes a saírem da contenda de troféus – durante os anos 1980, Liverpool e Everton dominaram o futebol inglês -, o que se viu nos jogadores ganhou uma forma grotesca entre as «firmas».

As claques de Chelsea e Leeds, Headhunters e Service Crew, protagonizaram demasiados episódios negros. E não foi só na rua, porque em 1984, quando o Chelsea venceu o Leeds por 5-0 e garantiu a subida de divisão, os adeptos londrinos invadiram o terreno de jogo várias vezes e os de Yorkshire destruíram o placard. Ironicamente, Ken Bates, o homem que liderava o Chelsea na altura, acabou por, 20 anos mais tarde, tornar-se dono do...Leeds. Os adeptos de Yorkshire protestaram: «Tirem o Chelsea de Leeds.»

A rivalidade parecia ter esmorecido quando o Leeds passou vários anos nos escalões secundários e o Chelsea se tornou campeão de Inglaterra e da Europa. Ainda assim, já recentemente, houve picardias em campo, enquanto na bancada ninguém esquece a sua história.

«Quando eu era um rapazinho, perguntei à minha mãe o que devia ser. Devia ser do Chelsea, devia ser do Leeds, eis o que ela me disse. “Lava a boca, meu filho. E vai buscar a arma do teu pai. E mata a escumalha do Chelsea.” Odiamos o Chelsea.» É isto que, ainda hoje, cantam os adeptos de Yorkshire, ao som de Que Sera Sera, de Doris Day.

O cântico tem o seu quê de reprovável, mas espelha bem a rivalidade entre os dois emblemas.

When I was just a little boy

          I asked my mother "What should I be?"

          "Should I be Chelsea? Should I be Leeds?"

          Here's what she said to me;

          "Wash you mouth out son,

          And go get your fathers gun,

          And shoot the Chelsea scum

          Shoot the Chelsea scum"

          (We hate Chelsea, We hate Chelsea...)

NOTA: o replay da final de 1970 terminou com um cartão amarelo. Outro tipo de futebol…

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