"Eles estão a fugir e têm medo". Desertores russos entram no Cazaquistão para escapar da guerra de Putin

CNN , Ivan Watson, Rebecca Wright, Tom Booth e Dinara Salieva*
12 out 2022, 09:00
Russos recém-chegados esperam numa fila num centro de registos em Almati, Cazaquistão. (Rebecca Wright/CNN)

No mês passado, Vadim diz que começou a sentir-se deprimido, após o presidente russo Vladimir Putin ter anunciado a mobilização parcial obrigatória, de maneira a enviar centenas de milhares de reservistas para lutarem na Ucrânia.

"Fiquei em silêncio", diz o engenheiro de 28 anos. Explica que simplesmente parou de falar enquanto estava no trabalho. "Estava com raiva e com medo."

Quando a invasão da Ucrânia começou em fevereiro, Vadim disse que se juntou aos protestos nas ruas de Moscovo. Contudo, a ordem de Putin de 21 de setembro para recrutar, pelo menos, 300 mil homens para a guerra, parecia um ponto sem retorno.

"Nós não queremos esta guerra", diz Vadim. "Não conseguimos mudar algo no nosso país, embora tenhamos tentado."

Decidiu que só lhe restava uma opção. Vários dias após a ordem de mobilização obrigatória de homens, Vadim despediu-se da avó e deixou a casa em Moscovo, talvez para sempre.

Vadim, 28 anos, é um engenheiro moscovita

Vadim e o amigo Alexei viajaram, o mais depressa que conseguiram, para a fronteira da Rússia com a antiga república soviética do Cazaquistão. Ali, esperaram três dias numa fila para atravessarem a fronteira.

"Fugimos da Rússia porque queremos viver", diz Alexei. "Temos medo de que possam enviar-nos para a Ucrânia."

Ambos pediram para não serem identificados, de maneira a protegerem os entes queridos deixados na Rússia.

Na semana passada, na capital comercial do Cazaquistão, Almati, ficaram na fila de um centro de registos do governo com mais de 150 outros russos recém-chegados. Fazem parte do êxodo de desertores.

Russos recém-chegados esperam numa fila num centro de registos em Almati, Cazaquistão (Rebecca Wright/CNN)

De acordo com o governo cazaque, mais de 200 mil russos entraram no Cazaquistão, após o comunicado de Putin sobre a mobilização obrigatória de reservistas.

Não é difícil identificar os russos recém-chegados na principal estação ferroviária de Almati. Ao que parece, a cada hora, jovens homens eslavos saem dos comboios com mochilas. Parecem um pouco confusos enquanto consultam os seus telemóveis, de forma a obterem indicações.

Chegam de várias cidades russas: Iaroslavl, Togliati, São Petersburgo e Cazã. Quando lhes perguntam o motivo pelo qual partiram, todos dizem a mesma coisa: mobilização.

"Não quero fazer parte disso", diz um programador informático de 30 anos chamado Sergei. Sentou-se num banco, fora da estação de comboios, com a mulher Irina. O casal, que segura nas mochilas e nas almofadas enroladas, disse que esperava viajar para a Turquia. Com sorte, talvez pudessem pedir vistos Schengen para viajar na Europa.

Sergei e a mulher Irina, na parte de fora da estação de comboios, em Almati, Cazaquistão (Rebecca Wright/CNN)

A maioria dos novos exilados russos falou com a CNN. No entanto, pediram anonimato.

Giorgi, um escritor com mais de 30 anos, de Ecaterimburgo, diz que fugiu, na semana passada, para o Cazaquistão. Fê-lo depois de sofrer ataques de pânico por pensar que poderia ser forçado a combater.

"Como posso participar de uma guerra sem querer vencê-la?”, pergunta Giorgi.

Agora, tenta encontrar um apartamento em Almati. Espera que a mulher e seu filho possam visitá-lo no inverno.

Perante o desafio de tentar ganhar a vida numa cidade estrangeira, Giorgi reconhece que as suas dificuldades não são tão grandes quando comparadas com as que os ucranianos enfrentam. Estes foram forçados a fugir, em grande escala, após a Rússia ter atacado as suas cidades e vilas.

Ao contrário dos ucranianos, que lutam bravamente pela sua pátria, Giorgi diz que os desertores russos como ele podem ser vistos, simultaneamente, como "refugiados e agressores" devido à sua cidadania.

"Eu não apoiei a guerra dele, nunca o fiz. No entanto, de alguma maneira, ainda estou ligado ao meu país por causa do meu passaporte", diz Giorgi.

Giorgi, um escritor com mais de 30 anos, de Ecaterimburgo, Rússia, deixou a mulher e o filho para começar uma vida nova em Almati (Ivan Watson/CNN)

Hospitalidade da Ásia Central

Tecnicamente, os novos exilados russos não são refugiados. Em parte, isto deve-se ao facto de o governo russo ainda não estar, oficialmente, em guerra com a Ucrânia. De acordo com o Kremlin, a Rússia está a levar a cabo uma "operação militar especial" contra o seu vizinho ucraniano.

Os cidadãos russos podem entrar no Cazaquistão, por curtos períodos de tempo, com os documentos nacionais. O presidente do país da Ásia Central instou os seus compatriotas a receberem os recém-chegados.

"A maioria dessas pessoas é forçada a fugir por causa desta situação desesperante. Devemos cuidar e garantir a segurança desta gente”, disse, no final de setembro, o presidente Kassym-Jomart Tokayev.

Um esforço informal surgiu por todo o Cazaquistão, de maneira a ajudar a alimentar e abrigar, temporariamente, os russos.

"Eles estão a fugir e têm medo", diz Ekaterina Korotkaya, uma jornalista em Almati, que ajudou a coordenar o auxílio aos russos recém-chegados.

Almira Orlova, uma nutricionista de Almati, diz que ajudou a encontrar alojamento para pelo menos 26 russos.

"Eles chegavam ao meu apartamento, ficavam lá algum tempo, mas depois, ficavam nos apartamentos dos meus amigos", diz ela.

No entanto, Almira destaca que não recebeu a mesma hospitalidade quando se mudou, há vários anos, com o seu marido russo para Moscovo. Disse que os proprietários russos se recusaram a alugar os seus apartamentos, uma vez que era "asiática".

"Quando lhes dizia que sou cazaque, os senhorios diziam que lamentavam muito, mas que não podiam. Durante dois meses, não conseguimos encontrar um apartamento", diz Orlova.

"Cidadãos da Ásia Central que foram para a Rússia, tendo em vista a migração de mão-de-obra, enfrentam uma grave discriminação na Rússia", diz Kadyr Toktogulov, ex-embaixador do Quirguistão nos Estados Unidos e no Canadá.

A antiga república soviética do Quirguistão também viu uma grande "migração reversa" de russos a desertarem.

"Não acho que os russos desertores que vêm para a Ásia Central terão o mesmo tipo de problemas, nem enfrentarão o mesmo género de discriminação que os cidadãos das repúblicas da Ásia Central enfrentam, há anos, na Rússia", crê Toktogulov.

Diz que a sua própria família arrendou, há pouco tempo, um apartamento em Bisqueque, capital do Quirguistão, a um russo recém-chegado.

Fuga de pessoas qualificadas

Especialistas no mercado imobiliário dizem que o êxodo de exilados russos já fez disparar os preços em Almati, em Bisqueque, bem como noutras cidades.

O impacto também se sente no mercado imobiliário comercial, uma vez que muitos russos procuram trabalhar remotamente.

"Não são apenas as pessoas que estão a chegar. As grandes empresas russas, bem como os negócios corporativos, estão a mudar as suas empresas para o Cazaquistão", diz Madina Abilpanova, sócia-gerente da DM Associates, uma empresa imobiliária com sede em Almati.

Madina Abilpanova, sócia-gerente na empresa DM Associates, em Almati (Rebecca Wright/CNN)

Diz que as empresas russas procuraram-na, de maneira a deslocarem centenas dos seus funcionários, numa tentativa de protegê-los da mobilização obrigatória.

"Eles já estão prontos para se mudarem. Pagam o que quisermos, mas nós não dispomos de locais", diz Abilpanova.

Fala com a CNN no “Hub” da cidade, um espaço de “co-working” no centro de Almati. Aqui, as secretárias estão cheias de jovens russos, que trabalham, silenciosamente, nos seus computadores.

Russos recém-chegados trabalham, em Almati, num espaço de “co-working” (Rebecca Wright/CNN)

Abilpanova diz que todos estes clientes chegaram, nas últimas duas semanas, ao Cazaquistão. Enquanto falava, outro jovem russo, que carregava uma mochila enorme, entrou pela porta. Os donos do negócio tiveram de mandá-lo embora porque não havia espaço.

"Isto é como um ‘tsunami’ para nós", diz Abilpanova. "Todos os dias, chegam assim."

Vadim, o engenheiro moscovita que chegou há pouco ao Cazaquistão, diz que a sua empresa está a pagar-lhe o ordenado, bem como a outros 15 funcionários e esta quer transferi-los para o escritório em Almati.

“O meu patrão é contra o governo russo”, diz Vadim.

Ao contrário de muitos outros russos que, de repente, tiveram de fugir, para já, Vadim ainda recebe o seu salário.

No entanto, não sabe quando, ou se voltará a ver a sua avó, uma vez que esta se encontra em Moscovo.

"Desejo muito vê-la novamente", diz Vadim, com os olhos cheios de lágrimas. "Mas não sei quanto tempo de vida lhe resta. Espero poder voltar um dia para, pelo menos, enterrá-la."

*Mayumi Maruyama, da CNN, colaborou nesta reportagem

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