Catargate: os bastidores de uma audiência a um ministro catari dias antes do Mundial - e como um eurodeputado o ajudou

19 jan 2023, 09:37
Pier Antonio Panzeri (Getty Images)

Antigo eurodeputado italiano promete contar todo o esquema às autoridades se isso significar uma redução da sua pena. A ajudar a investigação existem câmaras de vigilância e malas a saírem de quartos de hotéis

Eva Kaili é o nome mais sonante no alegado escândalo de corrupção que terá envolvido membros do Parlamento Europeu e o Catar. Mas a figura central do processo é o antigo eurodeputado italiano Antonio Panzeri, cujas revelações podem ajudar a decifrar o esquema montado para favorecer as autoridades do país que organizou o último Mundial de futebol.

Isto porque, para tentar reduzir a pena a que pode ser condenado, Antonio Panzeri concordou com os procuradores belgas dar informações essenciais sobre o caso, nomeadamente quem foi subornado e qual a forma de atuação daquela rede suspeita de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Em paralelo, sabe-se também como é que o então eurodeputado tentou influenciar os seus pares. A menos de uma semana do início do Campeonato do Mundo, o Parlamento Europeu recebeu o ministro do Trabalho do Catar na subcomissão para os Direitos Humanos, numa audiência especialmente dedicada a falar das condições dos trabalhadores que construíram os estádios e as restantes infraestruturas para a realização do evento. Naquele 14 de novembro, esperavam-se perguntas incómodas para Ali bin Samikh al-Marri. Elas apareceram, mas houve quem tentasse filtrar o que seria discutido na reunião.

Esse alguém foi Antonio Panzeri, um dos visados pela megaoperação que terminou na apreensão de quase 1,5 milhões de euros em casas e hotéis de Bruxelas. Parte desse dinheiro terá servido para o italiano tentar condicionar a audiência ao ministro catari, sobretudo através da criação de um guião que facilitasse a mesma.

Os procuradores belgas acreditam, de acordo com o jornal Le Soir, que o então eurodeputado terá sido mesmo o autor do discurso do ministro catari, aconselhando-o ainda sobre a forma como devia comportar-se ou posicionar-se. Para lá disso, terá pedido a amigos seus que faziam parte da comissão que fizessem questões que “levassem o ministro do Catar a um caminho conhecido”. Esta é a dimensão que ainda falta apurar, e que as revelações de Antonio Panzeri podem ajudar a desvendar: quantos e de que forma foram os eurodeputados corrompidos num escândalo que, além do eurodeputado e de Eva Kaili, à data vice-presidente do Parlamento Europeu, também já resultou nas detenções de Niccolò Figa-Talamanca, o diretor-geral da organização não-governamental No Peace Without Justice, e de Francesco Giorgi, assessor parlamentar e companheiro de Eva Kaili.

Nessa audiência, ainda assim, Ali bin Samikh al-Marri teve mesmo de ouvir algumas coisas que, certamente, não queria ouvir, uma vez que um eurodeputado chegou mesmo a apelidar o torneio de “Mundial da vergonha”. O ministro ripostou, falando em reformas feitas num “curto período", pelo que as “dificuldades” encontradas seriam “naturais”, além de ter apelidado os responsáveis europeus de racismo.

Para preparar a audiência, Antonio Panzeri e Francesco Giorgi ter-se-ão encontrado com o ministro catari num hotel de cinco estrelas da capital belga. Imagens de videovigilância obtidas pela investigação mostram os dois italianos a apanharem um elevador para a suite 412 a 9 de outubro. O "objetivo", terá dito o companheiro de Eva Kaili aos procuradores, era "preparar o ministro para a audiência marcada no parlamento".

"Por preparar quero dizer explicar-lhe o ponto de vista europeu e como ele devia reagir", acrescentou, em declarações citadas pelo Le Soir.

A reunião terminou cerca de uma hora depois e a dupla voltou a ser filmada, desta vez à saída do hotel, o qual deixaram com "uma mala mais grossa que a que tinham quando chegaram", de acordo com a investigação. Entre os eurodeputados que Antonio Panzeri terá tentado influenciar estão o belga Marc Tarabella e a italiana Andrea Cozzolino, ambos membros do grupo de Socialistas e Democratas, ao qual também pertence Eva Kaili. Já esta semana, a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, lançou um processo para o levantamento da imunidade parlamentar de Marc Tarabella e Andrea Cozzolino.

A italiana até se terá desviado do guião proposto por Antonio Panzeri, pedindo mais clareza ao ministro catari sobre as questões dos trabalhadores, mas acabou a perguntar como é que o Parlamento Europeu podia estar mais envolvido na fiscalização dos direitos laborais daquele país. Já Marc Tarabella teve um discurso mais amistoso, acusando os seus colegas da subcomissão de hipocrisia por não terem criticado a Rússia ou a China aquando a realização dos Jogos Olímpicos de inverno e de verão. O belga chegou mesmo a pedir aos restantes eurodeputados que "respeitem a jornada [no Catar]".

A próxima visada pela investigação pode ser a belga Marie Arena, que naquele dia dirigia a subcomissão. É que a socialista, que entretanto deixou o cargo, não declarou uma viagem a Doha, capital do Catar, realizada em maio de 2022, e que terá sido paga pelo governo daquele país. Acreditam os procuradores que a eurodeputada "beneficiou dos conselhos e influência de Antonio Panzeri, enquanto utilizou a sua posição na subcomissão de Direitos Humanos para exercer a sua influência".

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