"Fiz uma promessa". António começou a trabalhar no carvão aos 17 anos. Agora gere um investimento imobiliário de 50 milhões em Sines

2 nov, 08:00
Reportagem António Vaz

António Vaz passou quase duas décadas na central termoelétrica de Sines, onde tinha a responsabilidade de desentupir as entradas do carvão. Um acidente que lhe tirou um amigo marcou o início de uma mudança que só se concretizaria anos depois

O que mais impressionou António Vaz quando entrou pela primeira vez na extinta Central de Sines foi a dimensão dos tapetes rolantes que se estendiam desde o porto marítimo até às instalações daquela que era a maior produtora de energia do país. Tinha 17 anos quando o pai o obrigou a ir trabalhar no carvão. “Tínhamos de conseguir ganhar algum dinheiro. Éramos cinco filhos lá em casa.” 

Estávamos no princípio dos anos 80 e António foi colocado num serviço que consistia em apanhar o carvão do chão e desobstruir as quedas de hulha que passavam de um tapete rolante para o outro. Era um trabalho que se tornava mais exigente no inverno. “Nos tempos de chuva, o carvão vinha todo empapado e entupia as quedas e tínhamos de usar umas picadeiras gigantes para as desobstruir e deixar o carvão passar.”

Pegava na picadeira por turnos e só a largava quando chegava a casa e lavava o negro das mãos. “As marcas é que não saíam, fiquei com elas até aos dias de hoje”, conta à CNN Portugal, enquanto prende o olhar nos dedos repletos de calos e sublinha que “nem tudo foi mau”, porque existia um espírito de camaradagem muito grande. “Fiz grandes amizades.” Uma das maiores foi Nuno Fonseca, com quem partilhava a missão de desentupir o carvão. 

António Vaz na Central Termoelétrica de Sines / DR

Lembra-se de Nuno especialmente quando os dois tinham 22 anos e o amigo, acabado de tirar a carta de condução numa escola de Sines, tinha anunciado ao grupo que ia comprar um carro. “Um Fiat Punto, daqueles redondos, azul.” Era hora de almoço quando o carro chegou ao stand e ele, a correr, o foi buscar para dar umas voltas na central antes de regressarem ao turno. António soube que o amigo tinha chegado ao pátio de terra batida através do barulho do motor. “Ele acelerou, mas perdeu o controlo e bateu numa tampa de esgoto bastante elevada, foi cuspido do carro, o carro caiu-lhe em cima e morreu ali”. 

A partir desse dia começou a implantar-se a ideia de que tinha de sair da central. “Estava a perder anos de vida parado no mesmo sítio.” Essa realização passou a consumi-lo, mas virava-se e não via outra saída. Já tinha tentado sair “uma ou outra vez”, fazendo alguns trabalhos de pintura, mas era na central que estavam as oportunidades mais estáveis. “Lá era certinho, sabíamos que podíamos ganhar o nosso.”

Quando nasceu o primeiro filho, a ânsia de sair tornou-se avassaladora. Decidiu concorrer à Universidade Aberta para tirar um curso relacionado com gestão e financiamento de empresas. Mas, dois anos mais tarde recebeu outra surpresa: a mulher estava grávida de gémeos. Ele ganhava 800 euros e a família começou a ter de pôr a sua realidade na balança.

Os gémeos nasceram prematuros e as despesas aumentaram vertiginosamente. “Em 2012 tinha uma carrinha KIA Ceed preta que estava a pagar ao Montepio no valor de 212 euros mensais e tive de a entregar, porque não conseguia pagar as prestações”, afirma, acrescentando que, nessa altura, teve de optar entre comprar, por exemplo, fraldas, ou pagar o carro. “Fiquei dois, três meses sem pagar até que vieram buscar o carro.”

Foi, conta, “um dos momentos mais difíceis”, não tanto pela decisão de não pagar as contas, mas pela reação de quem lhe era mais próximo. “Na central, e até em ambientes familiares, disse que o carro tinha partido a direção. Fingi isso.” Para pagar as contas, António passou a dividir-se entre o trabalho no carvão e outros dois ofícios em que apostava nos intervalos. “Passei a servir à mesa na Casa do Médico, um restaurante no centro de Sines, e passei também a trabalhar numa imobiliária local".

"Nunca mais vou voltar"

António Vaz na sede da empresa, juntamente ao plano de desenvolvimento do projeto Brisa Mar / DR

O gatilho deu-se em 2017. Exausto, ao passar pelos cacifos na Central, António deteve-se um instante. Lá dentro, dois sacos de plástico de 50 litros separavam o que era limpo do que já não era. Nessa manhã, em vez de trocar de roupa subiu até à sala de comando onde o seu patrão, o sr. Coelho, costumava estar. “Pedi-lhe ajuda.” 

“Quero ir-me embora às quatro da tarde e não voltar mais”, disse-lhe. “Deixa-me sair, por favor. Sei que tenho de dar tempo à casa, mas tenho de sair daqui e não quero sair a mal.” O patrão, o sr. Coelho, respondeu-lhe: “Se é isso que queres, não te vou criar obstáculos.”

António saiu da sala de comando e, “tão focado em ir-se embora”, correu até aos cacifos. “Tirei os dois sacos, empurrei tudo o que estava dentro das prateleiras, o que era bom e o que era mau para lá.” Na rua, depositou os sacos na bagageira do carro e, à saída da central, encontrou um pequeno restaurante com três caixotes do lixo. “Parei o carro, tirei os sacos e meti-os no lixo. Entrei de novo no carro e fiquei a pensar como já tinha tido esta ideia e como depois tinha sempre regressado.” Mas desta vez seria diferente. “Nunca mais na minha vida vou pôr aqui os pés, foi uma promessa que fiz a mim mesmo.” 

A partir desse momento, houve oito, nove meses “em que as coisas não correram muito bem”, recorda, olhando para um logótipo da AJLVAZ, a empresa de promoção imobiliária que constituiu após se despedir da central de carvão, de aprofundar os conhecimentos que já tinha do setor e de se lançar no negócio a solo. “Tinha o meu anexo em casa e era como se fosse o meu escritório.” 

O salto veio nos anos da pandemia, quando começou a fechar “alguns negócios grandes”. “Prédios abandonados, de Norte a Sul do país, Algarve, Lisboa, Figueira da Foz.” A porta de entrada foi modesta. “A primeira oportunidade grande apareceu numa simples angariação, numa entidade bancária. Arrisquei publicidade e a coisa correu bem.” Surgiu um investidor e, depois desse, veio o tal passa-palavra. “Em 2020 estava a tentar vender um prédio abandonado, também de uma entidade bancária, no Algarve. Acreditei naquele ativo. Sempre fui muito do instinto. Acreditei que quem ficasse com aquilo ficava bem servido.”

Um pouco mais tarde, António Vaz e uma sócia, Carina Soccal, montaram uma nova sociedade de investimentos imobiliários, a Soccal e Vaz. Quem entre em Sines, encontra no centro da cidade um quarteirão inteiro em construção com o seu nome. “O negócio correu bem e fomos criando diálogo. Ela é brasileira, vivia em Cascais. Um dia, desabafei com ela sobre um terreno que estava a comercializar e que não tinha corrido bem. Foi quando ela disse: ‘António, porque é que não fazemos uma sociedade 50-50 e investimos nós?’.”

Recorda o instante em que disse que sim. Estava a comer caracóis com o seu pai, que lhe disse que era “só mais um risco”. Foi o que fizeram. “Acabámos por correr o risco. Fundámos a empresa, fomos comprar os terrenos — quatro ao todo — e começámos a desenvolver.” O primeiro chama-se Brisa Mar e terá um investimento de cerca de 50 milhões de euros, dividido em duas fases, os outros dois deverão ser alvo de um investimento idêntico. 

António Vaz diz que esta é a altura certa para entrar com o investimento perto da zona onde recentemente foi inaugurado o megacentro de dados da Start Campus, mas também onde se irá localizar a fábrica de baterias de lítio da chinesa CALB. “A nossa primeira fase já está com cerca de 40% comprometida. Olho para isto e penso: valeu a pena. Tudo o que passei, o carvão, o cansaço. Hoje, estou onde estou porque um dia decidi sair às quatro da tarde e nunca mais voltar.”

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