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Cavaco e o último cavaquista

3 jun 2022, 22:40

A passagem do tempo num ofício tão proclamatório quanto a política provoca, com alguma inevitabilidade, uma inversão de papéis frequentemente envolta em ironia. Na entrevista de Aníbal Cavaco Silva à CNN Portugal, esta noite, um observador mais historicamente atento detetaria essa tendência. Cavaco, que foi chefe de um partido e líder de um país, está ali sozinho ‒ não que isso o apoquente ‒ a fazer algo que mais ninguém faz por ele: defender o seu legado histórico. Como o mais reformista e europeísta dos primeiros-ministros do pós-25 de Abril, tal não deveria ser tarefa difícil ou tão solitária. O facto é que é.

Ele, que conviveu com as tropelias de um então carismático líder da JSD chamado Pedro, acabou a defender esse Pedro enquanto Passos Coelho, chefe de um governo sob intervenção externa entre 2011 e 2015. Ele, que liberalizou a imprensa e a livrou do sufoco do Estado, não hesita em acusar “alguma comunicação social” de conivência com o Partido Socialista, que foi contra essa liberalização. Ele, que assinou dois volumes de memórias em Belém defendendo uma presidência silenciosa, tornou-se um ex-chefe de Estado tão barulhento quanto Soares. Ele, que se diz “fora da vida política”, pronunciou-se em 2019 sobre os resultados do seu partido e, agora, sobre a sua nova liderança. Ele, que não era um político, não resiste a regressar à arena na qual passou mais de metade da sua vida adulta: o combate político.

Passos, como ele, nunca se disse “de direita” ‒ apesar de a ter representado e dominado durante meia década. Costa, como ele, é dono de uma maioria absoluta ‒ mesmo que não planeie, nem de longe nem de perto, usá-la com propósitos semelhantes. Aquilo que o separa do primeiro é o tempo: Cavaco governou depois de se ter “apertado o cinto”; Passos Coelho não fez outra coisa que não abrir novos furos nesse cinto. Aquilo que o separa do segundo é a política: Cavaco quis, estruturalmente, transformar o país para melhor. Costa, numa inércia muitíssimo conservadora, só quer que o país não fique pior.

A resposta do primeiro-ministro ao artigo que o ex-Presidente lhe dirigiu, também esta semana, não foi inocente. Cavaco, legitimamente, preocupa-se com “o seu lugar na História”. Não é mentira. Diante de tantos que fazem por ignorá-la ou até vilipendiá-la, compreende-se. O seu último livro publicado (“Uma experiência de social-democracia moderna”, 2020) é uma autêntica súmula das grandes reformas e obras públicas por si orquestradas. Nunca mais, num Conselho Europeu, Portugal voltou a falar de igual para igual com gigantes como a Alemanha e a França. Tudo isso é verdade, tudo isso está escrito e documentado e tudo isso foi prontamente esquecido. Ora apagado pela presidência verbalmente infeliz de Cavaco Silva, ora diluído no caldo de comunicação profissional do PS, ora, simplesmente, porque o tempo passou.

Cavaco, pelo contrário, cá continua. Claro, sobre os erros de Rui Rio, como nenhum outro no PSD. Feroz, sobre o imobilismo de Costa, como nenhum outro na oposição. Sozinho, como nenhum outro na praça política, em ambas essas batalhas. Talvez por ter exercido funções durante mais tempo que os demais lhe custe ver o país num atraso face aos restantes na União Europeia. Talvez pela ligação que não esconde aos cinco netos o preocupe um Portugal com um futuro mais estreito do que aquele que entregou a António Guterres, em 1995. Talvez por ter gerido uma das mais eficazes máquinas de poder na história da democracia o importune um PSD em cacos, como aquele que Rio deixa a Luís Montenegro este verão.

Estranhamente, e é essa a maior ironia do último capítulo da sua saga, Cavaco é o último dos cavaquistas. Alguma direita, ávida de populismos mais instantâneos, não se identifica com o registo tecnocrata do professor. O próprio PSD, ciente do deserto que tem pela frente, só pode ter pudor em usar a expressão que Cavaco estreou na existência laranja: “maioria absoluta”. E o mundo já não permite a gestão de silêncios na qual deixou escola. Ninguém o defende e poucos o evocam. Quem o lembrará depois dele?

Sobra Cavaco Silva sobre Cavaco Silva, como “ex” tudo o que os demais ambicionam, explicando-lhes por que dificilmente o serão ‒ ou, no caso de Costa, farão. Tal, naturalmente, não colhe muitos aplausos. Cavaco, pelos vistos, pouco se importa.

Não era agora que ia ser diferente.

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