Pedido foi feito no âmbito de um processo que correu num tribunal de São Paulo. Objetivo era não perder aquilo que a advogada da família dizia ser uma seleção "exclusiva" para medicamento em Portugal
A família das gémeas luso-brasileiras tratadas no Hospital de Santa Maria pediu segredo sobre a sua presença em Portugal, numa altura em que as crianças já tinham atravessado o Atlântico e aguardavam pelo tratamento de 2 milhões de euros, por paciente, contra a atrofia muscular espinhal.
O objetivo declarado era evitar que outras crianças procurassem o mesmo tratamento em Portugal, para não “colocar em risco a vantagem obtida”, “ou seja, a seleção para recebimento do medicamento”, que naquele momento, segundo a família, tinha sido “exclusivo” para as gémeas.
A afirmação é assinada pela advogada que em abril de 2020 representava a família num processo judicial contra o seguro de saúde que pagava outro medicamento no Brasil, bem como o apoio domiciliário à saúde de crianças extremamente frágeis.
Seguro garante que teve denúncia anónima
O processo consultado pelo Exclusivo da TVI (do grupo da CNN Portugal) indica que as gémeas tinham chegado a Lisboa a 22 de dezembro de 2019, mas a família continuou a apresentar as facturas do apoio domiciliário e fisioterapias em casa referentes a janeiro e fevereiro de 2020 no valor total de cerca de 50 mil euros.
Porém, numa queixa entregue num tribunal de São Paulo, a seguradora Amil alegava ter recebido uma denúncia anónima: sem se perceber com que intenções, alguém avisou a seguradora que as gémeas estariam em Portugal, apesar das faturas do apoio e tratamento domiciliário indicarem que estes estariam a ser prestados na morada brasileira.
A seguradora fez uma fiscalização na casa da família em São Paulo, num condomínio de luxo, e não encontrou as crianças, acrescentando que teve uma resposta do avô de que as gémeas estariam “na fazenda”. A seguradora dizia que podíamos estar perante um ilícito penal.
Ministério Público diz que família não actuou de boa-fé
Na resposta, a mãe das crianças, através da advogada da altura, Graziela Costa, confirmou a ida para Portugal, mas justificou a conta apresentada ao seguro: tinha trazido na viagem a equipa que prestava o apoio à saúde das filhas (dois médicos, dois fisioterapeutas, uma enfermeira e “outros profissionais”).
Na argumentação da família, as faturas apresentadas ao seguro serviriam para pagar o serviço prestado, com a única diferença de que em vez do Brasil este estava a ser feito em Portugal, contrariando os argumentos do seguro que dizia que o contrato apenas cobria despesas em território brasileiro e que acrescentava que a conta só para janeiro e fevereiro de 2020 já subira para 90 mil euros.
Do lado do tribunal, o juiz do caso e sobretudo o Ministério Público deram razão ao seguro, suspendendo a obrigação deste continuar a pagar o cuidado domiciliário das crianças enquanto estivessem em Portugal.
O Ministério Público (MP) de São Paulo dizia que a família não actuou “de boa-fé”, sublinhando que “vultuosos valores foram cobrados sem qualquer menção à alteração do serviço e do endereço em que residem, ainda que temporariamente”, constando “nas notas fiscais apresentadas pela empresa que o atendimento médico e de equipe multidisciplinar ocorreu no domicílio das autoras”.
No mesmo documento, o Ministério Público diz que a família estava “obrigada a informar a mudança do endereço, ainda que temporária”, sobretudo porque o seguro tinha sido obrigado pelo tribunal a pagar os cuidados das crianças em casa e que o contrato não tinha cobertura internacional.
Seleção para tratamento em Portugal
No referido documento onde responde às acusações do seguro, a advogada da família apresenta ainda uma versão que não parece idêntica àquela que a mãe descreveu sobre o processo de vinda para Portugal quando prestou depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia da República.
A advogada sublinha a nacionalidade portuguesa das crianças e em paralelo pede segredo da presença em Portugal para obter o tratamento.
O texto da advogada que é acompanhado por um outro depoimento escrito, à mão, pela mãe das gémeas, refere que a família obteve “a informação que Portugal estaria recrutando pacientes para uso deste medicamento em fase de pesquisa, na intenção de conseguir a cura, os pais realizaram o cadastro das crianças, no início sem muitas expectativas que seriam selecionadas”.
“Para surpresa da família”, em dezembro de 2019, “receberam o comunicado que foram selecionadas a participarem das seletivas para recebimento do Zolgensma, porém teriam que ser submetidas a inúmeros exames e acompanhamento médico semanal, para certificar as condições de saúde e serem inseridas no programa do governo português”.
A selecção anterior - que não se percebe ao certo como ocorreu - não foi descrita pela mãe das gémeas na CPI, onde apenas disse que tentou e conseguiu, como pretendia, inscrever as filhas numa consulta no Santa Maria com a mesma médica que já tinha administrado o Zolgensma.
Perante os deputados, Daniela Martins foi ainda confrontada com um e-mail saído do seu endereço pessoal, encaminhado por Nuno Rebelo de Sousa para o Ministério da Saúde, a agradecer a ajuda do ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales. A mãe das crianças garantiu desconhecer a existência deste e-mail.
"Sigilo" para evitar que mais famílias procurem Portugal
No mesmo documento de 2020, a advogada da família faz um pedido: “O sigilo continua sendo necessário”, pois as gémeas “são as únicas brasileiras concorrendo ao medicamento Zolgensma em Portugal por meio dessa pesquisa, e de forma gratuita”.
Enquanto esperavam pelo medicamento no Hospital de Santa Maria e continuavam a fazer uma recolha de fundos para pagar esse mesmo medicamento de forma privada, a família dizia que não havia motivo para divulgar a ida a Portugal: “se divulgarem essa informação de forma coletiva, poderá prejudicar a futura tentativa de cura das meninas, pois no Brasil há mais de novecentos portadores de AME [atrofia muscular espinhal], na esperança de obtenção de cura e muitas famílias vão tentar ir para Portugal com a mesma busca e esperança, colocando em risco a vantagem obtida pelas autoras, ou seja a seleção para recebimento do medicamento, que neste momento foi exclusiva”.
A poupança da seguradora
Os documentos relacionados com este processo entre a família e a seguradora confirmam, igualmente, algo que a TVI já tinha dito em junho: a seguradora poupou muito dinheiro com o medicamento mais caro do mundo administrado no Serviço Nacional de Saúde português.
Nos argumentos que apresentou ao tribunal, a advogada da família recorda que se tivessem ficado no Brasil as crianças iriam custar, no mínimo, cerca de 500 mil euros por ano ao seguro, por causa do preço do outro medicamento que as crianças tomariam para o resto da vida no Brasil.
O Zolgensma, administrado em Portugal, fez com que deixasse de fazer sentido a administração do Spinraza.
Num texto escrito pela própria mãe em resposta à seguradora, Daniela Martins faz contas e sublinha que “a nossa vinda para Portugal beneficia todos”.
Apesar das vantagens para o seguro pelo tratamento em Portugal, os processos da família contra a seguradora sucederam-se, ao longo dos anos, nos tribunais brasileiros: de início para obter o acompanhamento domiciliário e primeiro medicamento que deixaria de ser necessário com o medicamento administrado em Portugal; e mais tarde, com o regresso ao Brasil, para conseguir um terceiro medicamento e novos cuidados domiciliários.
Pelos processos consultados pela TVI/CNN Portugal, pouco antes da vinda para Portugal, em novembro de 2019, a família e a seguradora estiveram perto de assinar um acordo para acabar com o conflito judicial sobre o cuidado domiciliário das crianças.
Essa aproximação aconteceu no mesmo mês em que o hospital Lusíadas - detido pela mesma empresa proprietário da seguradora brasileira - marcou uma consulta com a médica que em Portugal já tinha administrado, no Serviço Nacional de Saúde (SNS), aquele que na altura era o medicamento mais caro do mundo - uma consulta mais tarde desmarcada.
Estadia "temporária", "provisória" e "breve" em Portugal
A mãe disse várias vezes na CPI que sempre teve o objetivo de mudar-se para viver em Portugal, tendo antecipado esses planos por causa da hipótese de receber um medicamento tão caro que na altura só era administrado, por um serviço de saúde pública, no SNS português.
Daniela Martins acusou inclusive a investigação jornalística (da TVI) de ser a responsável pelo facto de não poder regressar a Portugal após seis meses de estadia no Brasil, ao contrário daquilo que teria planeado.
Porém, nas respostas que deu antes ao tribunal brasileiro sobre a estadia em Portugal, a família referiu inúmeras vezes que esta seria temporária.
Sem nunca referir ao tribunal que o hospital de Santa Maria tinha obrigado a família a assinar um papel em que esta garantia ficar a viver em Portugal durante algum tempo após o medicamento, a sua advogada escreveu em abril de 2020 que “a passagem das meninas por Portugal é para ser provisória e breve”, numa “viagem temporária”.
Noutro texto, escrito pela própria mãe, Daniela Martins diz que só esperam pela medicação para “retornar ao Brasil”, havendo outro documento da advogada, com data de maio, que volta a referir a presença “temporária” em Portugal; havendo outros dois documentos, de 2020 e 2021, que dizem que o regresso só não tinha nova data prevista por causa da pandemia, num depoimento acompanhado de outro texto escrito, à mão, pela mãe das crianças.
A tese da impossibilidade de regressar ao Brasil por causa da covid-19 seria retomada em 2022 por uma nova advogada da família num outro documento encontrado pela TVI noutro processo judicial.
Terceiro medicamento depende de residência no Brasil
Finalmente, Daniela Martins e o seu atual advogado têm escrito nas respostas sobre o caso que as gémeas regressaram ao Brasil em fevereiro de 2023, mas os documentos arquivados nos tribunais brasileiros consultados pelo Exclusivo da TVI revelam que essa viagem terá acontecido cerca de meio ano antes, em 2022, não se compreendendo a razão para a divergência de datas.
Antes da viagem de regresso, a mãe das crianças já tinha iniciado outro processo em tribunal contra o seguro de saúde para garantir um acompanhamento domiciliário à saúde das filhas que nunca seria dado em Portugal.
Após a chegada ao Brasil, a seguradora foi alvo de uma segunda queixa para assegurar um terceiro medicamento para a atrofia muscular espinhal que poderá ser dado de forma ininterrupta, de administração oral diária.
O acompanhamento domiciliário e o terceiro medicamento, ambos extremamente caros, só podem ser pagos pelo seguro se as crianças continuarem no Brasil.