O motorista de TVDE que acompanhou o regresso do Boavistão

29 mar 2023, 09:21
Carlos Santos

Carlos Santos terminou a formação no FC Porto, representou as seleções jovens e chegou a capitão dos axadrezados; deixou de jogar no escalão principal com 28 anos e terminou a carreira aos 29

«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@tvi.pt.

Carlos Santos cumpriu vários objetivos numa carreira de jogador que terminou aos 29 anos, por desencanto com o mundo do futebol. Passou pela formação do FC Porto, representou as seleções jovens de Portugal, jogou na Liga pelo Boavista e envergou a braçadeira de capitão dos axadrezados.

O defesa-central chegou ao Bessa quando a equipa estava mergulhada na terceira divisão e foi dos poucos a acompanhar o regresso ao escalão principal, em 2014. Após três épocas nos grandes palcos, voltou ao Campeonato de Portugal e foi perdendo o entusiasmo até pendurar definitivamente as chuteiras, na época 2018/19.

Aos 33 anos, ainda com vários nomes da sua geração no ativo, Carlos Santos subsiste financeiramente como motorista de TVDE, trabalhando por conta própria para plataformas como a Uber ou a Bolt.

«Acabei a carreira porque não me compatibilizava com o que se estava a passar no futebol. Tive duas más experiências com investidores no Campeonato Nacional de Seniores e, depois de passar pelo futebol profissional, não conseguia suportar aquilo. O futebol foi um sonho realizado, mas a vida continua», começa por explicar, ao Maisfutebol.

Para onde se vira um jogador quando termina a carreira? «Eu saí de Barroselas com 13 anos e nunca apostei seriamente nos estudos. Mesmo com a ajuda do FC Porto, ficaram disciplinas do 12.º ano por fazer. E quando assim é, as opções são limitadas.»

«Felizmente, tive a ajuda preciosa de verdadeiros amigos. O Fábio Ervões, com quem joguei, estava a dar-se bem como vendedor e desafiou-me. Ainda tive uma formação e experimentei, mas aquilo não era para mim. Entretanto, um casal amigo, meu e da minha esposa, convenceu-me a apostar em TVDE», recorda.

Carlos Santos estava enfiado em casa, sem rumo, quando tomou uma atitude decisiva. «Esse casal, o Marcos e a Elisa, insistiu bastante para eu ir para TVDE. O Marcos fazia isso em part-time e foi-me convencendo, a Elisa fez o mesmo com a minha esposa e só lhes tenho a agradecer. Estive em casa cinco ou seis meses, depois de acabar a carreira, a treinar sozinho. Até que um dia falei com a minha esposa e decidi experimentar o TVDE na empresa do Marcos.»

«Correu tão bem que estou nisto há quatro anos! Sinceramente, foi a melhor coisa que me podia ter aparecido. Não é o meu emprego de sonho, claro, mas gosto da liberdade, de andar na estrada e conviver com outras pessoas, não estar fechado num escritório. Atualmente, já formei a minha própria empresa e trabalho por conta própria.»

Os verdadeiros amigos, reforça Carlos Santos, foram decisivos nesse processo de transformação profissional: «Tenho de falar também de um grupo que me apoiou muito quando decidi deixar de jogar, embora eles tenham achado que eu ainda era muito novo para isso. Falo do Carraça, do Mesquita, do Talocha e do Tengarrinha, que infelizmente já não está connosco.»

«Já conhecia o Tengarrinha desde os juvenis, quando vivemos juntos no Lar do FC Porto. Era mais que um amigo para mim e teria muito mais a dizer sobre ele, passaria o dia todo nisso. Conheci os outros no Boavista e desde então criámos um grupo muito unido. Passamos todos férias juntos, com as nossas famílias, e foram um apoio muito grande para mim», diz.

O ex-jogador chegou, como referido anteriormente, a capitão do Boavista e esteve cinco épocas no clube axadrezado, três delas na Liga, entre 2012 e 2017. Por isso, naturalmente, ainda é reconhecido quando trabalha com clientes na zona do Grande Porto.

«Os que mais me reconhecem são adeptos do Boavista. Já fui por exemplo buscar miúdos à noite, à discoteca, e reconhecem a minha cara, lembram-se de me verem jogar. Não me incomoda nada, pelo contrário. Também já transportei jogadores como o Yusupha, o Vukotic ou o Bruno Costa», refere.

Carlos Santos ainda não recusou serviços - «já fui buscar pessoas a meio da noite à Pasteleira» - nem teve experiências desagradáveis. A principal dificuldade reside no facto de passar o dia de trabalho ao volante de um carro. «Tenho a vantagem de fazer os meus próprios horários, gosto de falar com os clientes e conduzir, mas não é um trabalho fácil. Passo os dias sentado e com isso já engordei 20 quilos desde que deixei de jogar», admite.

Desagradado com as derradeiras etapas como jogador, o antigo defesa-central afastou-se por completo do futebol e abraçou uma nova vida. Porém, recentemente, decidiu abrir uma exceção.

«O meu filho mais velho quis jogar futebol, foi para o Folgosa Maia, eu estava lá a ver os treinos dele e reconheceram-me. O coordenador da formação veio falar comigo, mas só aceitei treinar a equipa do meu filho, os minis, dos quatro aos seis anos, para o acompanhar. É muito engraçado ver a evolução deles», remata.

20 anos se passaram desde que Carlos Santos deixou Barroselas, vila do concelho de Viana do Castelo, para rumar ao Porto. «O clube que mostrou mais interesse nessa altura foi o Sporting, mas depois também apareceram o Benfica, o FC Porto e o próprio Boavista. Acabámos por escolher o FC Porto, também por ser mais perto, porque o meu pai tinha uma pastelaria e não era fácil acompanhar a minha carreira», recorda.

Depois de dar nas vistas com a camisola da AD Barroselas, o defesa-central cumpriu as restantes etapas da formação no FC Porto – sendo cedido ao Padroense no primeiro ano de juvenis e ao Candal no primeiro ano de juniores – e somou 11 internacionalizações pelas seleções jovens de Portugal, entre os sub-16 e os sub-17.

«A experiência no FC Porto foi muito boa e só tive pena de termos perdido o título de campeões de juniores para o Sporting. Fomos a Alvalade na frente do campeonato, ao minuto 90 o Diogo Rosado marcou, eles ganharam e foram campeões. Entretanto, terminou a minha ligação ao clube e fui à procura de uma solução para o futuro», explica, recordando o verão de 2008.

Carlos Santos era representado pela Gestifute de Jorge Mendes: «A Gestifute colocou-me no Salamanca, estive lá uns dias, mas não me adaptei, aquilo não correu bem e vim-me embora. Foi quando o Valter Fernandes, que tinha jogado comigo no FC Porto, ligou-me a convidar-me para ir para o Eléctrico de Ponte de Sor. Fui e fiquei lá três anos, adorei aquilo e conheci pessoas fantásticas.»

«Foi como começar do zero, porque é uma realidade muito diferente. Veja bem: eu era defesa-central de um grande e não dava porrada, porque não era preciso. Ali tive de mudar. Foi isso e viver sozinho, aprender a cozinhar, eu tinha de ligar à minha namorada – atual esposa – a perguntar como se cozinhava o arroz ou o frango.»

Após três épocas no distrito de Portalegre, o jovem passou pelo Juventude de Évora e pelo SC Coimbrões antes de assinar pelo Boavista, em 2012: «Estive meia época no Juventude de Évora, mas em quatro meses só recebi mês e meio. Cheguei a acordo para rescindir, vim para o Norte, as coisas correram bem no Coimbrões e cheguei ao Boavista para os melhores anos da minha vida profissional.»

«Os adeptos do Boavista são extremamente exigentes e isso é igualmente a grande força do clube. Com as dificuldades que enfrentou, qualquer outro clube teria acabado. Quem me levou para o Boavista foi o Amândio Barreiras, que me tinha treinado no Eléctrico, e vários nomes fortes como o Petit, o Frechaut, o Ricardo Silva, juntaram-se para jogar pela equipa e ajudar. Era incrível partilhar o balneário com eles», diz.

Em abril de 2014, a Liga anunciou o regresso do Boavista ao escalão principal, alargando a prova de 16 para 18 equipas. Os axadrezados tinham um plantel formado para a terceira divisão nacional e compuseram um novo grupo num curto espaço de tempo: «Só ficámos quatro ou cinco jogadores dos que tinham disputado o Campeonato de Portugal e na primeira época na Liga fiz 31 jogos, não estava à espera. Correu muito bem.»

A equipa do Bessa corria o sério risco de ser despromovida pela via desportiva, face às bases pouco sólidas da sua estrutura para competir nos grandes palcos. Aliás, perdeu nas três primeiras jornadas, para angústia dos seus adeptos, mas superou-se ao longo da época e, com o contributo de jogadores como Carlos Santos, garantiu a permanência. O Boavistão voltou para ficar. Até hoje.

«No final dessa primeira época na Liga falou-se de uma transferência para a China, uma proposta incrível, com valores que mudariam a minha vida, e estava tudo preparado. Tanto que o presidente disse-me para ir para casa, fiquei lá uns dias à espera. Até que me comunicaram que estava tudo abortado.»

Carlos Santos admite que tudo mudou a partir desse verão. «Recebi a indicação para voltar ao Boavista, eu que era dos capitães. Mas quando voltei, já não tinha cacifo, não tinha o meu nome nas folhas de presença, tudo tinha mudado para mim. Isso mexeu comigo. Nesse verão chegaram o Paulo Vinícius e o Henrique, que cumpriram no centro da defesa, e eu perdi quase todo o espaço.»

«Fui utilizado num jogo de pré-época em Vigo e aquilo foi horrível, apanhei o Yago Aspas e fiz uma exibição miserável. Depois, fui titular num jogo em Santa Maria da Feira e consegui ser expulso aos 10 minutos de jogo. Foi uma espiral, a época seguinte também já ficou marcada por esse espírito negativo», diz.

O defesa-central fez apenas quatro jogos oficiais nessa temporada, oito na seguinte. Em 2017, com 28 anos, despediu-se do Boavista e da Liga portuguesa. «Assinei pelo Aris de Limassol, que tinha subido à primeira divisão de Chipre. Só que apresentaram-me um contrato e a dois dias de fechar o mercado, fecharam-me numa sala e queriam que eu assinasse outro contrato, com valores muito inferiores. Recusei, pegaram em mim e deixaram-me no aeroporto. Ainda estive em Andorra, para assinar pelo Lusitanos, mas não foi possível por questões burocráticas», explica Carlos Santos, recuperando os contornos da história que contou ao Maisfutebol nessa altura.

O Salgueiros apareceu como um arco-íris num dia de chuva: «Era um projeto diferente, com uma equipa fantástica e um investidor cheio de promessas, mas só recebi o primeiro ordenado a 23 de dezembro. Felizmente, ele saiu entretanto e entrou gente séria no clube, gente que se mantém até hoje. Depois dessa época, já estava a pensar deixar o futebol.»

Carlos Santos estava cansado. Desiludido com o mundo do futebol. Acabou por abrir a porta à AD Oliveirense, outra equipa do Campeonato de Portugal, mas não aguentou até ao final da época e disputou o último jogo oficial em janeiro de 2019, ainda com 29 anos.

«A AD Oliveirense tinha igualmente um investidor, o diretor desportivo e o treinador falaram comigo, nem discuti salário, só pedia que me pagassem certinho até ao dia 5. Mais tarde percebi que ele a mim pagava, mas a outros não. Eu era um dos capitães e via outros jogadores, miúdos, a passar fome, sem comida em casa, e o investidor a aparecer no estádio de Ferrari. Discuti com ele com telefone e desisti. De vez», refere.

Apesar das desilusões nas derradeiras épocas na carreira como jogador profissional, Carlos Santos faz um balanço positivo da carreira.

«Tive vários momentos bonitos, ouvir o hino da seleção foi um deles, jogar no FC Porto, chegar a capitão do Boavista, jogar na Liga portuguesa. Cumpri o meu sonho. Agora, a vida continua.»

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