Catarina voltou a cantar e a tocar guitarra, depois de quase ter morrido às mãos do padrasto, como aconteceu com a mãe. "Consegui vencer uma batalha mortal, literalmente"

2 jun 2024, 08:00
Criança

A história de Catarina é trágica. Com apenas 16 anos conseguiu enganar a morte, mas perdeu a mãe. Uma agressão brutal do padrasto, com um taco de basebol, quase lhe roubou a vida. A mãe não teve a mesma sorte. Catarina e os três irmãos ficaram sozinhos. A família, do outro lado do Atlântico, lutou por eles e a justiça deu-lhes um novo caminho para andar

“Eu consegui vencer uma batalha mortal (literalmente) e sei que você também consegue vencer a sua (seja ela qual for)”. Estas são palavras que Catarina (nome fictício) escreveu nos últimos dois anos e revelou à CNN Portugal em exclusivo. Parecem pesadas para uma jovem de 16 anos, mas são também de esperança. Perdeu a mãe, quase morreu às mãos do padrasto e vai viver com sequelas para o resto da vida. A justiça foi lenta, mas chegou. O padrasto foi condenado à pena máxima – 25 anos – e Catarina e os três irmãos foram viver para o Brasil, recomeçar a vida no outro lado do Atlântico.

Quase dois anos de espera e uma decisão “muito festejada”. Desde a morte da mãe que o seu pai e a família da mãe que vivia no Brasil queria a guarda de Catarina. Mas não só. Queria também a dos seus três irmãos, mais pequenos. No final de janeiro deste ano, no processo de família, o tribunal acabou por aceitar a saída do país dos quatro menores. “A decisão que finalmente permitiu o repatriamento das crianças para o Brasil foi muito festejada. No fundo, sentiram-se todos libertados e, do meu ponto de vista, a justiça estava em falta para com estas crianças, foi demasiado tempo de espera”, recorda à CNN Portugal Núbia Nascimento Alves, advogada da menor.

A meio do mesmo mês, o padrasto já tinha sido condenado à pena máxima pela morte da mãe de Catarina, pela brutal agressão à jovem e por abuso sexual também sobre ela. Perante a morte não há reparação. “Qualquer que fosse o resultado, diante de tamanha tragédia nunca poderia ser um desfecho feliz. Foi a decisão correta, foi a possível”, considera a advogada.

"Antes de dizer que não consegue, pelo menos tente"

Desde sempre apaixonada por artes, Catarina usa as palavras para exprimir o que tem dentro de si e escreve, escreve muito. Com a CNN Portugal partilhou algumas mensagens que gostaria que chegassem a mais vítimas de violência doméstica: “Às vezes precisamos de continuar firmes, principalmente nos momentos mais difíceis. É aí que temos de nos manter fortes o suficiente para aguentar com todo o chumbo que cai sobre nós. Não é nas horas boas e tranquilas que vamos precisar de toda essa resistência. Antes de dizer que não consegue, pelo menos tente.”

A família chegou a Portugal em 2019. O que deveria ser um destino de uma vida melhor, tornou-se num destino fatal para a mãe de Catarina. Uma perda irreparável que a jovem tenta ultrapassar: “Perdas constantes. Quando perdemos muitas coisas importantes para nós, acabamos por nos ‘acostumar com a perda’ e começamos a esperar que perderemos algo a cada momento. Mas isso é apenas o nosso mecanismo de defesa. Mas também temos de ter fé em alguns momentos.”

Durante vários meses, Catarina esteve afastada dos irmãos. Todos filhos da mesma mãe e os três mais novos do padrasto da adolescente. Catarina lutou semanas pela vida numa cama de hospital e depois foi colocada numa instituição, separada dos três irmãos. A dada altura ficou à guarda uma tia-avó, que veio para Portugal para a apoiar. Era com esta tia-avó, que também é sua madrinha, que Catarina viveu no Brasil, juntamente com a mãe, até aos três anos de idade. 

Foram meses difíceis e o padrasto também foi ouvido antes da decisão final. “Apesar do padrasto ter as responsabilidades parentais limitadas, a sua audição era obrigatória. Desta forma, concordou com a entrega dos filhos à guarda de uma tia-avó, permitindo que voltassem ao Brasil”, conta Núbia Nascimento Alves. 

Ida para o Brasil "era a única alternativa capaz de minimizar o sofrimento" dos quatro irmãos

E o que levou o juiz a tomar essa decisão? “O Tribunal entendeu que foi alcançada a estabilidade emocional e afastada a situação de risco em que as crianças se encontravam, autorizando o regresso ao Brasil. A decisão baseou-se no conjunto de provas que levámos ao processo e nos relatórios de avaliação social dos familiares, que concluíram que as crianças estariam em condições de segurança e estabilidade no Brasil, como defendemos. A ida das crianças para o Brasil era a única alternativa capaz de minimizar o sofrimento dessas crianças”, garante a advogada. 

“O tempo te faz esquecer quem te fez sofrer, e deixa no seu coração só os momentos bem aproveitados. Até porque você não deve carregar ódio nele. Deixe a sua consciência limpa e seu coração leve. Sentir ódio só fará mal a nós mesmos. Então, quanto a sua dor, deixe o tempo lhe fazer esquecer, deixe apagar. Vire uma nova página, siga em frente e permita-se curar”, desabafa Catarina.

E é isso que a jovem está a fazer, curar-se. Ela e os irmãos, junto da família. A adaptação não será simples, mas a advogada de Catarina acredita que tudo ficará bem: “Um dia de cada vez. Recordo que a mais nova nasceu em Portugal e os outros vieram para cá muito novos, um ainda era bebé. As crianças iniciaram os estudos em Portugal, os seus amigos são daqui. Vieram para este país com os pais e voltaram sem eles. Tudo isto é muito duro!”, observa.

“A família no Brasil tem ótimas condições para que as crianças se restabeleçam num ambiente ajustado. Já voltaram à escola e estão a ser acompanhados por psicólogos, de forma a superarem o trauma. Mas isto vai levar tempo, porque há fatores que não podem ser controlados, por mais que se queira. A boa notícia é que a Catarina voltou a cantar e a tocar guitarra e acredito que será uma voz ativa contra a violência doméstica”, acrescenta.   

"Como mulher e como mãe, senti que a Justiça fez o que tinha de ser feito"

A dureza da história de Catarina não foi indiferente para a sua advogada, mesmo lidando com a Justiça todos os dias. “Este é um processo que vai marcar a minha vida não só do ponto de vista profissional, como também pessoal”, admite Núbia Nascimento Alves. “Ao longo de um ano pensei nestas crianças todos os dias: nos aniversários delas, nas datas importantes, quando estavam doentes, quando algo corria mal, no Natal, no Ano Novo. Tive de fazer a minha própria investigação, pois só assim poderia ter certeza do caminho a seguir. Foi uma responsabilidade muito grande dar voz à Catarina, por tudo o que ela passou. A Catarina tem a idade de minha filha mais velha, também eu emigrei do Brasil para Portugal. Senti que, para além do meu trabalho como advogada, tinha o dever cívico de fazer alguma coisa.”

“Mesmo depois de cessar a medida de acolhimento, as crianças permaneceram em Portugal por mais de um mês, pois não tinham sequer documentos válidos. Por isso, só depois de embarcá-los para o Brasil é que percebi o que tinha acontecido. Como mulher e como mãe, senti que a Justiça fez o que tinha de ser feito pela mãe dessas crianças”, confessa a advogada.

Ciente de tudo o que lhe aconteceu e já a viver no Brasil, Catarina quis enviar uma nova mensagem. Esta totalmente focada nas mulheres vítimas de violência doméstica. Talvez sinta que esta é a sua missão:

“Esse pedido vai para todas as mulheres. Sejam elas europeias, latinas, indígenas, asiáticas ou americanas. Estando casadas ou solteiras. Sendo jovens ou viúvas.

Somos todas mulheres, geradoras de vida.

Não estou aqui para falar de feminismo, mas sim para mostrar que devemos reclamar nosso respeito.

Não neguem ajuda

Não deixem passar batido 

Não aceite pouco 

Não baixem a cabeça para o desrespeito, porque tudo começa com pequenas ações desrespeitosas.

E se não ficarmos atentas a isso, e cortar o mal pela raiz, ele crescerá sob nossos pés cada vez mais. 

Mesmo existindo leis, não conseguimos acabar com toda a maldade da sociedade, o que nos resta é a prevenção e a cautela.

Por isso, não calem suas vozes, temos de defender a fonte de vida do mundo e vencer toda essa ignorância com as mulheres.”

A noite trágica em que Catarina quase morreu

Numa madrugada de outubro de 2022, o padrasto de Catarina, pai dos seus três irmãos pequenos e que não deveria saber onde moravam, entra na casa onde estão. Agride-a brutalmente com um taco de basebol. Fica inconsciente. Deveria ter morrido. “A Catarina sobreviveu por um milagre”, contou em agosto do ano passado a advogada da adolescente. Pouco tempo depois, a mãe chega a casa e é assassinada pelo ex-marido com uma faca de cozinha. 

“Estava em casa, sozinha, com os irmãos, à espera que a mãe viesse do trabalho.” O padrasto tinha descoberto a morada apesar das várias queixas de violência doméstica. “A primeira pessoa que ele agride é a Catarina.” Foi “agredida de forma brutal, com um taco de basebol”. “A Catarina sobreviveu por um milagre. Teve inúmeras sequelas, tanto a nível neurológico quanto a nível de coordenação motora. Perdeu algumas habilidades artísticas que tinha”, descreve a advogada. “Ficou em risco de morte pelo menos durante 15 dias”, recorda.

“Quando a mãe chega em casa, a Catarina está caída no chão. Ele conseguiu levar a Catarina para um quarto mas a Catarina já estava inconsciente. Ela não viu mais nada.” Catarina não viu a mãe ser morta pelo padrasto, mas os irmãos pequenos terão visto. Tal como assistiram à sua agressão quase fatal.

“Ele não tocou nos filhos, mas agrediu Catarina com a intenção de matar. Acreditou que a tinha matado, mas ela sobreviveu. É um dos irmãos que pede ajuda. A mãe foi esfaqueada com uma faca de cozinha e ficou morta no chão. Ela já não foi socorrida a tempo”, conta a advogada. Na altura, Catarina tinha 14 anos, os irmãos tinham nove, três e dois anos.

Pena máxima para o padrasto

A 12 de janeiro deste ano o padrasto foi condenado a 43 anos de prisão em cúmulo jurídico e uma pena única de 25 anos, a máxima prevista na lei portuguesa. Foram dados como provados os crimes de homicídio, tentativa de homicídio, abuso sexual e violência doméstica. Foi ainda condenado a pagar 120 mil euros a Catarina. Há um alívio, mas o medo não se esquece.

“Sim, a condenação do padrasto, de certa forma, é um alívio não só para a Catarina, mas também para a família, no sentido de que sentem que houve uma resposta da justiça. Mas apesar de tudo a Catarina diz que perdoa o padrasto. O seu sentimento é de medo, não de ódio. Ao longo de todo o processo, Catarina perguntou várias vezes quanto tempo o padrasto ficará preso, pois receia que possa, em liberdade, fazer mal a si ou à sua tia. Esta é a sua maior preocupação”, afirmou na altura à CNN Portugal, Núbia Nascimento Alves.

Durante o julgamento nunca assumiu o que fez a Catarina e apenas terá pedido desculpas pelo que fez à mulher e aos três filhos. “Mas no final do julgamento pediu ao tribunal para falar e reconheceu que alguns factos eram verdade e outros não, dizendo-se arrependido pelo que fez à mulher e aos filhos. Quanto a Catarina, negou os abusos sexuais e os maus-tratos, mas nada disse a respeito da tentativa de homicídio. Foi como se passou”, clarificou Núbia Nascimento Alves.

Apesar de tudo, o tribunal não teve dúvidas em considerar o padrasto de Catarina culpado de quase todos os crimes pelos quais ia acusado, incluindo os abusos sexuais. Para o juiz que julgou o caso, o arguido não mostrou "empatia" e a confissão parcial e arrependimento que declarou na sala de audiência foram contrariadas "pela sua postura corporal".

Longe de Portugal, Catarina e os irmãos percorrem agora um novo caminho.

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