"Alguma coisa maior pode vir aí" entre duas potências nucleares após a escalada entre Índia e Paquistão

7 mai, 15:35

A disputa pela Caxemira volta a ameaçar a estabilidade do sul da Ásia. Especialistas ouvidos pela CNN Portugal analisam as razões por detrás do aumento das tensões entre Índia e Paquistão e o risco de evoluir para uma guerra alargada

O ataque da Índia ao Paquistão representa mais do que apenas uma operação militar. É desta forma que o professor de Relações Internacionais Tiago André Lopes vê aquilo a que chama de demonstração de força por parte do governo de Narendra Modi, numa manobra de união nacional contra um inimigo comum.

Isto depois de a Índia ter lançado nove ataques localizados contra território paquistanês, na sequência de um ataque que matou 26 turistas, 25 deles indianos, na região disputada de Caxemira, que, mais de sete décadas após a independência dos dois países, continua a ser o epicentro de uma das disputas territoriais mais longas e inflamadas do mundo.

Uma nova escalada militar reacendeu o alerta global: a Índia lançou uma série de ataques com mísseis e bombardeamentos aéreos sobre alegados "alvos terroristas" em território paquistanês, aumentando a tensão entre dois dos poucos países que têm armas nucleares nos seus arsenais.

“Há um apoio transversal na Índia, desde os partidos da oposição às estrelas de Bollywood, que legitima a ação desta madrugada”, afirma à CNN Portugal Tiago André Lopes, falando até da indústria do cinema para ilustrar como a Operação Sindoor reúne consenso em território indiano.

Já o major-general Agostinho Costa lembra à CNN Portugal a “desproporção estratégica” entre os dois países: “A força está do lado da Índia. Estamos a falar de uma capacidade de ataque bastante superior seja em número, seja em tecnologia. Embora estejamos a falar de dois países que são potências nucleares, há uma diferença substancial".

De facto, os números provam isso. Segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, a Índia tem 1,4 milhão de militares ativos nas suas forças de Defesa: 1.237.000 no Exército, 75.500 na Marinha, 149.900 na Força Aérea e 13.350 na Guarda Costeira. Já o Paquistão, tem menos de 700 mil militares, dos quais 560 mil estão no Exército, 70 mil na Força Aérea e 30 mil na Marinha.

Em relação ao arsenal terrestre, o da Índia inclui 9.743 peças de artilharia, contra 4.619 do Paquistão, e 3.740 tanques, em comparação com os 2.537 do Paquistão.

Relativamente à força aérea, enquanto a Índia possui 730 aeronaves com capacidade de combate, a frota do Paquistão conta com 452.

Já a marinha indiana possui 16 submarinos, 11 contratorpedeiros, 16 fragatas e dois porta-aviões, enquanto a do Paquistão apenas tem oito submarinos e 10 fragatas.

Para o major-general Agostinho Costa, o atentado foi “um casus belli perfeito para Modi endurecer a retórica e agir” contra o Paquistão. 

De facto, Nova Deli classificou a ação desta madrugada como uma resposta "limitada e cirúrgica necessária ao terrorismo transfronteiriço" visando apenas bases de grupos militantes responsáveis pelo ataque em Pahalgam. Islamabad, no entanto, encarou a Operação Sindoor como uma agressão grave e já prometeu retaliar "no momento e local de sua escolha", tendo dado 'carta branca' ao Exército para agir sem precisar de aval do Governo.

O xadrez diplomático

E como ficam as potências perante o perigo de uma guerra entre dois países desta dimensão? Observam, mas reagem pouco, na opinião dos especialistas ouvidos pela CNN Portugal. Especialmente a União Europeia, que consideram "estar adormecida". 

“A União Europeia, para não variar, ainda não disse nada, não ouviu nada, não sabe de nada. Já vimos isto na guerra do Médio Oriente, já vimos isto no conflito do Sudão, por exemplo. A União Europeia infelizmente parece ser monotemática e só conseguir reagir à guerra na Ucrânia", critica Tiago André Lopes.

"A União Europeia não tem uma estratégia muito bem definida, normalmente alinha-se pela estratégia norte-americana. Como a estratégia de Trump é de ambivalência, porque certamente não quer hostilizar o Paquistão, uma vez que é um tradicional aliado, não vemos nenhuma posição clara por parte da União Europeia", analisa o major-general Agostinho Costa. 

A China, com interesses nos dois lados, vai adotar uma postura de neutralidade pragmática no conflito, de acordo com os analistas. É parceira comercial de Islamabad e membro dos BRICS com Nova Deli, apesar de ter as suas próprias disputas territoriais com a Índia. O Irão também mantém o silêncio, mas observa de perto: partilha fronteira com o Paquistão, interesses estratégicos com a Índia e uma minoria xiita que pode ser afetada.

"O mais interessante até agora é que as várias potências, quer regionais quer internacionais, não escolheram lados. Não há um contrato de espingardas. Há um pedido generalizado para que ambos os países tenham muito cuidado", afirma Tiago André Lopes.

O Reino Unido, no entanto, destaca-se por ter afirmado, esta quarta-feira, estar "pronto" a intervir para "acalmar" o conflito, oferecendo os seus esforços de mediação.

Guerra à vista?

O cenário, para já, é de retórica agressiva com ações limitadas. A intenção, dizem os especialistas, parece ser evitar uma guerra aberta, passando antes por manter a pressão elevada para fins internos e estratégicos.

“As duas potências estão a medir forças sem querer cruzar a linha do irreversível. Não creio que cheguemos a uma ameaça nuclear. O próprio Paquistão, tendo em conta a disparidade estratégica de forças, poderá encetar mais uma ou outra ação de demonstração e a coisa morre ali", analisa Agostinho Costa.

Tiago André Lopes, por outro lado, tem uma visão mais sombria. "A governadora da província paquistanesa de Punjab decretou estado de emergência. É filha do anterior primeiro-ministro e sobrinha do atual, portanto, é uma pessoa que tem informação privilegiada. Se ela pede à população para não sair de casa, para estar alerta e atenta aos serviços de informação e de emergência do país é porque alguma coisa maior pode vir aí".

"Além disso, o comunicado do comité de segurança do Paquistão, ao dizer que os ataques [desta madrugada] foram encetados contra falsos alvos, contra campos terroristas imaginários, está a dizer que os nove alvos que a Índia disse que eram legítimos, que eram campos terroristas, em bom rigor não são alvos reais, são apenas e puramente civis. Não quer dizer que isto vá já para uma escalada militar, mas a porta fica aberta. Resta-nos esperar para ver", conclui.

Uma ferida histórica que nunca cicatrizou

A disputa pela região da Caxemira remonta à descolonização da Índia britânica em 1947.

Na altura, os britânicos deixaram para trás uma complexa teia de principados autónomos. Entre eles, o principado de Caxemira, governado por um marajá (um grande rei) hindu, apesar de a maioria da população ser muçulmana. Perante a invasão de forças tribais apoiadas pelo recém-criado Paquistão, o marajá optou por juntar-se à Índia, em troca de proteção militar. Este episódio desencadeou a primeira guerra entre os dois países, terminando com um cessar-fogo mediado pela ONU e a divisão de Caxemira em duas áreas administrativas: uma controlada pela Índia e outra pelo Paquistão.

Desde então, o território tem sido palco de múltiplos confrontos, incluindo novas guerras em 1965 e em 1999, além de uma constante tensão nas fronteiras. A Índia considera a totalidade de Caxemira parte integrante do seu território nacional, enquanto o Paquistão continua a reivindicar a região como sua e a defender o direito de autodeterminação do povo caxemir.

A situação agravou-se em agosto de 2019, quando o governo indiano revogou o artigo 370 da Constituição, que concedia autonomia especial ao estado de Caxemira. A decisão foi recebida com protestos locais e fortes críticas do Paquistão, que denunciou a medida como uma violação dos direitos dos muçulmanos caxemires. Desde então, o território tem gerando preocupações entre organizações internacionais de direitos humanos.

O rastilho voltou a acender-se a 22 de abril, quando três homens armados abriram fogo contra turistas na cidade de Pahalgam, matando 25 indianos. O ataque, que a Índia atribui a islamitas apoiados pelo Paquistão, é o mais mortífero contra civis desde 2000 naquele território indiano de maioria muçulmana e levou a Índia a suspender o Tratado das Águas do Indo, a expulsar diplomatas paquistaneses e a cancelar vistos. Do lado do Paquistão, a resposta veio com o encerramento do espaço aéreo e o congelamento de acordos bilaterais. 

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