Em “Dias de Raiva”, livro publicado pela editora Manuscrito, o jornalista Alexandre R. Malhado revela os segredos da ascensão de André Ventura e mostra como o Chega se transformou num “monstro”. O passado permite tirar ensinamentos para o que aí vem, inclusive para o Orçamento do Estado de 2025. Com outra certeza: o líder do Chega sabe que tem um prazo de validade na política
CNN Portugal: O que mais o surpreendeu nestes mais de quatro anos de investigação sobre André Ventura, agora transformados no livro “Dias de Raiva”?
Alexandre R. Malhado: Este livro nasceu do jornalismo que fazia na revista Sábado desde 2017. O livro nasceu do jornalismo, não o contrário. Quando a editora me desafiou a escrevê-lo tinha uma ideia de como seria a estrutura e que histórias queria contar. Acabei por deixar arrastar este projeto. E ainda bem. Tornou-se mais certeiro este ano, porque o partido se catapultou para os 50 deputados [na Assembleia da República].
Ventura, ao longo da sua vida, procura validação. A dimensão principal de Ventura, mais do que a divisão entre direita e esquerda, é o populismo.
Certamente, com quatro anos de investigação, existiram barreiras durante a investigação.
Houve barreiras, a começar pelo acesso, que foi mudando ao longo dos anos. Até 2020, o acesso a André Ventura era muito mais facilitado, até porque ele queria a atenção dos media. A partir de 2021, houve uma barreira crescente no acesso à direção do Chega e aos próprios deputados. Percebe-se como o próprio partido cresceu e se transformou num monstro. E há que juntar a isto as várias ‘guerras civis’ que foram existindo no Chega, como as cisões entre os mais moderados e os mais extremados. Para chegar a este tipo de informação houve, necessariamente, muitas conversas off the record [oficiosas].
Um dos aspetos que fica claro ao ler o livro é o facto de o líder do Chega ser uma figura cheia de contradições entre aquilo em que acredita e o que defende publicamente. Afinal, o que é que move Ventura?
Essa é uma das questões mais importantes para compreender o fenómeno. Ventura, ao longo da sua vida, procura validação. A dimensão principal de Ventura, mais do que a divisão entre direita e esquerda, é o populismo, porque é aquilo que o leva a essa validação. Ventura sempre procurou ser uma figura que chamasse à atenção. A arte de Ventura é a pesca de arrasto, não as políticas públicas.
Foi o próprio André Ventura que me contou que votou em José Sócrates.
Uma das histórias que evidencia essa contradição é o facto de ter votado em José Sócrates. Como foi descoberto esse episódio?
Foi André Ventura que me contou que votou em José Sócrates. Explicou-me que, durante o seu crescimento político, gostava de figuras como Nicolas Sarkozy [antigo presidente francês]. E mencionou também um fascínio por José Sócrates.
Mas hoje, o nome de José Sócrates é a principal arma de arremesso do Chega no combate ao PS.
Essa é a sublime contradição que nos faz perceber aquilo que André Ventura é. Ao ter votado em José Sócrates, percebe-se que ele gosta desse tipo de figuras [consideradas carismáticas, como era o caso do ex-primeiro-ministro]. Diria que Ventura tem mais respeito pelo soundbite [frases marcantes, que captam a atenção] do que pela linha ideológica. Exemplo disso é o facto de ter o hábito de adjudicar os programas eleitorais a outras pessoas, mas a acabar por criar outros programas, invertendo mesmo a lógica inicial, quando era criticado.
E Ventura só descansa quando for primeiro-ministro? Ou esse é só o discurso necessário para se alimentar enquanto oposição?
Ninguém sabe o que vai na cabeça de Ventura. Conhecendo-o como conheço, acho que está muito focado em chegar ao poder. Por outro lado, olha para os seus pares na Europa, como Matteo Salvini ou Viktor Orbán, e vê que é possível. Não concordo com a teoria de que quer ser uma mera figura da oposição.
Mas como é que alguém como Ventura, que inverte o pensamento a seu bel-prazer, que já se percebeu que defende tudo e o seu contrário, continua a ser apoiado desta forma? Como é que não se desmonta por si mesmo?
É a tal questão da política da pesca de arrasto. Ventura sabe como é que vai reagir o eleitor e orienta o discurso nesse sentido. O eleitor ouve aquilo que lhe interessa e é capaz de esquecer o que não interessa. Ventura sabe que, no fim do dia, o eleitor o vai ouvir. Mesmo que seja contraditório com o que defendeu no passado, aquele eleitorado fica com a nova posição atrás da orelha.
Votar no Chega era como aquele jovem que chega à caixa do supermercado com uma caixa de preservativos e uma garrafa de vinho.
No livro aborda-se também a rede de financiamento do Chega, que inclui muitas famílias influentes em Portugal, como é o caso dos Champalimaud. É caso para dizer que se perdeu a vergonha de ser do Chega?
Sem dúvida. Enquanto o fenómeno Chega esteve latente, havia dificuldade em arranjar empresários [que quisessem financiar o partido] e votos. Votar no Chega, dar dinheiro ao Chega ou falar bem do Chega era como aquele jovem que chega à caixa do supermercado com uma caixa de preservativos e uma garrafa de vinho. Contudo, com o crescimento do partido, esses apoios também foram crescendo. Só o facto de aparecerem [famílias e empresários influentes entre os apoiantes do Chega] significa que foram perdendo a vergonha gradualmente.
Portugal já aprendeu a lidar com Ventura ou ele ainda nos vai surpreender?
Ainda temos muito caminho para fazer, mas parece-me que fomos aprendendo com o tempo. Já há políticos que não rejeitam o eleitorado do Chega. É o caso de Pedro Nuno Santos [secretário-geral do PS], que na noite eleitoral afirmou que não há um milhão de racistas em Portugal. Há uma clara noção de que aquele eleitorado não se pode demonizar. O próprio PSD está a fazer um bom trabalho, quando tenta abordar o tema da imigração dentro da seriedade do centro. Também os órgãos de comunicação social têm um longo caminho a fazer: sendo o terceiro partido mais votado, temos de dar uma cobertura justa, mas isso significa que temos de escrutinar, tal como fazemos com o PS e o PSD. O problema é que o Chega é um partido mais difícil de escrutinar, porque está constantemente a mentir. Para esse trabalho de escrutínio é essencial que a classe jornalística tenha melhores condições de trabalho. O Chega não é para se deixar à solta.
Que pistas podem os seus anos de investigação dar-nos para os tempos que aí vêm, nomeadamente para a negociação do Orçamento do Estado para 2025?
É possível tirar ilações do que pode acontecer no futuro. Dentro do PSD diz-se, constantemente, que o Chega não é um parceiro de governo viável, que é um tubarão, que só quer tirar eleitores ao PSD.
André Ventura colheu aquilo que semeou: um partido assente nas suas vontades e uma direção feitas de “yes men”.
E sem Ventura, o Chega morre?
Sim, sem Ventura o Chega morre. O Chega não tem quadros. A experiência mostra que os resultados em autárquicas e europeias nunca serão famosos, porque o Chega não tem esses quadros. André Ventura colheu aquilo que semeou: um partido assente nas suas vontades e uma direção feitas de “yes men” [pessoas que só dizem que sim, que estão constantemente de acordo]. No dia em que Ventura sair da liderança do Chega, há potenciais líderes que possam dar estabilidade ao partido? Por agora, não. O partido gira em volta do mediatismo de Ventura.
E alguma vez falou com André Ventura sobre o fim da carreira política dele?
Ele não está a pensar sair nos próximos anos. Ainda assim, sente que a sua figura, aparecendo tantas vezes, sendo a cara do partido, poderá gastar o partido em determinado momento. Haverá uma saturação e ele tem consciência disso. Ventura vai jogar o seu prazo de validade com essa saturação.