Parabéns, professor: sete décadas do homem que revolucionou o futebol português

1 mar 2023, 09:37
Carlos Queiroz (MIGUEL RIOPA/AFP via Getty Images)

Carlos Queiroz cumpre esta quarta-feira 70 anos e o Maisfutebol viaja pela herança que o treinador deixou: ponto por ponto, visitamos as grandes reformas que mudaram o destino do jogo em Portugal. Pelo caminho recolhemos o testemunho de quem com ele participou nesta revolução, nomes como Jesualdo Ferreira, António Simões, José Peseiro, Nelo Vingada, Abel Xavier ou Toni. Jesualdo lança até um desafio ao amigo, em jeito de provocação.

1 de março de 1953.

Há precisamente setenta anos nascia no Hospital Velho de Nampula, no norte de Moçambique, Carlos Queiroz: o homem que mudaria o futebol português.

Filho de um desenhador dos caminhos de ferro e de uma mediadora de seguros, fez a escola primária como aluno interno no Colégio Vasco da Gama, terminou os estudos secundários no Liceu Almirante Gago Coutinho e cresceu a brincar na rua em frente aos escritórios da empresa do pai.

O pai, precisamente, Júlio Queiroz, jogava no Ferroviário de Nampula e levou o filho a dar os primeiros pontapés na bola. Acabou por fazer carreira a guarda-redes no Ferroviário, tendo jogado até aos juniores.

Antes disso, com treze anos, teve um dos momentos que mais marcou a sua vida. O Mundial 66. Pela televisão a preto e branco vibrou com a seleção portuguesa, e sobretudo com os jogadores de origem moçambicana, como ele: Eusébio, Coluna, Hilário e Vicente Lucas.

Quando se deu o 25 de abril, e a independência de Moçambique, Carlos Queiroz viajou com a família para Portugal e instalou-se em Oeiras.

Nessa altura decidiu mudar de curso e inscreveu-se no Instituto Superior de Educação Física, atualmente Faculdade de Motricidade Humana,  onde conheceu vários colegas que o acompanharam durante anos: Jesualdo Ferreira, Nelo Vingada, António Violante. Quando acabou o curso ficou como professor e acabou por dar aulas a treinadores como José Mourinho, Peseiro e Rui Vitória.

Em 1981 começou a treinar os infantis do Olivais, passou pelos juvenis do Belenenses e chegou aos séniores como adjunto de Mário Wilson, no Estoril, num plantel de que fazia parte, por exemplo, o antigo selecionador Fernando Santos.

Pelo meio, em 1982, ainda fez observação para o grande Brasil de Telê Santana, durante o Mundial de Espanha.

Em 1984 entrou na Federação como adjunto de José Augusto e foi aí que o futebol português entrou em revolução.

1. Inovou nas metodologias de treino em Portugal

Hugo Sarmento é professor da Faculdade de Desporto da Universidade de Coimbra e fez uma investigação profunda para escrever o livro «Geração de Ouro»: entrevistou jogadores, consultou documentos, analisou planos de treino.

Em conversa com o Maisfutebol detalha tudo aquilo que Queiroz revolucionou.

«Ele foi determinante em muito do que estamos a colher atualmente e esta opinião vem de toda a investigação que fiz. Percebi que ele teve uma intervenção muito profunda, que teve a ver com uma clara rotura nos modelos de treinos, revolucionando tudo o que era feito, trazendo práticas modernas para a observação dos jogadores e dos jogos», conta.

«Ele investiu de uma forma muito sistemática na observação das melhores práticas dos desportos mais desenvolvidos, o que o levou a criar uma metodologia de treino para preparar os jogadores para o futebol que se iria jogar de então a dez anos.»

O magriço António Simões conta até que quando o conheceu descobriu por acaso que ele tinha acabado de ler um livro sobre hóquei no gelo.

«Os jogadores que entrevistei diziam-me muitas vezes que ele estava trinta anos à frente do seu tempo. É impressionante a forma como ele prevê alterações que vão acontecer e como inova nos processos de treino e de análise.»

Hugo Sarmento dá um exemplo.

«A Federação disponibilizou-me alguns documentos para eu fazer a minha investigação e ele há 30 anos, e isso está escrito numa ata, propôs a criação de um casa das seleções. Portanto, a Cidade do Futebol, que agora a Federação construiu, já tinha sido proposta por ele há trinta anos.»

2. Criou o Torneio Lopes da Silva como porta de acesso ao talento jovem

Uma das maiores mudanças na formação de jogadores passou pela criação do torneio que agora tem o nome de Lopes da Silva.

«Atualmente a identificação e desenvolvimento de talento é muito realizada pelos clubes, que fazem esse trabalho rapidamente. Na altura isso não existia e ele tinha muita dificuldade em recrutar o melhor talento», refere.

«Então criou o torneio inter-associações, que mais tarde recebeu o nome de Lopes da Silva. Pediu a todas as associações distritais para fazerem a sua melhor seleção de sub-15, depois juntava essas seleções em Lisboa durante três dias, para realizarem um torneio e ele conseguir identificar o melhor talento. Jogadores como Paulo Madeira, Rui Bento, Paulo Alves e muitos outros só depois desse torneio foram detetados pelos grandes.»

3. Lançou as bases do Desporto Escolar e o programa Skilito

Outra das alterações que fez passou pelo aumento do número de praticantes. O que ele dizia que era fundamental para fazer crescer o futebol em Portugal.

«Ele usava um lema que era De muitos teremos um. Então rapidamente conseguiu aumentar o número de praticantes, que em poucos anos passou de 80 mil para 130 mil praticantes. Como o fez? Com várias estratégias», revela.

«Por um lado, houve o lançamento de contratos programa através dos quais a Federação financiava o desenvolvimento da formação nos clubes. Houve também um projeto, financiado pelo governo, que era um espécie de desporto escolar, chamado Futebol nas escolas. Por fim havia um programa que se chamava Skilito, em que eles iam a quase todas as sedes de distrito, os miúdos inscreviam-se para mostrar o que conseguiam fazer com a bola, eles observavam esses miúdos e ficavam com o registo dos melhores.»

4. Renovou os quadros competitivos do futebol jovem

Outras das preocupações que Carlos Queiroz teve passou pelo fraco nível de competição que havia no futebol jovem. Os miúdos faziam poucos jogos e sobretudo poucos jogos de dificuldade elevada, porque os grandes defrontavam-se raramente. O que o levou a pensar num novo modelo.

«Ele propôs à Federação a remodelação do modelo competitivo, mas encontrou muitas resistências. A Federação ainda vivia o pós-Saltillo, havia uma grande confusão interna e muitas pessoas avessas à mudança. Para contornar isso percorreu todas as associações distritais, explicou o seu modelo a cada uma e ficou à espera que as próprias associações propusessem essa alteração do modelo competitivo que ele tinha feito. O que veio a acontecer», conta.

«Por outro lado fazia estágios mais longos com os jogadores, muitas vezes de três ou quatro semanas, porque considerava que na altura não existia isso, um nível de competição exigente nos clubes. Então juntava os melhores atletas, fazia com eles treinos mais exigentes e os próprios jogadores admitem que os clubes beneficiavam com esses estágios.»

5. Fez parte do grupo que alterou a formação de treinadores

Por fim Carlos Queiroz fez parte do grupo de académicos que revolucionou também a formação de treinadores. Que até então não existia: os técnicos viviam quase exclusivamente da experiência que tinham ganhado enquanto jogadores.

«A formação estava ao cargo dos vários sindicatos de treinadores que havia na altura um pouco por todo o país e que nem faziam bem formação, limitavam-se a passar as licenças», refere o professor da Universidade de Coimbra.

«Ele na altura era professor do ISEF e, juntamente com a Direção Geral dos Desportos, conseguiu promover a formação de treinadores e a formação de alunos da faculdade que escolhessem a vertente futebol. Portanto por aqui criou os pilares essenciais do que existe hoje no futebol português.»

Enfim, o legado de Carlos Queiroz é enorme e nem sempre se tem noção disso. O treinador construiu uma carreira com muitas polémicas: saiu duas vezes mal da Seleção Nacional, chateou-se com Cristiano Ronaldo, foi despedido entre críticas do Real Madrid. Em vários episódios o barulho criado tornou-se ensurdecedor.

Ao ponto até de não se ouvir o essencial.

«Não tinha essa ideia, mas após entrevistar os jogadores percebi a importândia dele como motor disto tudo. Acho que muitas vezes o reconhecimento não é feito como devia, mas ele merece-o», finaliza Hugo Sarmento.

OS DEPOIMENTOS DE QUEM COM ELE REVOLUCIONOU O FUTEBOL PORTUGUÊS

António Simões

«Carlos Queiroz foi o homem que teve uma ideia para Portugal»

«O legado que ele deixa no futebol português é indiscutível. É uma das grandes figuras do desporto em Portugal, pelo que criou, inovou, planeou e pelo que acreditou no jovem jogador que tem vocação para jogar futebol. Ele foi um homem que teve uma ideia para o Portugal desportivo. Depois planeou e organizou tudo isso com a ajuda da Federação. Acho que foi fundamental a criação dos gabinetes técnicos das associações distritais, criou o inter-associações de sub-15 que se tornou a primeira triagem de talento. Foi uma excelente ideia para o futebol português, criada pelo professor Carlos Queiroz, pelo Nelo Vingada e por Jesualdo Ferreira. Eles foram os obreiros, os pioneiros, que revolucionaram até a criação de condições para o treinador com formação académica. Até então não existia. Foi um grande trio. Qual foi o desenvolvimento de tudo isto? Simplesmente extraordinário. Campeões do mundo de juniores em 89 e 91. Eu vivia nos Estados Unidos na altura e as pessoas vinham-me perguntar o que se passava em Portugal para sermos campeões duas vezes. Tinha até vários treinadores que vinham falar comigo para saber se podiam vir a Portugal, conhecer as pessoas da Federação e ver como se trabalhava aqui. Quando o conheci fiquei completamente surpreendido pelo conhecimento que ele tinha pelo desporto americano e descobri até que ele já tinha lido um livro sobre hóquei no gelo, que eu também tinha lido, mas eu é normal porque tinha vivido nos Estados Unidos. Não tenho dúvidas que o Carlos Queiroz é a pessoa mais culta e inteligente que conheci no futebol português. Só lhe faltou ser esperto. Foi nisso que falhou. Pelo que fez e por alguma culpa própria nunca teve o reconhecimento devido. Ainda não lhe foi dado o crédito que merece pelo que fez e espero que isso venha a acontecer.»

Jesualdo Ferreira

«Foi o ponta de lança que criou um rumo novo no treino e na organização»

«Eu conheci o Carlos Queiroz em 1979, ele era aluno do ISEF e na altura um grupo de alunos considerava que o curso devia ser diferente e veio pedir-me para ser professor deles. Eu fui, fiz esse trabalho e fiquei como assistente da Faculdade. Mais tarde apareceu o Gabinete de Futebol, o Queiroz fez o trajeto de aluno e depois entrou no Gabinete. Fez a sua prova de aptidão científica e acabou por ser comigo professor da cadeira de Futebol. Foi aí que começou a grande diferença na formação de treinadores. O Queiroz começou a dar as suas aulas e em 1983 apareceu pela primeira vez como preletor. Fui eu que dirigi essa formação, porque foi o primeiro curso que o Gabinete de Futebol e o ISEF fizeram. Ele depois entrou na Federação, foi campeão da Europa de sub-16 e foi bicampeão do mundo de juniores. Este trajeto foi o grande lançamento do Carlos Queiroz para a carreira que teve. Na altura em que trabalhámos juntos, primeiro como aluno, depois como professor e mais tarde como amigo, percebi que estava ali um talento para o treino, para a liderança de equipas e para ser mais um, e naquela altura não havia muitos, para entrar num quadro de treinadores que precisava de alterar muita coisa no futebol português. Mais tarde isso aconteceu, mas na altura não estava a acontecer. O Queiroz conquistou dois títulos que na altura eram impensáveis e que mostraram que era possível fazer com treino e com liderança em Portugal o que já acontecia noutros países. Ele foi o ponta de lança que criou um rumo novo para a classe no treino e na organização do futebol português. Saiu cedo de Portugal, voltou depois para levar a seleção à África do Sul e esse tempo que passou como emigrante foi fundamental para ele. A ida dele para fora foi capaz de lhe dar muito mais capacidade e conhecimento para oalcançar o que mais tarde alcançou. Quero deixar-lhe um grande abraço e fazer-lhe um desafio: ele faz 70 anos, eu vou fazer 77 anos, se ele quer bater o meu recorde e pelo menos treinar até aos 78 anos? Fica aqui o desafio de grande estima por ele.»

Nelo Vingada

«Deixou uma herança que mexeu com o futebol português»

«Eu conheci-o no ISEF, eu era professor, ele era estudante. Já não fui professor dele, mas quando acabou o curso foi convidado para integrar o Gabinete e tornámo-nos colegas. Foi nessa altura que o futebol renasceu dentro da instituição. Em 1983 teve o primeiro impacto com o futebol profissional, no Estoril, com o Mário Wilson, de quem eu era o amigo e de quem tinha sido adjunto. Na altura não pude ir para o Estoril e aconselhei vivamente o Capitão a levar o Carlos Queiroz. Enfim, eu acho que o futebol português teve várias pessoas de grande referência: José Maria Pedroto, por exemplo, ou o Mário Wilson. Mas o Carlos Queiroz marcou uma era nova era na abordagem ao treino e no desenvolvimento do futebol jovem. Trouxe Portugal para um patamar que não considerávamos possível tão rapidamente. O legado que ele deixa é enorme. Ele deixou uma herança que mexeu com o futebol português, e até com o futebol de outros países, de uma forma como seria difícil imaginar. Depois disso o futebol evoluiu, o Carlos Queiroz tem uma carreira desenhada em imensos países, com resultados bons e menos bons, como todos, mas a saída dele em 2010 não foi bonita. Nem ele ele nem o futebol português mereceriam.»

Toni

«Deixa o seu nome ligado a uma transformação que nunca ninguém apagará»

«O Carlos Queiroz faz 70 anos e a primeira palavra é para lhe dar os parabéns. Uma grande parte da sua vida é dedicada à grande paixão dele, que é o futebol, e deixa nesse sentido o seu nome ligado a uma transformação que nunca, ninguém, jamais, em tempo algum apagará. Nesse trajeto da sua vida há, na minha opinião, dois momentos marcantes: os Mundiais de 89 e 91. Mas antes dos títulos houve todo um trabalho. Por isso, e mesmo que não tivesse ganhado os Mundiais de juniores, o trabalho estaria lá na mesma. Ele e o Jesualdo levaram a disciplina do futebol para a Universidade e começaram a lançar as bases de um projeto a nível da formação para o futebol português. Esse projeto tinha uma visão estratégica que viria a ser implementada, dotou o futebol português de outras condições e levou Portugal ao patamar onde está hoje, tanto ao nível sénior como ao nível da formação. É um homem muito metódico, organizado, com uma grande visão e planeamento. Deixa um legado muito grande para o futebol português.»

Abel Xavier

«Carlos Queiroz foi um visionário e tem de ser enaltecido»

«Antes de mais, tenho de endereçar os parabéns ao professor Carlos Queiroz. Foi uma figura muito importante no que é a construção, o desenvolvimento e o enquadramento do modelo de formação em Portugal. Foi o mentor de uma planificação estruturada, que criou um modelo de sustentabilidade transversal a todas as idades, até ao nível profissional. Criou uma organização de descoberta e recrutamento de talentos, estruturando as etapas de crescimento em concordância com a competitividade no espaço de seleção. Nesse enquadramento fiz parte de uma geração que começou na Associaçao de Lisboa, percorri todas as faixas etárias desde a seleção sub-15 até à seleção principal com o professor Carlos Queiroz, vencendo títulos como campeões europa sub-16, vice-campeões sub-17 e sub-18 e o grande marco que foi o título mundial de juniores. Introduziu conteúdos metodológicos que favoreceram a nossa inclusão no futebol sénior. Devo lembrar que fui o primeiro jogador a jogar na II Divisão, no Estrela da Amadora, a ser convocado para a seleção principal de Portugal, precisamente pelo professor. Todos nós crescemos com muita maturidade e obviamente estamos gratos ao professor Carlos Queiroz, que foi um visionário e que não pode deixar de ser enaltecido.»

José Peseiro

«Queiroz abriu a montra do futebol português para o mundo»

«Carlos Queiroz foi importantíssimo para o futebol português. Nós tivemos sempre grandes jogadores, o que nos faltava era abrir a montra: os nossos jogadores poderem ser vistos. Nesse aspeto, há um antes e um depois dos Mundiais de juniores que ganhámos. As vitórias em sub-20 do Queiroz e todo o trabalho que ele fez deu ferramentas aos jogadores para passarem as fronteiras e não terem receio, de irem lá fora para ganhar. A partir daí o mundo passou a olhar para nós como um país de talento. É verdade que a Lei Bosman tornou mais fácil os jogadores saírem, mas tudo começou antes disso. Jogarmos nos melhores clubes da Europa fez-nos a todos ficar mais fortes e olhar nos olhos qualquer futebol do mundo.. Outra coisa que ele fez foi dar uma consciência de treino e um tempo de trabalho junto a esses miúdos, que passavam um terço do ano juntos, para construir uma equipa forte e sermos campeões do mundo. Em futebol nunca mais fomos campeões do mundo com equipa nenhuma. »

Relacionados

Seleção

Mais Seleção

Patrocinados