Patrocínia esperou porque queria uma selfie com Ventura. E o senhor das selfies, o Presidente Marcelo, “cantou-lhe” uma Grândola

4 mai, 08:00
Legislativas 2025. Reportagem com o Chega na Ovibeja

REPORTAGEM || O líder do Chega andou por Beja na véspera do arranque da campanha. A caravana é pequena, mas ruidosa, e atrai uns quantos curiosos e outros tantos idosos insatisfeitos com o que no distrito há de imigração — sobretudo isso. O discurso de Ventura colhe neste Alentejo interior. Não para todos: "É fácil cair no discurso que aponta o dedo ao que é diferente, que é de fora. Já foi assim com os retornados, já foi com os africanos. Há sempre um culpado de fora, invisível"

André Ventura fez tudo de véspera. Veio à Ovibeja na véspera de acabar o certame. Veio à Ovibeja na véspera de iniciar a campanha. 

Ventura veio foi tarde. Era aqui esperado pelas quatro. Quando já faltam só 10 minutos, corre entre jornalistas a informação de que se atrasará, “pelo menos uma hora”. Um assessor logo corrige: “Meia, meia hora”. Outra nova corre por nós: “O Marcelo está cá, veio pelas traseiras”. A maioria dos jornalistas já não espera por Ventura — que já está atrasado e está —  e arranca dali para Marcelo Rebelo de Sousa.

Uma mulher já idosa questiona, ansiosa: “Não vem, já não vem?” Virá, Patrocínia, ele, Ventura virá. Está aqui por ele. 

Patrocínia é Cordeiro de apelido, tem 73 anos e é de Beja, embora tenha estado emigrada a vida quase toda — profissional, bem entendida — em França: “Estive lá durante 38 anos”. Traz no cabelo melenas arroxeadas, aperaltou-se, mala ao tira-colo com grife, um grande par de óculos de sol que nunca vai tirar — mesmo quando entra na Ovibeja, no interior desta feira. “Vim, vim ver o André Ventura. Eu gosto muito dele. Porquê? Estou desiludida com todos os outros. E acho que ele é o único que nos pode realmente ajudar, fazer alguma coisa por este país — pôr ordem nesta bandalheira, como ele mesmo diz.”

Não me deixa sequer terminar a pergunta sobre o que está de mal, e que Ventura vai mudar, em Beja, no interior alentejano. “Tudo, tudo está mal aqui.” Tudo? “Por exemplo: a cidade está muito suja.” Mas Ventura não é cantoneiro, que se lhe conheça essa profissão. “Espere. Mas há mais. O presidente da Câmara, aos comerciantes ignora-os completamente.” Mas Patrocínia é reformada e não comerciante — que se lhe conheça essa profissão. “Ah, sobre mim? Eu sou reformada, sim, graças a Deus. Reformada lá de fora. Cá, do que eu descontei cá, recebo coisinha pouca, 500 euros, 560 — mas ainda me tiram esses 60. Depois, como havia uma lei qualquer que me retirava 10% da reforma francesa, cansei-me e fixei residência lá em França — para não me irem à ‘outra’ reforma. Aquilo era meu, trabalhei muito, sofri muito. Porque o amigo do amigo, quando se chega lá, não faz milagres. A imigração mudou muito”, assegura.

Falemos então dessa imigração que se faz sentir em Beja e que é “diferente” da de “antigamente”, nomeadamente a emigração de portugueses. “Aqui em Beja é mau, muito mau. Muito. Aqui mesmo na Praça da República veem-se mais pessoas a dormir na rua do que nunca. Até tiraram os bancos todos da praça, porque os imigrantes iam para ali dormir. Ainda no outro dia fui às Finanças e estava um senhor a dormir mesmo à porta — cobertor por baixo, cobertor por cima. E foi uma funcionária que lhe disse para ir acabar a noite a outro lado. Porque as pessoas precisavam de entrar nas Finanças. É como diz o André: uma bandalheira.” 

Garante que não é racista. “Eu? Eu não. Mas isto é bom é para os ciganos, para os imigrantes. Dormem 40, 50 pessoas numa loja. Uma loja de fachada. Vi eu na televisão no outro dia. Não pode ser. Não somos burros, não todos.”

Sobre a notícia deste sábado, de que a Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA) vai começar a notificar 4.574 cidadãos estrangeiros, já na próxima semana, para abandonarem Portugal voluntariamente em 20 dias, por estarem cá ilegais, Patrocínia diz só isto, questionando-se retoricamente: “Isso é para as eleições, para ter votos. Como é que os vão notificar se nem sabem onde estão?!” 

Diz que não é militante do partido, do Chega, “só simpatizante”, mas o que diz ser uma manobra eleitoral, com ela, não vai colher. “O meu voto eles não levam. Nem o meu nem o de muitos. Tenho uma amiga, da minha idade, que já foi do Partido Comunista e agora está pelo Chega. E não é só ela. Estamos cansadas. Reformadas e cansadas. As coisas não mudam. E quando mudam, é para pior.”

Patrocínia parece desiludida, desencantada talvez, por certo está desiludida. Não irritada. 

— Está desiludida?

— Sim, a gente vai-se desiludindo. Jovens, menos jovens, as pessoas da minha idade… 

— E por isso é que votam no Chega?

— O André é talvez o único com, como se diz aqui no Alentejo, tomates para pôr isto na ordem.

Ventura ainda aqui não chegou, mas veio uma carga de água tal que fez Patrocínia entrar na feira. Esperará no interior. 

Entretanto, já bem depois das quatro, ouve-se de fora, da entrada da Ovibeja: “VENTURA, FORÇA VENTURA, VENTURA, FORÇA VENTURA”. A comitiva é pequena, duas dezenas de pessoas, mas sabe que pelo ruído atrai. Aproxima-se uma jovem, está em vídeochamada, perto mas não demasiado perto de André Ventura, que vem bem resguardado de seguranças: “Ó mãe, ó mãe, olha o rei de Portugal”. De pequena a entourage faz-se bem maior, porque a Ventura chegam os curiosos, o que lhe atrasa o passo, já por si lento, de procissão. Um grupo de homens observa ainda de longe. Um deles quer-se aproximar: “Vamos lá, vamos lá”. E dos outros tem a seguinte resposta: “Vai tu, vai tu”. E Chico vai. Sabemos que é Chico porque quando vai é surpreendido pelas bocas dos amigos do grupo: “Ó Chico, vai lá dar um beijinho e anda-te mas é embora, que a gente quer ir comer”. Todos ouvem. Envergonhado, Chico acaba por não ir. 

Atrás vem gente. Um homem já idoso, que não canta, como outros, que não grita, como outro. Apenas traz aberta, arvorada, e agita-a, a bandeira de Portugal. Alguém lhe pergunta, sarcasticamente: “Ó senhor, você ainda acredita no Natal? No pai Natal?” Não responde José. 

José de Sousa, 80 anos, é daqui de Beja, “nascido e criado”. Insistimos na pergunta, mas agora sem sarcasmo: acreditará ele no pai Natal? “Não acredito. [Risos] Acredito neste Pai Natal. Neste sim.” “Este” é o líder do Chega. Porque acredita em Ventura, porque lhe segue os passos e ergue a bandeira, a nacional e também a do Chega? “Porque os outros… [pausa] é como os quatro anos que passei no Ultramar: zero. É que os outros, do PS, do PSD — essa gente para mim é toda a mesma escumalha —, só me diziam ‘fazemos isto, fazemos aquilo, pagamos isto, pagamos aquilo’ e, no fim, é zero.” 

Portanto, está aqui por ser um ex-combatente sem direito a uma pensão. Mas não só. “E agora querem o quê? Dar compensações aos países lá de África pelos estragos que fizemos lá? E eu? E eu?! E os quatros anos da minha juventude que perdi lá? Sujeito a ter morrido.”

José não teve sempre o mesmo discurso. Foi como outros aqui de Beja, do Alentejo, militante comunista. “Fui sim. Fui sim… Durante mais de quarenta anos. O PCP era, historicamente, muito forte por aqui, por Beja. Só que deixou de ser. Muita gente foi enganada, iludida. Incluindo eu. Enfim, há coisas que um gajo já não deve dizer, não deve contar. [Longa pausa] Andei eu a lutar por causa de coisa nenhuma. O partido só defendia o que era o deles. Deixou de me servir.”

Como Patrocínia, José emigrou. “Na República dos Camarões. Mas fui com contrato de trabalho, não é como é aqui, agora.” Como é aqui, em Beja, agora? “Aqui falta tudo. Tudo, tudo. O que há a mais é a imigração. Ninguém pode andar na rua depois das nove, 10 da noite. [Inseguro?] Inseguro é dizer pouco. Muito. Alguns podem vir mesmo trabalhar, não vou dizer que não, mas não é a maioria. A maioria vem atrás do subsidio — que ainda lhos querem aumentar. Não é? Os imigrantes qualquer dia formam um partido, sabe?, votam todos uns nos outros e nós vamos ficar por baixo. Eles já mandam na gente, já pateiam a gente. A gente fica sem nada.”

— Posso-lhe perguntar de quanto é a sua reforma? 

— Ao todo, 600. Acho que está tudo dito…


Entretanto, aos jornalistas, Ventura mete enfoque na imigração. Sobre o recente anúncio de Leitão Amaro, ministro da Presidência, da expulsão (ou intenção de expulsão) de mais de 4.000 imigrantes irregulares, o líder do Chega diz que tudo mais não é do que “piada de mau gosto” — isso, e é “eleitoralismo”. “O Chega esteve um ano sozinho, praticamente sozinho, no parlamento, a dizer que agora é preciso controlar a imigração, que estávamos a atingir números impossíveis de sustentar para o país. O PSD não aceitou nenhuma proposta [como é o caso da introdução de quotas à entrada de novos imigrantes ou a realização de um referendo à imigração] e até as inviabilizou. As pessoas já não se deixam enganar por eleitoralismo. Só houve um partido e um líder que quiseram efetivamente controlar a imigração em Portugal”, atirou. E seguiu. 

Seguiu e esbarrou em Marcelo. Foi breve essa interação: segundos. Aproximaram-se, apertaram mãos. O Presidente da República disse para André Ventura “ficar à vontade na Ovibeja”, o líder do Chega sorriu e a sorrir lá atirou: “Espero que falemos no dia 18”. Já após o Presidente avançar, Ventura explicou: “Espero que no dia 18 de maio me contacte a pedir para liderar um governo em Portugal”. 

Ao fundo escuta-se “Grândola Vila Morena”, em cante. A caravana de Ventura percebe e depressa sai, o passo que fora lento, acelera. Marcelo, que já dali saíra, volta atrás. Junta-se ao grupo Cantadores do Desassossego e entoa os versos de Zeca Afonso, entusiasmado. 

O líder do grupo é Rui Teixeira. “Nós somos os Cantadores do Desassossego, mas somos mais conhecidos pelos desassossegados”, graceja. Vai de novo gracejar — e ironizar — quando a pergunta é se entoar a Grândola à passagem do Chega foi propositado. “Não foi por acaso, não. Mas também não foi naquele momento que decidimos. Já estava no alinhamento. Era para ser cantada no fim da atuação que aqui se fez. Porque estamos em maio. E abril foi há pouco. E há valores que não se podem calar. Temos de os gritar. Bem alto, bem alto. Calhou o Chega estar a passar lá. Eu estava de costas. Não olhei. Nem achei importante olhar.”

O recado a Ventura está dado. Marcelo terá já o seu: “Juntou-se? Ela junta-se muito. Já o fez antes. Já é a terceira vez que se junta noutras modas da gente. Mas a Grândola não é de ninguém. Nem da esquerda, nem da direita. É de quem preza a liberdade, de quem tem esse bom hábito de a prezar.”

Mas voltemos à popularidade do Chega, crescente popularidade, sobretudo no Alentejo, interior, outrora comunista. “Há desencanto. Um desencanto profundo, cavado”, responde Rui, com seriedade. “Muitas promessas não nos foram cumpridas. Há uma perda real de qualidade de vida aqui. E depois é fácil cair no discurso que aponta o dedo ao que é diferente, que é de fora. Já foi assim com os retornados, já foi com os ciganos, já foi com os africanos. Há sempre um culpado de fora, invisível. Mas o problema é que estamos sempre à espera de um D. Sebastião, doce, que nos resolva os problemas.”

Rui não vê em Ventura esse Mito do Encoberto. “Não. Porque não há milagres. Há é a democracia. E democracia é arregaçar as mangas. Fazer para que aconteça. Como dizia aquele senhor americano: ‘Não perguntes o que o país pode fazer por ti, mas o que tu podes fazer pelo país'. Um tal de Kennedy.” 

Ainda assim, mesmo arregaçando mangas, o Alentejo está hoje vetado ao esquecimento. “Aqui. Aqui sim. O Estado esqueceu-se do interior. As elites políticas, as elites económicas, as elites pensantes, vivem em Lisboa, vivem na bolha, não têm contacto com a realidade de quem vive fora dos grandes centros. E acham que tudo está bem.”

— Ficamos eternamente adiados. 

— E depois?

— Depois? Frustração. E a frustração traz a nós os populistas.

Ventura já percorreu os pavilhões da Ovibeja. Fê-lo nem em uma hora. Distribuiu beijos, abraços, selfies. Uma das últimas foi tirada com quem veio aqui para o conhecer, Patrocínia. “Não falámos, foi rápido. Mas disse-lhe para continuar, para não desistir de nós. Agora vou até casa. Lanchar e ver o Preço Certo.”

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