E porque é esta descoberta importante? A cientista por detrás do projeto, Aviv Regev - copresidente fundadora do Atlas das Células Humanas - lembra que “as células são a unidade básica da vida e, quando as coisas correm mal, antes de mais, correm mal com as nossas células”
Cada ser humano é uma orquestra de mais de 37 triliões de células. Mapear este mundo pouco conhecido é um dos maiores desafios da biologia - e um desafio no qual os cientistas dizem que acabaram de fazer uma descoberta significativa.
Mais de 3.600 investigadores de mais de 100 países analisaram mais de 100 milhões de células pertencentes a mais de 10 mil pessoas, de acordo com a última atualização de um ambicioso projeto lançado em 2016 para produzir um atlas de todos os tipos de células do corpo humano.
A nova pesquisa baseada nas descobertas, publicada em vários artigos na revista Nature e noutras revistas especializadas, representa um “salto na compreensão do corpo humano”, de acordo com o consórcio Human Cell Atlas. O empreendimento é semelhante em escala e alcance ao Projeto Genoma Humano, que levou duas décadas a ser concluído.
“As células são a unidade básica da vida e, quando as coisas correm mal, correm mal, antes de mais, correm mal com as nossas células”, explica Aviv Regev, copresidente fundadora do Atlas das Células Humanas e vice-presidente executiva para a investigação e desenvolvimento inicial da Genentech, uma empresa de biotecnologia com sede em South San Francisco, Califórnia.
“O desafio que temos tido prende-se por não conhecermos as células suficientemente bem para compreender como as variantes e mutações dos nossos genes estão realmente a afetar as doenças. Quando tivermos este mapa, poderemos encontrar melhor as causas das doenças”, acredita a investigadora.
Atualização de um “mapa do século XV
Regev comparou o conhecimento científico da biologia celular antes da iniciativa do Atlas das Células Humanas com um “mapa do século XV”.
“Agora, anos mais tarde, a resolução do mapa é muito superior”, disz. “É mais parecido com o Google Maps, onde temos uma visão de alta resolução da topografia real e, para além disso, temos a vista da rua que nos explica realmente o que se está a passar ali. E, para além disso, podemos até ver os padrões de condução, como as mudanças dinâmicas que ocorrem durante o dia”, acrescenta.
“Este é o salto que demos ... mas ainda temos trabalho a fazer”.
Um dos desafios é que diferentes tipos de células podem parecer morfologicamente indistinguíveis ao microscópio, mas podem variar drasticamente a nível molecular. Além disso, as células mudam à medida que os seres humanos envelhecem e em relação ao ambiente externo.
Os avanços na tecnologia de sequenciação de uma única célula permitem aos cientistas compreender como os genes de uma célula individual são ativados e desativados através da análise do RNA, que lê o ADN contido em cada célula. Esta tecnologia, combinada com poderosos métodos de computação e de inteligência artificial, permite aos investigadores criar um cartão de identificação para cada tipo de célula.
Antigamente, pensava-se que existiam apenas cerca de 200 tipos diferentes de células. Atualmente, os cientistas sabem que existem milhares.
O consórcio está a construir mapas de 18 redes biológicas, a mais complexa das quais é o cérebro, e o primeiro projeto completo do Atlas das Células Humanas será publicado em 2026, disse Regev. O atlas celular tem como objetivo preencher o elo que falta entre genes, doenças e terapias de tratamento.
“Esta é uma viagem incrivelmente emocionante, em termos da nossa viagem através do corpo humano e da descoberta de novos conhecimentos fundamentais sobre as nossas células”, afirmou Sarah Teichmann, copresidente fundadora do Atlas das Células Humanas e professora no Instituto de Células Estaminais de Cambridge, na Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Marcos que podem desbloquear novos tratamentos
Entre os progressos tornados públicos este mês, contam-se a cartografia de todas as células do intestino; a produção de uma planta da formação do esqueleto humano no útero; a compreensão da estrutura básica do timo, um órgão que desempenha um papel fundamental no funcionamento do sistema imunitário; a cartografia da arquitetura molecular da placenta; e a construção de um atlas das células vasculares humanas.
O atlas do trato gastrointestinal, que inclui os tecidos da boca até ao esófago, estômago, intestinos e cólon, foi criado com dados de 1,6 milhões de células e revelou um tipo de célula que pode desempenhar um papel em doenças crónicas como a doença inflamatória intestinal.
O mapa do esqueleto inicial encontrou determinados genes ativados nas células ósseas iniciais que podem estar ligados a um risco acrescido de desenvolver artrite da anca na idade adulta. “Ter uma imagem mais clara do que está a acontecer à medida que o nosso esqueleto se forma e de que forma isso afecta doenças como a osteoartrite pode ajudar a desbloquear novos tratamentos no futuro”, considera Ken To, investigador do Wellcome Sanger Institute, em Inglaterra, coautor da investigação, num comunicado.
O cientista inglês Robert Hooke descobriu as células em 1665, observando a cortiça ao microscópio. Introduziu a palavra célula porque os padrões formados pelas paredes de celulose da cortiça morta lhe faziam lembrar os blocos de células utilizados pelos monges. No entanto, só 200 anos mais tarde é que os cientistas compreenderam finalmente que as células eram a unidade fundamental do corpo humano.
Ao contrário do projeto original do genoma humano, que se baseava predominantemente num único indivíduo, o atlas celular pretende ser globalmente representativo e envolve investigadores e amostras de tecidos humanos de todo o mundo.
O projeto já conduziu a alguns avanços significativos, incluindo a descoberta de um tipo de célula anteriormente desconhecido no trato respiratório, chamado ionócito. O estudo deste tipo de célula rara poderá conduzir a novas formas de tratar a fibrose quística, uma doença genética causada por um gene que afeta o movimento do sal e da água para dentro e para fora das células.
Durante a pandemia de covid-19, a comunidade do Human Cell Atlas utilizou os dados disponíveis para revelar que o nariz, os olhos e a boca eram os locais mais vulneráveis à infeção.
“Só através dos dados do Human Cell Atlas ficou claro que essas células eram (...) pontos de entrada antes de o vírus continuar para os órgãos internos. Isto ilustra muito simplesmente a importância de um mapa de referência saudável do corpo humano e de um profundo conhecimento molecular de nós próprios”, explica Teichmann.
Jeremy Farrar, cientista-chefe da Organização Mundial de Saúde, que não esteve envolvido na investigação, concordou que os conhecimentos que emergem do atlas “já estão a remodelar a nossa compreensão da saúde e da doença”.
“Esta coleção histórica de artigos da comunidade internacional do Atlas das Células Humanas sublinha o enorme progresso no sentido de mapear todos os tipos de células humanas e a forma como estas mudam à medida que crescemos e envelhecemos”, refere Farrar num comunicado.