Chega colocou tarjas na fachada da Assembleia da República como uma forma de protesto contra o fim do cortes dos salários dos políticos. Foi cometido algum crime ou não?
Para a advogada especialista em Direito Penal Ana Rita Campos, a ação não viola a lei. "Não acho que seja uma violação da lei, mas é uma coisa absolutamente inédita. Tal como disse Alexandra Leitão (PS), em 50 anos de democracia nunca se tinha assistido a algo assim." Em cima da mesa, explica, podia estar o crime de coação contra órgãos constitucionais - "quem, por violência ou ameaça de violência, impedir ou constranger o livre exercício das funções de órgão de soberania ou de ministro da República é punido com pena de prisão de um a oito anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal", lê-se no artigo 333.º do Código Penal.
Contudo, o facto de os deputados do Chega não terem recorrido à violência enfraquece a possível moldura penal. "Podia ser um crime de coação contra órgãos constitucionais, mas é forçado dizer que o foi. Isso foi o que aconteceu no Capitólio dos EUA", diz Ana Rita Campos. Neste caso não se aplica porque "não houve violência" por partes dos deputados do Chega.
No programa CNN Fim de Tarde desta sexta-feira, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia também afirmou que os cartazes do Chega "não são crime nem publicidade". "Já ouvi várias opiniões. Há alguém que acha que isto foi um crime. Não me parece que seja. Não estou a ver como é que uma atividade de divulgação de uma opinião de natureza política ou de um protesto sobre uma medida que foi tomada seja realmente uma ilegalidade criminal, seja um crime. Nem sequer o crime de peculato de uso, porque neste caso são janelas que são atendidas a um partido e o partido usa os seus meios da forma como entender."
Publicidade também não é, segundo Jorge Bacelar Gouveia. "Também não acho que isto seja publicidade. Isto não é publicidade porque a publicidade é para anunciar produtos e serviços do ponto de vista da compra e venda. Isto podia ser uma ação de propaganda, mas a propaganda não é publicidade."
Já para o advogado de Direito Penal, Sancionatório e Compliance João Luz Soares, "existem alguns ilícitos criminais que podem estar em causa" - desde logo o crime de difamação. "As tarjas recorrem a um conjunto de imagens de sobreposição de notas em cima das figuras e estão a tentar passar uma imagem daquilo que é uma ideia de corrupção, de burla, de prática de ilícitos criminais por parte de Luís Montenegro e das outras figuras que ali estão. Pode ser entendido como processo difamatório, utilizando até meio de difusão pública considerável - as tarjas na casa da democracia." Este cenário penal pode ser agravado por ser um ato praticado contra titulares de órgãos públicos.
Para João Luz Soares, ao crime de difamação pode juntar-se o crime de peculato de uso, já que a Assembleia da República é "um imóvel do Estado". O artigo 376.º do Código Penal refere-se a este crime como: "O funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de coisa imóvel, de veículos, de outras coisas móveis ou de animais de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias". Para o advogado João Luz Soares, este ato "extravasou as funções" dos deputados do Chega.
Apesar de na perspetiva da advogada Ana Rita Campos a ação não constituir crime, tal não significa que a ação não seja "punível" moralmente. "Quando se discute o Orçamento do Estado para o próximo ano e um partido coloca tarjas com afirmações contra as medidas, há uma tentativa de desestabilizar o funcionamento da Assembleia da República." A especialista em Direito Penal considera que as intenções do Chega iam ainda mais além: "O que o partido fez é evidentemente uma mensagem para fora sobre o que se discute dentro do Parlamento, com a intenção de incitar tumultos e a concentração de pessoas. Não sei o que lhes passou pela cabeça, mas a intenção é lançar uma mensagem para fora. De inocente não tem nada. Há juristas no Chega, eles sabem o que estão a fazer, foi muito bem pensado."
Se a tentativa de perturbar os trabalhos no Parlamento tivesse sido protagonizada por um cidadão comum, o cenário era inevitavelmente crime, afirma Ana Rita Campos. "A perturbação do funcionamento da Assembleia da República é punível para terceiros." O advogado João Luz Soares explica ainda que um cidadão comum podia enfrentar também o crime de difamação, ao qual se juntaria "um processo de introdução em lugares vedados ao público para colocar as tarjas" - fora o crime de dano, "se houvesse algum dano".
Posto tudo isto, Ana Rita Campos sublinha que não se deve mudar a lei para responder de forma mais adequada a casos como este. "Nunca devemos mudar a lei porque não encaixa no que nos incomoda. Isto nunca ter passado pela cabeça de ninguém e de nos incomodar não é suficiente para ser crime."
Ana Rita Campos considera ainda que as declarações do presidente do Parlamento - Aguiar-Branco disse que o Chega fez "vandalismo político" - forma "excessivas". "Não houve danificação do património. Não se arranca parede da Assembleia da República ao colocar tarjas."