Jovens contam como é adiar a parentalidade desejada por falta de condições

26 dez 2021, 08:00
Casal

Querem construir uma família e sonham com a chegada do primeiro filho, mas os curtos salários, as casas arrendadas e os empregos instáveis adiam, ano após ano, um desejo conjunto. A CNN Portugal conta a história de dois casais que têm adiado a parentalidade por falta de condições

“Temos vindo a pensar em arriscar, mas não queremos trazer uma criança ao mundo se não tiver condições para cá estar”. Nuno Ferreira dá voz à sua revolta. Aos 35 anos está desempregado e constantemente a adiar um desejo de há muito: ser pai. “Contava ser pai aos 25, tenho 35 e nem perto estou”, lamenta.

Com ele estava Joana Teixeira, namorada e companheira de sonhos. “Continuo aos 29 sem filhos e o mais chato é que convém pensarmos em ter um filho, por questão de saúde, antes dos 30, mas nem isso consigo. Não conseguimos pensar nisso sequer”, diz.

Temos visto que a idade do primeiro casamento e do primeiro filho têm sido cada vez mais tardias”, começa por explicar Vítor Sérgio Ferreira, doutorado em Sociologia, com especialidade de Sociologia da Educação, Cultura e Comunicação, que diz que os jovens têm tido “dificuldades acrescidas”, não só pelas instáveis condições de trabalho, mas também “pelo próprio preço da habitação”.

De acordo com o estudo Os jovens em Portugal, hoje: Quem são, que hábitos têm, o que pensam e o que sentem, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que representou 2,2 milhões de jovens entre os 15 e os 34 anos, entre os 56% de jovens que não têm filhos e gostariam de os ter, só uma minoria (2%) já tentou. A esmagadora maioria (89%) “só se imagina a ter filhos caso, chegada a altura, tenham um companheiro/a estável.  E são apenas cerca de 11% os que estão abertos a tê-los mesmo sem companheiro/a estável, quando lhes pareça que chegou o momento”.

E momento é a palavra muitas vezes usada, embora seja certo que esse mesmo momento é algo nem sempre previsível, nem tão pouco determinável.

“Sermos pais é um desejo e objetivo dos dois, mas a nível financeiro consideramos que ainda não estamos no ponto. Sabemos que não existe o ponto certo, mas há uma altura em que sentimos que há um momento em que estamos mais confortáveis financeiramente”, revela Adriana Fernandes, de 25 anos, reconhecendo, logo de seguida, que esse momento ainda não chegou e não consegue perspectivar quando chegará.

Para Mafalda Leitão, do Observatório das Famílias e das Políticas da Família do ICS da Universidade de Lisboa, a falta de estabilidade financeira e a precariedade laboral são fatores importantes, “uma está ligada à outra, embora a pessoa possa ter estabilidade profissional e não ter condições financeiras”, salvaguarda a especialista, que aponta ainda para a falta de uma rede de apoio - social, governamental e empresarial - como motivo para o facto de os jovens se verem obrigados a adiar a parentalidade.

“Olhando para as questões financeiras, há uma diferença hoje em dia. Há umas décadas, o poder de compra era menor mas a taxa de natalidade maior, agora há uma perspetiva diferente”, diz David Cruz, doutorando em Sociologia e atualmente a trabalhar na tese Between Involuntary Childlessness and childfree: representações e produção de significado dos millennials sem filhos em Portugal, explicando que os jovens adultos de hoje, muito ainda na ressaca da crise financeira de 2008-2012, não querem perder qualidade de vida, nem que seja a pouca que os seus salários atuais permitem. Além disso, não sentem que é justo arriscar como há uns anos se fazia. A ideia de que na mesa onde comem quatro podem comer cinco parece já não fazer tanto sentido nos dias de hoje.

“Desde a adolescência que tenho o sonho [de ser pai] e quero ser, mas parece que vamos adiando e adiando e estamos sempre à espera do momento certo e vamos descobrir que não há momento ideal”, comenta João Sá, namorado de Adriana.

Para o jovem casal de Almeirim, o emprego é, para já, um dos maiores entraves: ela está em estágio e ele num regime de part-time. O planeamento é a chave e estão a trabalhar nisso mesmo, embora saibam que pode não ser suficiente. “Temos poupanças e temos o objetivo de conseguir estabilidade e estamos a procurar um novo plano para mudar isto [o emprego do João] para full time. São ideias que estamos a colocar em prática, para ter estabilidade financeira e seguir com o nosso projeto de vida”, garante Adriana.

Quando se é financeiramente dependente para arriscar

Segundo os dados apresentados recentemente pela FFMS, apenas 16% já tinham pelo menos um filho. Entre os 56% de jovens que não têm filhos e gostariam de ter, o número ideal de filhos situa-se, para a maioria (57%), em dois.

“O nosso objetivo era termos dois filhos, porque somos os dois filhos únicos”, conta-nos Joana Teixeira. No entanto, o facto de o seu salário ser o único rendimento fixo a entrar em casa faz com que o desejo de ter dois filhos não passe disso mesmo, de um desejo.

“O facto de termos passado por empregos pouco estáveis, o máximo que eu estive numa empresa foi três anos e depois disso só tive empregos de um ano ou seis meses, ele [Nuno]  menos do que isso, são fatores que nos fazem pensar. Até que ponto vamos encontrar um emprego estável que nos permita engravidar? Não temos suporte financeiro para arriscar, para isso não se faz uma criança”, diz a jovem, que reside com o namorado em Braga.

Diz o estudo da FFMS que “entre os 7% de jovens que têm filhos e declararam que não pensam ter mais, os motivos para não quererem tê-los praticamente reduzem-se a dois: já têm os que queriam ter (45%) e a sua situação económica não lhes permite (38%)”:

O número de casais sem filhos [em Portugal] não é tão elevado como noutros países da Europa, mas a transição para o segundo é mais difícil, as pessoas vão adiando”, afirma Mafalda Leitão, apontando que o “esforço financeiro muito significativo” que os pais fazem nos primeiros anos de vida de uma criança “dificulta a transição para o segundo [filho]”.

O salário é um dos calcanhares de Aquiles da juventude, seja ela formada academicamente ou não. Ainda segundo os dados da FFMS, 30% dos jovens que estão atualmente a trabalhar recebem entre 601 a 767 euros líquidos mensais. Os que recebem entre 768 e 950 euros líquidos por mês são 19%. Já os que auferem entre 414 e 600 euros mensais são 14% e 9% recebem todos os meses menos de 413 euros.

Atingir o patamar dos mil euros limpos todos os meses é uma miragem para uma boa parte dos jovens trabalhadores até aos 35 anos: 14% recebem entre 951 e 1.158 euros, 5% entre 1.159 e 1.375 euros, 4% entre 1.376 e 1.642 euros e apenas 3% conseguem levar para casa mais do que 1.642 euros todos os meses. 

“Portugal é um país onde a média salarial é baixa e os custos elevados. Há um estrangulamento financeiro que adia a parentalidade”, destaca a especialista.

Apesar de defender que as questões económicas e laborais não são os únicos fatores em jogo nesta equação da parentalidade adiada, David Cruz considera que a parentalidade nos jovens adultos “acaba por ser um jogo de forças”, sobretudo no que diz respeito à questão cultural e à pressão social face às necessidades individuais”. No entanto, reconhece que o foco deve estar em dois pontos: aceitar que há jovens que, de facto, não querem ser pais e facultar “condições” para aqueles que o querem ser. E um não deve invalidar o outro, diz, sob a pena de se criar “um certo sentimento de injustiça no discurso”, visto que hoje em dia ainda pauta o discurso de que “há um dever patriotico de contribuir para a natalidade, mas isso é uma falácia”.

Adiar a parentalidade, um cenário que não é de hoje

O Inquérito à Fecundidade 2019, do Instituto Nacional de Estatística (INE) publicado em dezembro do ano passado, dá conta de uma maior tendência para adiar a chegada do primeiro filho por parte dos portugueses. Se em 2013 35,3% das mulheres e 41,5% dos homens dos 18 aos 49 anos não tinham filhos, em 2019 o cenário mostrava-se diferente: 42,2% das mulheres e 53,9% dos homens. 

Uma vez que a barreira biológica para a reprodução começa próxima dos 40, isso vai colocar questões sobre a infertilidade, tendo em consideração que o risco de infertilidade acaba por ser maior à medida que as pessoas se aproximam desse limiar, por isso deve-se olhar para as técnicas de reprodução medicamente assistida”, afirma David Cruz, que destaca que este “é um desafio que vai estar cada vez mais presentre nas pessas que querem ter filhos” e, por isso, o debate das técnicas de congelamento e da reprodução médicamente assistida deve acontecer “pelo menos na sociedade civil”.

Olhando para os jovens adultos com menos de 30 anos, em 2019 eram 93,4% as mulheres entre os 18 e os 29 anos que não tinham filhos. No caso dos homens, a percentagem subia para 94,6%.

Para Mafalda Leitão, estes números são fáceis de explicar: falta apoio e incentivos. A especialista defende que é necessário que haja uma rede pública de creches, que as licenças parentais sejam mais adequadas, que os abonos sejam mais justos e enquadrados à realidade do casal e que haja uma maior “conciliação do empregador, ao nível dos horários e da flexibilidade, que facilite aos trabalhadores com crianças dependentes uma maior gestão dos tempos”.

Quando questionados sobre a existência ou não de apoio familiar caso pretendam ter um filho nos próximos tempos, Joana e Nuno não hesitaram em dizer que “as coisas” não são como antigamente. Uma vez que os respetivos pais “não estão reformados”, não teriam onde deixar a criança a não ser numa creche, cenário que, para eles, está de momento fora de questão. “Não temos formas de fazer um investimento, porque um filho acaba por ser um investimento. É tudo uma chatice”, lamenta Nuno.

Esta situação entristece-me, a nível pessoal, [ter um filho] era um objetivo, um sonho. Independentemente de com quem estivesse, queria ter uma família. E entristece-me por ser um objetivo que ainda está por alcançar, mas também por uma questão de saúde, porque quanto mais tempo adiar mais difícil é engravidar, a gravidez será de risco, teria outros encargos e dificuldades”, reconhece Joana.

E Nuno apronta-se a falar: “Já passei várias fases, as do luto que são sete, já passei por todas elas”, diz em tom de brincadeira, mas rapidamente mudando o tom de voz para mais sério: “Contava ter tido um filho. Infelizmente, o que nos foi prometido, de que um curso nos abria um mundo inteiro, não foi o que se verificou. Venho de uma pequena aldeia em Arcos de Valdevez e todos os que não estudaram são pessoas que desistiram da escola no nono ano e pouco depois eram pais e tinham empregos. Uma pessoa olha para isso e pensa ‘eu paguei estudos, andei a esforçar-me e estou aqui relativamente na merda’ e eles que sem estudos, têm as suas vidas alinhadas, têm casas, têm filhos. “Andei a viver a minha toda errada?”, questiona, com tristeza.

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