Folhetim de Voto: Uma campanha paranormal

26 jan 2022, 06:25
António Costa no Mercado de Matosinhos (Lusa/Miguel A. Lopes)

Há uns anos Pedro Passos Coelho leu nas borras de café que vinha aí o diabo. Muito se tem falado do diabo por estes dias, mas há muitos mais fenómenos paranormais nesta campanha, escreve o jornalista de política Filipe Santos Costa, na sua coluna de análise e opinião diária à disputa eleitoral. Faltam 4 dias para as eleições

Possessão. Há décadas que Cavaco Silva paira sobre a política portuguesa. Não é apenas um fantasma que anda por aí, é mesmo um espírito que de vez em quando encarna em políticos no ativo. Ontem foi Rui Rio a ser possuído. Atente-se nesta sua declaração aos jornalistas: “António Costa está na iminência de perder as eleições. E acho que ele, por aquilo que fez na política ao longo de toda a sua vida (...) podia perdê-las com dignidade. Espero que ele aproveite os últimos dias para, no caso de as perder, que é bem provável, as perca com dignidade.” Parecia Cavaco Silva a falar sobre Mário Soares, nos tempos em que a coabitação entre ambos fazia faísca: "Vamos ajudar o senhor Presidente a acabar o mandato com dignidade."

Podemos considerar que a citação cavaquista não surpreende, sendo Rio um subproduto do cavaquismo - nunca foi um protagonista desses tempos, mas chegou ao Parlamento nas maiorias absolutas de Cavaco, são ambos economistas, autoritários, de perfil espartano, com cabeça de contabilista e avessos a tudo o que cheire a cultura ou cosmopolitismo. Durante muito tempo, Cavaco alimentou discretamente a ideia de que Rio seria um bom líder para o PSD. Mas isso acabou assim que Rio chegou, de facto, a líder do PSD. Em conversas de bastidores Cavaco não esconde a desilusão com Rio, e tornou pública essa opinião num artigo arrasador que publicou no Expresso quando Rangel e Rio disputaram a liderança do PSD. Segundo Cavaco, a oposição ao governo era “débil e sem rumo, desprovida de uma estratégia consistente”. Cavaco pode ter deixado de ser rioísta, mas Rio não deixou de ser cavaquista.

 

Pecado mortal. Pelos vistos, calha a todos. Pelos vistos, ninguém aprende. A soberba é um pecado mortal, mas não há quem lhe escape. Há uns dias era António Costa que cantava de galo a pedir maioria absoluta em sonhos de auto-suficiência - correu-lhe mal. Ontem, foi Rui Rio a falar como se já tivesse ganho. Não lhe basta já ter o governo feito (“a 90%”), agora dá conselhos a António Costa sobre como deve comportar-se um derrotado. Rio lá sabe. Nos últimos anos teve derrotas de sobra.

 

Profecia. Francisco Rodrigues dos Santos continua a fazer profecias sobre o seu futuro. “Quando for, como espero, ministro da Defesa”, disse ontem, mais uma vez, salivando com a cenoura com que Rui Rio lhe acenou. Talvez se sinta ungido por Adelino Amaro da Costa e Paulo Portas, os dois antigos dirigentes do CDS que Chicão gosta de citar por terem ocupado essa pasta. Houve um terceiro dirigente do CDS que foi ministro da Defesa Nacional - Diogo Freitas do Amaral. Mas, deste, Chicão não fala. Vade retro!

 

Regressão. Numa ação de campanha, Rodrigues dos Santos fez declarações à comunicação social rodeado de apoiantes (suponho) que usavam máscaras de António Costa caricaturado com traços demoníacos. Não pareceu assustador, nem sequer divertido. Apenas infantil. Talvez resultasse numa campanha para a jota.

 

Retrocognição. Depois da entrevista de José Sócrates à CNN Portugal na semana passada, pareceu-me ter visto outra vez Sócrates ontem à noite no programa Decisão 22, a insinuar que um painel de comentadores foi escolhido com um determinado objetivo político. Afinal era Pedro Silva Pereira. Só lhe faltou falar em “jornalismo travestido”. Pode ter sido um breve episódio de retrocognição. O passado nunca morre.

 

Ressurreição. Por falar em nunca morrer, Santana Lopes voltou e ameaça voltar ao PSD. É a prova provada de que em política nunca há mortes definitivas. Ele bem avisou que ia andar por aí.

 

Papão. Feitos os acertos táticos a que as sondagens o forçaram - sobre isso escrevi ontem aqui - António Costa deu à CNN uma entrevista em que se apresentou com o discurso que levará até ao último dia de campanha. Depois de muitos solavancos, apresentou um argumentário bem oleado. Com três componentes: do seu lado, a obra feita e a promessa de continuidade (materializada no OE que está pronto a entregar); do lado da esquerda, a responsabilização - mas mais suave - de BE e PCP pela crise política; do lado do PSD, a colagem ao Chega. O Chega volta a ser o papão agitado por Costa, apoiado num caso concreto - os Açores - e em matemática simples: nunca haverá uma maioria de direita sem os votos do Chega.

 

Dr. Frankenstein. Paulo Rangel apresentou ontem à noite uma teoria que, não sendo original, não deixa de ser imaginativa (ou “inventiva”, como comentou Silva Pereira): PS e Chega “são aliados objetivos”. Dois partidos terem “interesses convergentes” - neste caso, ambos querem travar o crescimento do PSD - não faz deles “aliados objetivos”. Convém não esquecer a história: se Ventura é hoje quem é e tem a relevância que tem (qualquer que ela seja) é graças ao PSD de Passos Coelho e do PSD de Rui Rio. Foi Passos quem o lançou na arena política, como candidato do PSD à Câmara de Loures, quando já era bastante evidente qual o seu “pensamento” (de tal maneira que o CDS, na altura, rompeu uma coligação que já estava assinada nessa autarquia). Foi Rio quem encostou o PSD ao PS, hostilizando objetivamente a direita do seu partido, e abrindo caminho para que o Chega conquistasse uma parte desse eleitorado. O monstro ganhou vida porque houve quem o criasse e alimentasse.

 

O caçador de Venturas. Já antes António Costa tinha alertado que o maior risco de partidos como o Chega é quando começam a condicionar o discurso de partidos do centro. Uma espécie de possessão demoníaca, portanto. Agora, Costa vai mais longe. Não se limita a denunciar o risco de possessão do PSD por parte do Chega; apresenta-se como Costa, o caçador de Venturas. Prometeu, “com orgulho”, que será “o principal inimigo do Chega”. 

 

Vodu. Ao voltar a colocar o Chega como “principal inimigo”, Costa está sobretudo a traçar mais um contraste com Rio. É uma espécie de vodu político: espeta a faca num para atingir o outro.

 

Reencarnação. Num comício em Vila Real, a terra onde Passos Coelho foi cabeça de lista, os socialistas esforçaram-se por demonstrar que Rio é uma espécie de reencarnação de Passos Coelho - mas em pior, porque Passos nunca admitiu entender-se com a extrema-direita, avisou o líder socialista local. Com tanto líder passado a assombrá-lo - já para nem referir as constantes aparições de Francisco Sá Carneiro, mesmo sem mesa de pé de galo - talvez Rio precise mesmo de ir à bruxa. Ou aproveitar o regresso de Santana para lhe pedir o contacto da cartomante que em tempos o aconselhava.

 

Vampirismo útil. António Costa deixou de apelar à maioria absoluta, já bate menos nos antigos aliados, e aliviou o apelo ao voto útil à esquerda, mas o efeito do voto útil continua. O taco-a-taco com o PSD nas sondagens pode ser o argumento mais eficaz para esse objetivo. Para uma parte do eleitorado de esquerda, o susto de uma vitória de Rio pode ser o melhor catalisador do voto útil. E é essa a dinâmica que se vê nos últimos dias na tracking poll da CNN Portugal. Como comentava o Sebastião Bugalho ontem à noite, “António Costa continua a sugar votos à esquerda”. Boa escolha de verbo.

 

Levitação. Por várias localidades onde passa, Costa tem sido levantado em ombros. O fenómeno começou quando o PS estava a cair nas sondagens. Agora, é quase da praxe Costa ser levado como santo num andor. Mas no caso deste “santo”, é ele quem faz as promessas. E tem prometido muito: aumentos de pensões, aumento do salário mínimo, mecanismos para o aumento do salário médio, reduções de impostos, mais verbas para o SNS, mais verbas para a educação, melhores serviços públicos… Quanto mais promete mais levita?

 

Psique. João Cotrim Figueiredo quer ser o Viagra do PSD. Para quê? Até tenho medo de perguntar. Mas registo que temos aqui um partido moderno, desempoeirado, que para garantir ereções não recorre a macumbas, nem a pais de santo, nem a mezinhas, mas à ciência. A questão é que muitas vezes o problema está na cabeça. E, para isso, não há Viagra que valha.

 

Dr. Rio e Sr. Rui. Por falar em psique, estamos a assistir nesta campanha a um curioso caso de dupla personalidade. Ou a aparência disso. O Dr. Rio crispado e autoritário, zangado com meio-mundo e “perseguido” pelo mundo quase todo - incluindo jornalistas, magistrados, sondagens e correlegionários de partido -, desapareceu. Em seu lugar temos o Sr. Rui, um simpático galhofeiro, que faz piadas à moda dos anos 80 e que fala do seu gato Zé Albino por tudo e por nada. Não sou só eu a notar esta transfiguração. No editorial de hoje do Público, Manuel Carvalho fala sobre este “Rui Rio paz e amor” (numa referência à manobra de marketing que há uns anos transformou o Lula da Silva radical e crispado num candidato com discurso de Miss Mundo).

“Rui Rio já não é o político que tentou criar no Porto uma democracia autoritária, na qual jornalistas mais críticos eram filmados e expostos nos placards da autarquia; onde os arrumadores deviam ser ‘escorraçados’ ou detidos para identificação; onde colunistas ou atores foram processados por lhe dirigirem palavras duras – e absolvidos em nome da liberdade de expressão; onde os apoios municipais exigiam que os seus destinatários se ‘abstivessem’ de criticar a câmara. Rui Rio também já não é o político que reclamou a suspensão de eleições nas câmaras endividadas, que limpou das listas de deputados os seus opositores internos e transformou o PSD numa máquina fiável, obediente e previsível”, elenca o diretor do Público, sobre esta admirável transformação. No Facebook, o jornalista Paulo Moura conta esta experiência com Rio, que mostra a sua verdadeira natureza. Neste caso não há mistério, nem assombração. É só mesmo encenação. É Rui Rio - o “genuíno”, o “autêntico” - a cumprir uma bem engendrada encenação de campanha.

 

Conspiração. A campanha do PAN está a atravessar uma fase difícil. Esta semana surgiu a informação de que uma das empresas agrícolas de Inês Sousa Real pediu autorização para utilizar um inseticida sintético que é considerado perigoso, e outra libertou no ecossistema uma subespécie de abelhas que pode ameaçar as espécies nacionais. A líder do PAN queixa-se de que o partido estará a ser vítima de uma “campanha de desinformação. Isto não acaba sem aparecerem agroglifos nas plantações de Inês Sousa Real.

 

Morte cerebral. Ontem houve momentos de tensão entre apoiantes do Chega e os jornalistas que acompanham a campanha do partido. Se há afirmação que hoje se pode fazer sobre o fenómeno Chega, é que foi em larga medida catapultado por uma cobertura mediática muito maior do que o peso ou a influência real do partido justificariam. Mas os apoiantes do Chega não estão nisto para pensar nesses pormenores (às vezes, desconfio que não estão nisto para pensar). Não são apenas negacionistas, xenófobos, racistas - também atacam quem mais fez pela promoção de André Ventura e do seu partido. Na literatura fantástica, seriam retratados como um exército de zombies em morte cerebral. Porém, isto não é literatura. Mas não deixa de ser fantástico.

 

Frase do dia. “É tempo de campanha eleitoral, voltam as promessas. São tão vazias como a carteira dos trabalhadores quando se aproxima o fim do mês.”

João Ferreira

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