Na cidade velha de Mussomeli, a festa está apenas a começar. Cerca de 6000 pessoas estão amontoadas nas ruas estreitas à volta da igreja Madonna dei Miracoli, corpos apertados contra corpos, à espera que o espetáculo comece. As ruas estão brilhantes como se fosse Natal: arcos iluminados com néon azul, branco, verde e toques de vermelho. A fachada barroca - pedra creme, com uma dupla camada de colunas - está iluminada, com a inscrição “W MARIA” (“Viva Maria”) num tom azul sagrado sobre a porta.
Depois, aparece: uma estátua de madeira da Virgem Maria, quase toda coberta de preciosas joias de ouro doadas pelos habitantes da cidade. Com quase um metro e oitenta de altura e sobre um estrado de madeira grossa, são precisos cerca de 20 homens para a transportar. Mas carregam-na mesmo assim, descendo os degraus da igreja, subindo a rua íngreme até ao centro da cidade, e depois numa procissão para cima, para baixo e à volta desta cidade à beira de um penhasco durante cerca de duas horas, com uma banda a tocar, fogo de artifício a disparar intermitentemente e milhares a segui-los a cada passo.
Bem-vindos à vida numa cidade natal de um euro: intensamente local, intensamente tradicional e com um intimidante sentido de comunidade - a que pessoas de todo o mundo estão agora a aderir. Mussomeli, no centro da Sicília, é talvez a mais conhecida das cidades de Itália que vendem casas em ruínas por apenas um euro. Estas necessitam, naturalmente, de uma reconstrução completa, mas o projeto também inclui casas premium, que necessitam de menos intervenções e são, muitas vezes, totalmente habitáveis, a partir de cerca de 10.000 euros. A autarquia local colocou um primeiro lote de casas à venda em 2017 e, desde então, foram vendidas cerca de 450, incluindo 150 casas de um euro, de acordo com Cinzia Sorce da Agenzia Immobiliare Siciliana, a agência imobiliária que lançou o projeto.
Quando a maioria das pessoas ouve falar de casas à venda por um euro, a reação é normalmente de intriga ou de desprezo. Como é que uma casa pode custar menos do que uma chávena de café? É assim tão má? E será que vive mesmo alguém na cidade, ou é uma aldeia de montanha semiabandonada, a horas de distância da civilização? Tem de haver um senão, certo?
No caso de Mussomeli - talvez uma das razões para ser tão popular - a resposta é que ainda há muita coisa a acontecer nesta cidade de cerca de 5.000 habitantes. Embora não haja cadeias de lojas, há lojas de rua. Há médicos, veterinários, mecânicos, supermercados e instalações desportivas. Há um hospital e uma clínica médica privada. Há restaurantes, pizarias, cafés e bares. E há eventos regulares, desde a música ao vivo que toma conta das praças da cidade na maioria das noites de verão até às inúmeras procissões católicas, a maior a 8 de setembro, o dia de “La Madonna di Mussomeli”. É evidente que esta não é uma cidade moribunda.
“A minha expetativa era que Mussomeli fosse uma cidade abandonada, onde nada acontecia, e fiquei surpreendida por estar errada”, diz a alemã Barbara Maerkl, que se mudou para cá em 2024, comprando uma casa premium que está atualmente a renovar. "A cidade é muito vibrante no verão, há eventos quase todos os dias. Festivais religiosos, festivais de música, dança, bandas ao vivo. Foi uma grande surpresa."
Quem vive em Mussomeli não se arrepende.
“Vivi em Turim durante algum tempo por causa do trabalho, mas queria ter a família no sul, por isso, quando estava a escolher entre a cidade e o campo, escolhi o campo”, conta Cinzia Sorce. Feliz por estar de volta à sua cidade natal com o marido e os filhos, ela não acredita que poderia viver noutro lugar. "Não fico presa no trânsito. Vou a casa na minha hora de almoço. Sem conduzir, temos bares, um cinema, pizarias, restaurantes. No inverno, vou passear às 23 horas. Não conseguiria fazer isso numa cidade."
Até os seus filhos gostam. “Se eu perguntasse à minha filha de 19 anos: 'Vamos mudar-nos para Palermo?', ela não iria querer. Ela gosta da tranquilidade de Mussomeli.”
Fazer novos amigos
Enquanto a imagem de Itália no imaginário global é a de costas dramáticas e cidades antigas repletas de obras-primas artísticas, aqueles que escolhem Mussomeli procuram algo diferente.
Falando com estrangeiros que vivem em Mussomeli ou que compraram casa na cidade, todos eles destacam o calor e o acolhimento dos habitantes locais.
“São as pessoas que me fazem sentir muito confortável e muito bem-vindo, foi por isso que escolhi ficar por cá”, sublinha Barbara Maerkl.
“As pessoas são muito acolhedoras e abertas”, acrescenta Tahira Khan, de Singapura, que chegou em dezembro de 2024. "É uma cidade pequena, por isso é fácil conhecermo-nos. É muito diferente da cidade.”
Para os Mussomelesi, “accoglienza”, ou seja, acolher os forasteiros, faz parte da vida.
Veja-se Maria Anna Valenza, por exemplo. No ano passado, juntamente com o seu irmão Michele e a sua cunhada Monia, abriu o Manfredomus, um luxuoso alojamento de bed and breakfast (cama e pequeno-almoço) com vista para o Castello Manfredonico, do século XIV, incrustado numa falésia rochosa que domina a paisagem de Mussomeli. O B&B obteve rapidamente classificações quase perfeitas dos hóspedes em sites de avaliação, não só pelos quartos confortáveis e pelo mobiliário elegante (fabricado pelo marido), mas também pela simpatia da família - sempre que há um festival ou um evento na cidade, pode ter a certeza de que Maria Anna estará lá com os seus hóspedes.
Para eles, é uma amostra da verdadeira hospitalidade do sul de Itália. Maria Anna diz que também ganha com isso. “Gosto de conhecer estrangeiros porque os seus mundos são muito diferentes dos nossos”, afirma. "Dizem-nos coisas diferentes, têm vidas diferentes, por isso aprendemos sempre com eles. Pergunto-lhes sempre se querem sair connosco. Acho que é bom mostrar-lhes coisas que não têm nos seus próprios países."
Para quem conhece melhor o Norte de Itália, há uma diferença notória. Essa abertura fácil que as pessoas associam a Itália é, na verdade, mais uma coisa do sul.
“Na realidade, toda a Sicília tem pessoas abertas e acolhedoras, porque vivemos sob o domínio estrangeiro”, explica o presidente da Câmara de Mussomeli, Giuseppe Catania. “Está no nosso ADN adaptarmo-nos e estarmos abertos a novos povos.” Há algumas décadas, esta parte interior da Sicília era mais insular, diz, mas isso já não é o caso. Em parte devido à tecnologia que traz o exterior para dentro; em parte porque os jovens de hoje viajam. Mas também por causa do projeto das casas de um euro.
“Digo sempre que, para além dos benefícios tangíveis, o intercâmbio cultural é igualmente importante. Abriu a cidade e teve definitivamente um efeito importante.”
Para Tahira Khan, o passado da Sicília como um “caldeirão de múltiplas culturas” foi particularmente atrativo quando estava a decidir para onde ir.
A Sicília rural é, talvez, surpreendentemente progressista. Em 2013, os juízes de Trapani foram os primeiros em Itália a decidir que uma mulher transgénero podia obter um passaporte feminino sem ser submetida a uma cirurgia de mudança de sexo. Quatro anos mais tarde, os juízes de Caltanissetta, perto de Mussomeli, tomaram uma decisão semelhante.
Cinzia Sorce atribui a abertura de espírito dos sicilianos às vagas de emigração, com os habitantes da ilha a partirem para uma vida melhor noutros locais.
“Mussomeli foi sempre habitada por pessoas que iam e vinham”, aponta. "Muitas pessoas partiram para trabalhar no estrangeiro. Alguns conseguiram regressar; outros, os seus filhos ou netos. Ter pessoas com origens no estrangeiro foi sempre visto como uma coisa boa aqui. Houve sempre imigração e emigração." Recentemente, o presidente da Câmara de Catania foi notícia quando conseguiu que médicos argentinos imigrassem para Mussomeli para trabalhar no hospital rural. Atualmente, há uma comunidade argentina próspera na cidade. Mais importante ainda, o hospital também está a prosperar.
"Como um presépio"
A paisagem é outro atrativo para os estrangeiros. Embora a maioria das pessoas de fora associe a Sicília à sua espetacular costa, a entroterra, ou interior da Sicília, é igualmente espetacular. A paisagem à volta de Mussomeli - colinas altas e ondulantes que se estendem por quilómetros - é de outro mundo.
“Quando se chega a Mussomeli e se vê o centro histórico, fica-se fascinado”, garante Cinzia Sorce, referindo-se ao centro histórico da cidade. "Há muitas casinhas suspensas no ar sobre a rocha. É como um presépio, ou como ir à Grécia e ver todas as casas brancas e azuis nas montanhas. As pessoas vêm pela beleza da cidade e pela tranquilidade.”
Tahira Khan considera que “algumas partes parecem o Canadá, outras são verdadeiramente mediterrânicas”.
Não admira que as casas mais procuradas pelos estrangeiros sejam as que se situam na parte mais alta da cidade, com vista para a paisagem.
Também há muito para fazer na zona. Do outro lado do vale, rodeada por outro esporão rochoso, encontra-se outra bonita cidade, Sutera. Uma hora a leste, através de colinas ondulantes que poderiam estar na Toscânia, fica Caltanissetta, a capital da província - é mais conhecida como o local de nascimento do famoso cannolo (um doce italiano) e onde se realizam algumas das celebrações mais especiais da Semana Santa na Europa.
Para lá de Caltanissetta, e a 90 minutos de Mussomeli, fica a Piazza Armerina, uma cidade barroca de cortar a respiração. Nos seus arredores fica a Villa Romana del Casale, uma antiga propriedade rural romana, cujos pavimentos estão cobertos de mosaicos - incluindo um infame de atletas femininas em biquíni - descrito pela UNESCO como “os melhores mosaicos in situ em qualquer parte do mundo romano”.
A uma hora a sul de Mussomeli fica Agrigento, cujo Vale dos Templos é uma antiga povoação grega, onde ainda existem templos entre amendoeiras que florescem cor-de-rosa na primavera. Nas proximidades, encontra-se o local de nascimento do escritor vencedor do Prémio Nobel Luigi Pirandello, que é agora um museu. As suas teorias sobre o desejo da humanidade de usar máscaras são surpreendentemente prescientes para a era das redes sociais.
Noventa minutos a noroeste fica Palermo - e a caminho, em Cefalà Diana, há banhos árabes-normandos para os quais ainda correm águas termais. Catânia fica a cerca de duas horas a leste, com o Etna, Taormina e Siracusa mais além.
Quanto à tão importante costa, a praia mais próxima fica a apenas 40 minutos de carro, enquanto a Scala dei Turchi, famosa nas redes sociais, fica a pouco mais de uma hora de Mussomeli.
Grandes mudanças por um euro
O projeto da casa de um euro teve um enorme impacto na cidade, diz Giuseppe Catania, que assumiu o cargo em 2015 e herdou uma cidade antiga que estava a esvaziar-se e uma população em declínio. A cidade - que tinha cerca de 18 mil habitantes no seu auge - assistiu a vagas de emigração no pós-guerra, com famílias a partirem para o Reino Unido e para os Estados Unidos (o festival Madonna di Mussomeli é celebrado todos os anos em Buffalo, Nova Iorque). O centro histórico, que se espraia pela encosta, pode ser bonito, mas com ruas íngremes e estreitas, onde mal cabe uma Madonna, não era o local mais prático para viver. Assim, com a construção de blocos de apartamentos numa zona mais plana acima da cidade, a partir do final dos anos 70, as famílias mudaram-se para a “cidade nova”, deixando o centro histórico vazio.
Giuseppe Catania foi eleito para um núcleo urbano desertificado. “Encontrámo-nos perante um centro histórico que precisava de ser requalificado e repovoado”, descreve. Queriam também dar um toque de “internacionalidade” à zona do interior. Depois de avaliarem vários planos, decidiram que o projeto de um euro seria o melhor: restaurar as casas em ruínas do centro histórico, rejuvenescer as zonas da cidade onde os habitantes já não queriam viver e combater a queda demográfica. Oito anos depois, parece estar a funcionar: com 18 nacionalidades a viverem agora permanentemente na cidade, o autarca de Mussomeli afirma que, em 2023, o número de habitantes igualou a população de dez anos antes, pela primeira vez em duas décadas.
O projeto também impulsionou a economia local. Os construtores estão a ser apressados - os compradores têm agora de se inscrever em listas de espera para as melhores casas - e novos alojamentos e restaurantes abriram com o projeto. Mussomeli está agora também no radar do turismo. Giuseppe Catania diz que o número de turistas registados anualmente aumentou 919% de 2016 a 2024. Ao deixarem comentários elogiosos sobre locais como Manfredomus, mais pessoas chegam ao local.
Para Cinzia Sorce, o projeto de um euro é “a coisa mais bonita que já tiveram”. “Mudou a mentalidade, abriu as mentes, deitou abaixo os preconceitos.”
Até agora, não estão convencidos de que haja desvantagens. Inicialmente, as pessoas preocupavam-se com o tipo de pessoas que poderiam chegar, assume o autarca, mas até agora todos os estrangeiros abraçaram o estilo de vida e as tradições. “De poucas em poucas semanas, celebra-se um santo diferente e há procissões que percorrem a cidade”, indica Barbara Maerkl. “É muito bonito viver isso. Além disso, as pessoas festejam aqui sem se embebedarem. Bebem para celebrar a vida, não para a esquecer.”
Giuseppe Catania, que também viveu em Roma e Bolonha, não trocaria Mussomeli por nenhum outro lugar.
“Mesmo quando trabalhei durante 20 anos em Agrigento [a uma hora de distância], preferia vir para casa todos os dias. Regressei porque estava loucamente apaixonado por Mussomeli.”
Parece que não é o único.