Já deixou cair bandeiras. Poliu outras. Mas a maior de todas mantém-se: André Ventura. Que partido é hoje o Chega?

27 jan 2023, 15:00
André Ventura no terceiro dia do IV Congresso do Chega

Saúde, educação, aborto, castração química, prisão perpétua, pena de morte, imigração. Na linha ténue entre a moderação e a inconstitucionalidade, o Chega tem polido o discurso - mas continua a girar em torno do líder. A V Convenção que arranca esta-sexta feira em Santarém não deverá ser diferente: vai servir para ultrapassar problemas constitucionais, mas acima de tudo para reeleger André Ventura

Abril de 2019. Emergia um novo partido das frações mais à direita do PSD. Com a imagem de Portugal em grande plano, exclamava “Chega!” ao sistema político. O movimento foi evoluindo e, com ele, novas bandeiras surgiram, outras caíram ou foram ‘polidas’. Mas a maior de todas mantém-se: André Ventura.

Intrinsecamente centrado na imagem do líder, desde o início que o Chega assumiu ser antissistema. À boleia das fragilidades do principal partido da oposição e dos "casos e casinhos" do próprio Governo, o movimento que começou nas franjas da direita começou a ganhar poder e agora vê-se representado por 12 deputados na Assembleia da República. Mas à luz do que se tem vindo a assistir entre os partidos de extrema-direita na Europa, desde os Irmãos de Itália de Giorgia Meloni, à própria Frente Nacional francesa de Marine Le Pen, também o Chega tem vindo a adaptar-se.

"Um partido que quer chegar ao poder tem de se moderar", começa por afirmar o consultor de comunicação Rui Calafate. E é precisamente isso que estamos a assistir: o Chega tem vindo a moderar o discurso. "Afinal, o populismo é uma forma de articulação do discurso visando a luta pela hegemonia", nota o politólogo José Filipe Pinto.

"Quem diria que o próprio Chega vai ter, em princípio, a presidência da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP? Isto diz muito sobre um partido antissistema, que pode continuar a fazer um discurso antissistema, mas, ao fim e ao cabo, está dentro do sistema", afirma Rui Calafate.

E se André Ventura tem vindo a moderar o discurso numa tentativa de captar a adesão de um número de pessoas que estão realmente descontentes com o funcionamento do sistema português, os especialistas acreditam que o Chega não tem abandonado as principais bandeiras. Isto porque, ao mesmo tempo, há o receio de perder a confiança de um número significativo dos seus eleitores, mesmo sabendo que a moderação do discurso implica sempre perder uma parte da extrema-direita. Ainda assim, há algumas mudanças.

Em nome da constitucionalidade

Saúde, educação, aborto, castração química, prisão perpétua, pena de morte, imigração. Mantendo uma série de temas que fazem parte da história do lançamento do partido, o Chega tem, ao longo dos anos, mostrado uma tendência para "polir" algumas posições.

Vejamos, por exemplo, a proposta do fim dos serviços públicos na Educação e na Saúde, entretanto alterada para um modelo em que se limita mais a intervenção do Estado. "Na mais recente proposta da revisão constitucional, o Chega aponta para que em vez de um Serviço Nacional de Saúde, Portugal passe a ter verdadeiramente um sistema de saúde, seja público ou privado. Já na Educação, propõe um modelo diferente, em que os vários modelos de ensino sejam respeitados e que o ensino público seja outro e não o único modelo de ensino e que o Estado financie todos os modelos", aponta José Filipe Pinto.

"O Chega tem vindo a desafiar o sistema: aprimorar o discurso para não cair essencialmente nas malhas da inconstitucionalidade", afirma o politólogo.

O especialista relembra ainda que a proposta de alguns militantes no congresso de Évora, sobre retirar ovários a mulheres que abortassem, acabou por cair. "No entanto, André Ventura continua contra o aborto, mas não pretende reabrir o debate na sociedade portuguesa em torno da criminalização da interrupção voluntária da gravidez, pelo menos para já", aponta.

Também foi ficou para trás a introdução da legislação no código penal sobre a castração química como forma de punição dos agressores sexuais a qualquer culpado de crimes de natureza sexual cometidos sobre menores de 16 anos. "O que é que ele fez? Cortou esta posição e apresentou, e foi aceite pelo presidente da Assembleia da República, uma nova proposta: uma iniciativa que prevê, evidentemente, a castração química para crimes de violação e abuso sexual de crianças, após uma alteração que passa a incluir a necessidade do acordo do arguido", exemplifica o politólogo. É mais uma demonstração de que o partido tem vindo a mudar as posições iniciais, não num sentido de uma alteração lógica, mas uma alteração que consiga encontrar um apoio no que diz respeito à Constituição, ou seja, ficar abrigado pela constitucionalidade.

"Na fase inicial, os cartazes do Chega eram próprios de um partido populista cultural ou identitário. Lembro-me de um cartaz que dizia, por exemplo, 'Os escravos somos nós'. O que é que fez entretanto? Manteve a substância, alterou o discurso", exemplifica José Filipe Pinto.

Cartaz da coligação "Basta" em 2019, liderada por André Ventura (Foto: Ephemera)

Ambos os especialistas concordam quando dão o exemplo da forma como o Chega aprendeu a controlar as citações públicas, sobretudo quanto à etnia cigana. "Em 2020, na fase da pandemia, propôs o confinamento da comunidade cigana, mas fez logo questão de dizer que era para proteção da comunidade. Como isso não foi acolhido, recomendou que fosse feito um novo estudo nacional sobre a comunidade cigana", elabora o politólogo, que remata: "Uma coisa é dizer que quer conhecer a realidade da comunidade cigana para promover a sua integração, outra é pôr fim à impunidade cigana, que já tem um preconceito à partida. É nesta linha que anda. E nos imigrantes é a mesma coisa".

"André Ventura não abandonou as suas bandeiras: moderou o discurso, mas moderou essencialmente em nome da constitucionalidade para não ser acusado de ser xenófobo e racista", considera José Filipe Pinto. Prova disso, aponta, é um dos cartazes de André Ventura enquanto candidato a presidente, em que se destaca a expressão "portugueses de bem".

"Isto é para quê? Para tirar do conjunto dos cidadãos portugueses todos aqueles que tenham, por exemplo, comportamentos desviantes ou aqueles que verdadeiramente desafiam o modelo que o Chega pretende. O que é uma posição perfeitamente inconstitucional", aponta o politólogo.

Já nas redes sociais, André Ventura segue muito uma linha de Steve Bannon, que é quase o teórico dos partidos mais à direita - e que era o ideólogo de Donald Trump, aponta Rui Calafate. Prova disso é a presença do líder do Chega no Twitter, onde o partido tem "uma máquina muito forte". Mas não só. "Para lá da sua máquina de comunicação, dos vídeos que faz, etc, importa referir que o Chega ainda há pouco lançou um jornal e, portanto, em termos de mediáticos, está a trabalhar no seu crescimento".

"Em termos de afirmação do líder é a mesma coisa, se ouvirmos bem, é muito a teoria da direita de Donald Trump. É de uma afirmação no Twitter duro, de uma postura de combate, antissistema, que é essa que tem marcado pontos, é essa que neste momento os eleitores estão a percecionar que é positiva para o Chega, e, portanto, André Ventura vai continuar neste caminho", explica o consultor de comunicação.

O Chega é André Ventura?

Basta olharmos para os cartazes e publicações do partido para encontrar um ponto comum: o presidente. Aliás, a comunicação e a marca do Chega assentam sempre em André Ventura, nota Rui Calafate. "Estão idiossincraticamente ligados, quase por osmose", aponta. 

"Claro que tem outras pessoas, outros 11 deputados, mas a grande bandeira é o André Ventura", afirma Rui Calafate. Facto é que, em si, o Chega é um partido que assenta muito no seu líder. "Porque é ele mesmo", frisa. "André Ventura é a grande mola, o grande acelerador do crescimento do Chega e da sua sustentabilidade. E neste momento, o que interessa aos militantes do Chega é estar bem no parlamento e poder crescer".

O Chega é um partido centrado numa figura que é a de André Ventura, concordam os dois especialistas. E nesse ponto de vista, o que mudou desde 2019? "Primeiramente nada", diz José Filipe Pinto, que recorda que o primeiro problema que o Chega teve com o Tribunal Constitucional era precisamente porque o Tribunal considerou que havia uma centralização do poder no líder que não era compatível com o normal funcionamento de um partido. Com regras do funcionamento democrático de um partido. "E o que é que o Chega faz? Limita outra vez a inconstitucionalidade".

E isso pode levar a problemas internos: "Todas as críticas a posições assumidas pelo chefe, pelo líder, são, não posso dizer que contrariadas, mas são imediatamente recusadas". Até porque "estes partidos populistas têm um culto do chefe. E este culto, que leva a que o chefe seja visto como carismático, leva também a que quem o segue, seja com tal fervor, que a própria segurança de quem se opõe, possa vir a ser posta em causa. E claro que são partidos que convivem muito mal com a alternativa. E por isso mesmo, o que é que acontece? Todas as críticas que aparecem, nunca são contra <a linha de ação do partido - mesmo que o sejam na essência - são sempre vistas como um ataque pessoal ao chefe".

"Porque é que André Ventura se demitiu para se recandidatar? Precisamente para deixar claro que o Chega é André Ventura e André Ventura é o Chega", afirma o politólogo. "E esta é a posição de um partido populista antissistema. Hoje, o partido é claramente a terceira força partidária em Portugal, evidentemente vão aparecer dissidências, vão aparecer jogos de interesse dentro do partido, mas o que me parece é que o Chega está nesta fase a tentar abrir um pouco, captar mais eleitorado, tentando manter o que já dispõe".

“O Chega pode moderar-se, pode tentar adaptar-se à Constituição, pode tentar piscar o olho a um eleitorado diferente, mas o Chega continua a ser André Ventura”, diz José Filipe Pinto

Certo é que apesar da estratégia ter sido aparada para ser mais moderada, em termos de estilo de liderança, André Ventura não vai mudar. "E não vai mudar por um motivo: é que segundo os portugueses quem lidera a oposição é André Ventura", relembra Rui Calafate

V Convenção para reeleger Ventura

E também por isso, a V Convenção Nacional do Chega que arranca esta sexta-feira em Santarém servirá para o partido ultrapassar os problemas constitucionais dos seus estatutos, mas acima de tudo, para reeleger André Ventura. A convenção, que decorre até domingo, foi precipitada pela rejeição dos estatutos pelo Tribunal Constitucional devido a uma "significativa concentração de poderes" no líder e como o partido já viu os estatutos chumbados duas vezes, o Conselho Nacional já tinha decidido voltar a adotar as regras internas que saíram da primeira reunião magna do partido, em 2019, as únicas às quais o Tribunal Constitucional deu "luz verde".

A convenção deste fim de semana tornou-se, então, eletiva, sem alterações estatutárias, e o atual líder, André Ventura, anunciou logo a sua recandidatura. Ventura já foi candidato por várias vezes, mas apenas teve um adversário nas eleições diretas de 06 de novembro de 2021, Carlos Natal, que obteve 5,22% dos votos, contra 94,75% para o atual presidente.

Na Convenção que arranca esta sexta-feira, André Ventura, não deverá ter adversários, mas o prazo para apresentação de candidaturas só termina esta noite, já depois da abertura dos trabalhos. E apesar de a moção de estratégia global que Ventura vai apresentar à convenção ainda não ter sido divulgada, o líder do Chega disse, em entrevista à Lusa, que vai pedir estabilidade ao partido. A nível nacional, André Ventura vai reclamar um “papel preponderante” num futuro Governo liderado pelo PSD e rejeitar qualquer possibilidade de uma “geringonça à direita”, ou seja, um executivo social-democrata minoritário com apoio parlamentar do Chega, como acontece atualmente nos Açores com o Governo PSD-CDS-PPM.

A abertura dos trabalhos da V Convenção Nacional está agendada para as 21:30, no Centro Nacional de Exposições e Mercados Agrícolas (CNEMA), em Santarém, com o discurso do presidente do partido, seguindo-se intervenções políticas de dirigentes e delegados. No sábado, está prevista a eleição do presidente da Direção Nacional e discurso do novo líder eleito após a divulgação dos resultados.

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