A cientista Kate Adamala não se recorda exatamente de quando percebeu que o seu laboratório na Universidade do Minnesota estava a trabalhar em algo potencialmente perigoso — tão perigoso, na verdade, que alguns investigadores acreditam que poderia representar um risco existencial para todas as formas de vida na Terra.
Em 2019, foi uma das quatro investigadoras a quem foi atribuída uma bolsa de 4 milhões de dólares (3,4 milhões de euros) pela Fundação Nacional de Ciência dos EUA para investigar se seria possível produzir uma célula espelho, na qual a estrutura de todos os biomoléculos componentes fosse o inverso do que se encontra nas células normais.
O trabalho parecia importante, pensaram, porque tais células invertidas, que nunca existiram na natureza, poderiam lançar luz sobre as origens da vida e facilitar a criação de moléculas com valor terapêutico, abordando potencialmente desafios médicos significativos, como doenças infeciosas e superbactérias. Mas começaram a surgir dúvidas.
“Não houve um momento de epifania. Foi mais uma espécie de fervura lenta ao longo de alguns meses”, afirmou Adamala, bióloga sintética. As pessoas começaram a colocar questões, acrescentou, “e pensámos que podíamos respondê-las, mas depois percebemos que não conseguíamos.”
As questões centravam-se no que poderia acontecer se os cientistas conseguissem criar um “organismo espelho”, como uma bactéria formada a partir de moléculas que fossem imagens espelhadas das suas formas naturais. Poderia ele propagar-se inadvertidamente de forma descontrolada no corpo humano ou no ambiente, representando graves riscos para a saúde e consequências desastrosas para o planeta? Ou simplesmente se extinguiria, desaparecendo sem deixar rasto?
Na natureza, a estrutura de muitos biomoléculos importantes é destra ou canhota, embora não se saiba exatamente por que motivo a vida evoluiu dessa forma. É uma propriedade conhecida como quiralidade, descoberta pela primeira vez pelo cientista francês Louis Pasteur em 1848. Por exemplo, o ADN e o ARN são compostos por nucleótidos “destros”, e as proteínas são formadas por aminoácidos “canhotos”. Tal como uma luva direita não serve numa mão esquerda ou uma chave só entra numa fechadura específica, as interações entre moléculas dependem frequentemente da quiralidade, e os sistemas vivos necessitam de padrões coerentes de quiralidade para funcionarem corretamente.
Numa célula espelho, todas as suas moléculas seriam substituídas por versões em imagem invertida. Tal desenvolvimento é ainda hipotético; mesmo criar uma célula sintética com quiralidade natural que imite as suas contrapartes vivas normais ainda não é possível, mas trata-se de uma área de investigação ativa e entusiasmante que Adamala e vários outros grupos estão a explorar. Os cientistas já conseguem fabricar muitos dos componentes a partir de precursores não vivos e, em breve, poderão criar células sintéticas normais que, em teoria, poderiam dar origem a formas de vida unicelulares, como bactérias.
Por si só, pequenas moléculas espelho não representam riscos particulares, e os cientistas já conseguem fabricar com segurança proteínas e hidratos de carbono com quiralidade oposta, que têm potencial farmacêutico.
As células espelho completas, contudo, permanecem fora de alcance. Adamala e os seus colegas não fizeram grandes progressos nesse campo. A pandemia de Covid-19 atrasou o arranque da investigação e, mais importante ainda, conversas informais que Adamala manteve com colegas de outras áreas, em conferências e fóruns, começaram a suscitar alarme.
“Especialistas em biossegurança, imunologia e ecologia não achavam que algo como uma célula espelho fosse realmente possível — consideravam-no ficção científica”, relatou.
Uma das coisas que esses cientistas referiram, e que a surpreendeu profundamente, foi que “as células espelho seriam provavelmente completamente invisíveis para o sistema imunitário humano”, acrescentou Adamala. “Eu costumava pensar que o sistema imunitário encontraria sempre uma forma de detetar quaisquer biomoléculas invasoras. Não fazia ideia de quão quiral o sistema imunitário era.”
Ao longo de 2023 e 2024, essas conversas informais cristalizaram num grupo de trabalho de 38 cientistas, incluindo Adamala, que em dezembro de 2024 publicou um artigo explosivo na prestigiada revista científica Science, intitulado “Confronting Risks of Mirror Life”, que resumiu as conclusões de um relatório detalhado de 300 páginas elaborado pelo mesmo grupo.
O relatório concluiu que as células espelho poderiam tornar-se uma realidade nos próximos 10 a 30 anos e detalhou as potenciais consequências devastadoras caso bactérias espelho fossem libertadas no ambiente e se propagassem, escapando aos controlos biológicos naturais e agindo como patogénios perigosos.
Desde então, uma organização sem fins lucrativos chamada Mirror Biology Dialogues Fund tem patrocinado uma série de encontros para desenvolver recomendações destinadas a evitar a ameaça que os cientistas acreditam que a vida espelho poderia representar. Embora haja um consenso alargado de que organismos espelho, como bactérias, não devem ser criados, existe grande debate sobre que limites — se é que algum — devem ser impostos à investigação nesta área.
Cenários apocalípticos
Dezenas de especialistas reuniram-se em setembro, em Manchester, Reino Unido, para uma conferência de dois dias sobre engenharia e segurança da vida sintética, a fim de discutir onde deveriam ser traçadas as linhas vermelhas para restringir a investigação de tecnologias que poderiam permitir a criação de organismos espelho.
“Existe a possibilidade de que, com muito trabalho, possamos criar algo que cresça de forma inexorável, se espalhe pelo planeta e substitua ou elimine muitas, muitas formas de vida — incluindo nós, os animais à nossa volta, as plantas e até alguns micróbios”, alertou David Relman, professor de microbiologia e imunologia na Universidade de Stanford, que participou no encontro no Instituto de Biotecnologia da Universidade de Manchester.
Relman, tal como Adamala, foi um dos primeiros membros do grupo de trabalho e recordou que as conversas iniciais foram mantidas em sigilo. “Não queríamos ser alarmistas nem parecer lunáticos”, recordou. “Todos esperávamos descobrir rapidamente alguma falha fatal nesta lógica, mas começou a inquietar-me ao ponto de me tirar o sono.”
A preocupação decorria do facto de que, como a vida natural é quiral, as interações entre organismos naturais e bactérias espelho seriam profundamente imprevisíveis. Embora a primeira bactéria espelho provavelmente fosse extremamente frágil, limitando o seu crescimento e sobrevivência, poderia persistir se tivesse acesso aos nutrientes certos. Em última análise, poderia comportar-se como uma espécie invasora, perturbando ecossistemas sem predadores que a controlassem.
Relman explicou que as bactérias espelho poderiam potencialmente escapar a partes cruciais dos sistemas imunitários de plantas, animais e humanos, que teriam dificuldade em detetá-las ou eliminá-las.
Uma vez dentro de um corpo humano, uma bactéria espelho poderia, hipoteticamente, replicar-se em níveis extremamente elevados, provocando algo semelhante a um choque séptico. As potenciais contramedidas médicas — incluindo a maioria dos antibióticos — são quirais, o que significa que provavelmente não seriam eficazes contra bactérias espelho, embora seja possível produzir versões espelho desses antibióticos.
E embora as medidas de biocontenção, como as usadas por cientistas que trabalham com patogénios perigosos, possam teoricamente impedir que bactérias espelho escapem de um laboratório, essas medidas seriam vulneráveis a erro humano ou uso deliberado indevido.
Apesar de um cenário apocalíptico como este estar longe de ser certo, e de haver grande incerteza sobre os riscos que a vida espelho representaria — dado que ainda não existe —, ninguém conseguiu refutar totalmente esses perigos.
“No início, as pessoas questionavam se essas preocupações seriam realmente tão sérias como pensávamos. Tentámos encontrar falhas, maneiras de provar que estávamos errados”, contou Adamala. “Mas quanto mais analisávamos, mais certos ficávamos — e mais pessoas se juntavam à ideia de que, na verdade, não existe forma segura de criar uma célula espelho.”
Relman classificou a vida espelho como o primeiro risco existencial plausível que encontrou numa longa carreira que incluiu a investigação das cartas com antraz mortais de 2001 e da Síndrome de Havana, uma misteriosa condição de saúde que afetou espiões, soldados e diplomatas em todo o mundo.
Acrescentou que o que lhe dá alguma esperança é o facto de, ao contrário de outras áreas científicas controversas e arriscadas, como a clonagem, a vida espelho ainda não existir — não é uma realidade “aqui e agora” que seria mais difícil travar. “Há uma verdadeira oportunidade de isto não acontecer connosco, a menos que escolhamos fazê-lo.”
Linhas vermelhas
Outros especialistas envolvidos nas discussões sobre vida espelho em Manchester, contudo, consideraram importante agir com cautela e evitar decisões precipitadas que possam travar o progresso científico. Enfatizaram que a investigação destinada a desenvolver moléculas espelho individuais deve ser distinguida daquela que visa criar células ou organismos espelho — embora ambos sejam por vezes englobados sob o mesmo termo de vida ou biologia espelho.
Michael Kay, professor de bioquímica na Universidade do Utah, que se dedica ao desenvolvimento de fármacos — sobretudo contra doenças infeciosas como o VIH — baseados em moléculas em imagem espelhada, afirmou não ser “muito favorável” a linhas vermelhas que bloqueiem completamente uma área de estudo.
“Parece-me que são uma ferramenta demasiado bruta”, observou Kay, referindo-se a regulamentações generalistas.
Como o corpo humano não as reconhece facilmente, moléculas espelho como proteínas e ácidos nucleicos resistem à degradação e são mais estáveis — características úteis para potenciais medicamentos terapêuticos. E, como as proteínas espelho não se autorreproduzem, não representam os mesmos riscos que uma célula espelho. No entanto, Kay receia que, por causa de mensagens pouco claras, a palavra “espelho” passe a ser automaticamente associada a investigação perigosa, limitando a inovação nesta área.
“As moléculas espelho são substâncias químicas inertes com benefícios enormes”, explicou. “Esta investigação ainda está numa fase muito inicial, mas já existem exemplos e há muitas mais em ensaios clínicos. Nos próximos cinco ou dez anos, esta vai ser uma grande classe de medicamentos.”
Kay observou ainda que os riscos das células ou organismos espelho, caso fossem libertados, são desconhecidos. “Este organismo pode simplesmente morrer de fome, o que pensamos ser o mais provável, ou consumir todos os recursos da Terra e competir com toda a vida existente”, assinalou. “É uma margem enorme.”
Contudo, sublinhou a importância das tentativas em curso de ponderar os riscos: “Qualquer esforço que nos dê tempo para compreender melhor e considerar melhor os riscos, e para avançar com mais ponderação no desenvolvimento destas tecnologias — em vez de deixarmos tudo ao acaso —, é benéfico. E temos tempo para isso”, acrescentou. “Isto não é iminente.”
Vida sintética sem espelho
Muitos biólogos sintéticos, incluindo Adamala, procuram criar uma célula sintética — com quiralidade natural — a partir do zero, usando componentes não vivos. O objetivo é desenvolver algo que imite os processos biológicos, de modo a esclarecer a cascata de reações bioquímicas que permitiu o surgimento da vida há centenas de milhões de anos e ajudar a resolver problemas na medicina, na indústria, no ambiente e na investigação fundamental.
“Uma célula sintética seria como um sistema operativo da vida: permitir-nos-ia manipular a biologia numa escala sem precedentes, com uma precisão que não conseguimos alcançar nas células naturais”, explicou Adamala.
“Construiremos modelos de processos celulares, tanto saudáveis como patológicos, para compreender como as células saudáveis podem funcionar melhor e como as doenças se iniciam”, acrescentou.
Segundo John Glass, professor e líder do Grupo de Biologia Sintética do Instituto J. Craig Venter, em La Jolla, Califórnia, é possível que os cientistas atinjam em breve esse marco da célula sintética não espelho — talvez dentro de um ano. E, se uma célula normal com quiralidade natural puder ser criada a partir de moléculas inanimadas, então, em teoria, afirmou, também seria possível criar uma célula em imagem espelhada a partir de moléculas espelho, recorrendo aos mesmos métodos.
Glass recordou que as suas primeiras conversas com Relman, em abril de 2024, sobre os potenciais riscos da vida espelho o deixaram “abalado”. “Fez-me pensar se o trabalho que venho a realizar há anos poderia, um dia, possibilitar o Armagedão bacteriano espelho que tememos”, revelou.
Contudo, a maioria dos especialistas concorda que criar uma célula sintética com quiralidade natural é seguro, porque, se uma bactéria derivada dessa célula entrasse num ambiente natural, estaria sujeita aos mesmos controlos de qualquer ecossistema, tornando-se presa fácil de predadores naturais, como os vírus que atacam bactérias. Assim, não conseguiria propagar-se de forma descontrolada.
Para Glass, uma linha vermelha evidente é que os cientistas se abstenham de criar um ribossoma espelho — uma máquina biológica presente no citoplasma celular que fabrica proteínas. Embora esse avanço ainda ficasse longe da criação de uma célula espelho, defendeu que, se se traçar a linha apenas na última etapa — a criação de uma membrana espelho e a posterior montagem de todas as partes constituintes —, já seria demasiado tarde.
Kay, da Universidade do Utah, tem uma perspetiva diferente. O seu laboratório dedica-se a melhorar a síntese química de proteínas espelho, um processo atualmente muito ineficiente. Como alternativa, está interessado em explorar a criação de um ribossoma em imagem espelhada.
“A ideia é que, se conseguíssemos fabricar um ribossoma espelho, poderíamos utilizá-lo para produzir estes compostos com muito maior qualidade, proteínas mais longas e de forma compatível com aplicações farmacêuticas”, explicou Kay.
“Mas há preocupação, dentro do grupo — e eu ainda não tenho uma posição definida — sobre se isso seria uma ferramenta tão valiosa que tornaria inevitável, ou demasiado fácil para outros, o desenvolvimento da vida espelho”, acrescentou.
Contenção científica
Adamala, juntamente com os seus colegas, optou por não renovar a sua bolsa de investigação, encerrando o trabalho do seu laboratório sobre células espelho. Está agora focada em debates sobre como regulamentar a investigação nesta área.
Pelo que sabe, afirmou, nenhum cientista está a tentar criar uma célula espelho. Em fevereiro de 2025, cerca de uma centena de investigadores, financiadores e decisores políticos assinaram um apelo em que defendiam que “a vida espelho não deve ser criada a menos que futuras investigações demonstrem de forma convincente que não representaria riscos graves”.
Em última análise, assinaturas e autorrestrição poderão não ser suficientes. Adamala, Glass e Relman afirmaram esperar que as suas conversas contribuam para a definição de restrições ou políticas formais, a nível nacional ou internacional.
Da reunião de Manchester não resultou nenhum desfecho concreto, e as discussões continuaram em setembro, num workshop promovido pelo Comité Permanente sobre Avanços e Implicações de Segurança Nacional da Biotecnologia Transdisciplinar, das Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA.
“Praticamente toda a gente concorda que não devemos criar uma célula espelho viva. Esse é o ponto de partida, mas abaixo disso as opiniões divergem muito sobre onde devemos parar a investigação”, afirmou Adamala. “Neste momento, a comunidade científica não consegue realmente chegar a um consenso sobre as linhas vermelhas.”
Relman afirmou que o objetivo é que os esforços proativos do grupo não apenas protejam o planeta de um cenário apocalíptico, mas também contribuam para recuperar parte da confiança que os cientistas perderam junto do público nos últimos anos.
“Não seria ótimo se pudéssemos ser o Ian Malcolm do Parque Jurássico?”, comentou, referindo-se ao matemático fictício interpretado por Jeff Goldblum no filme de 1993, que alerta os outros personagens para os perigos da ambição científica sem limites. “Nós, cientistas… devemos pensar se devemos fazê-lo, não apenas se podemos.”