Celebra-se a 16 de fevereiro o centenário de nascimento de Carlos Paredes. Luísa Amaro, que o acompanhou na música e na vida, recorda um homem bondoso, que era "um verdadeiro humanista". Compositor genial e intérprete virtuoso, tinha uma humildade desarmante, gostava de ser desafiado pelos outros e até ia ao Frágil ver que músicas ouviam os mais novos. Este ano vamos ouvi-lo de muitas maneiras diferentes, promete
Ao primeiro dedilhar, o público identificava “Verdes Anos”. Era inconfundível. Os aplausos sobrepunham-se às notas. Carlos Paredes continuava, concentrado. Abraçado à guitarra, com os seus dedos ágeis, em palco, o homem tímido tornava-se um gigante.
“Quando se é um grande intérprete às vezes não se é tecnicamente bom, outras vezes quando se é muito bom tecnicamente pode não se ser um grande intérprete. O Carlos Paredes tem tudo. Tanto a parte física, mecânica, de tocar, como a interpretação. E além disso é compositor. É raro ter tudo na mesma pessoa. Ele é um compositor genial e um intérprete virtuoso.”
Luísa Amaro, a mulher que o acompanhou no palco e na vida, fala de Carlos Paredes no presente. Vinte anos depois da sua morte, o músico continua vivo através da sua obra, garante: “É impressionante a quantidade de pessoas que continuam a querer tocar a música dele e a procurarem outras maneiras de tocá-la. Tem havido propostas interessantíssimas”. Isso mesmo se vai ver ao longo deste 2025, ano em que se assinala o centenário de nascimento de Paredes. O programa oficial das comemorações só será apresentado na próxima semana, mas Luísa Amaro está entusiasmada: “Percebemos que há uma intenção amorosa, afetiva, muito grande nesta vontade de interpretar Carlos Paredes”.
O legado de Paredes é a sua música, diz. "A música e uma guitarra com um vibrar diferente, que não é a guitarra de fado.” Por um lado, essa guitarra “é um som profundamente português”. “Ele surge na altura certa, em que talvez fosse preciso uma nova sonoridade, uma esperança.” Mas, por outro lado, “é algo que nos comove a todos, não só aos portugueses. Era uma coisa que acontecia constantemente, eu vi banqueiros alemães a chorarem no final de um concerto do Carlos Paredes”, recorda. Banda sonora de um sentir nacional, a sua música é, simultaneamente, universal.
Aos nove anos já tocava, aos 12 já compunha: "Se não é isto um génio..."
Carlos Paredes nasceu a 16 de fevereiro de 1925, em Coimbra. A guitarra portuguesa era uma tradição familiar iniciada pelo seu bisavô, António Paredes, continuada pelo avô Gonçalo Paredes e pelo tio-avô Manuel Paredes, e, depois, pelo seu pai, Artur Paredes. Tanto o avô como o pai foram figuras importantes na canção coimbrã e na promoção da autonomização da guitarra de Coimbra em relação ao fado de Lisboa. No núcleo familiar de Carlos Paredes todos tocavam guitarra, incluindo a mãe, que era professora do ensino secundário, e a irmã mais nova. Carlos aprendeu a tocar com quatro anos e aos nove já acompanhava o pai.
Entretanto, Artur Paredes, que era funcionário público, foi transferido para Lisboa, trazendo toda a família para a capital. Por insistência da mãe, Carlos aprendeu a tocar violino e piano. Na escola, não foi um aluno brilhante e não chegou a terminar o liceu. Tornou-se, no entanto, um homem extremamente culto, apaixonado por literatura e interessado por história, sempre curioso sobre todas as artes. Começou a compor muito cedo, embora só muito mais tarde mostrasse as suas músicas.
"Ele tem uma genialidade que não é procurada e não é rebuscada, é da natureza humana, como a do Mozart", afirma Luísa Amaro. "Claro que se o Carlos Paredes estivesse aqui ele não me deixaria dizer isto, nem a brincar, mas uma pessoa que compõe um 'Movimento Perpétuo' aos 12 anos... se não é isto um génio, o que é?"
E, no entanto, funcionário administrativo do Estado desde 1949, Carlos Paredes era músico ao mesmo tempo que trabalhava no arquivo de radioterapia do Hospital de São José. Nos anos 50, aderiu ao Partido Comunista Português. Em 1958 foi preso pela PIDE. Esteve detido durante 18 meses no Forte de Caxias, onde foi torturado. Os colegas de prisão contam que ele se passeava pelo pátio, sempre a dedilhar uma guitarra imaginária, porventura compondo música na sua cabeça. Depois da prisão, foi expulso da Função Pública, o que o levou a trabalhar durante algum tempo como delegado de propaganda médica.
Seria reintegrado no Hospital de São José após o 25 de Abril de 1974. Nunca quis correr o risco de deixar o seu emprego para se dedicar à música e trabalhou aqui até à reforma, em 1986. “Sou pouco mais do que um amador de guitarra”, dizia, sobre o facto de esta não ser a sua carreira profissional. Em 1990, o secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes, atribuiu-lhe um subsídio de mérito.
"Uma guitarra que se afirma sozinha, sem necessitar do fado"
Depois de anos a tocar com o pai, e quando já era notável o seu talento, em 1960, Carlos Paredes foi convidado a compor a música da curta-metragem “Rendas de Metais Preciosos”, de Cândido da Costa Pinto. Nesse trabalho, foi acompanhado à viola por Fernando Alvim - foi o início de uma nova carreira e foi também o início de uma colaboração determinante que iria durar 25 anos. “Mais do que um simples acompanhador, sóbrio, mas de uma eficiência notável, Alvim é uma pedra fundamental no edifício sonoro criado por Paredes, sendo o responsável direto pelo seu acabamento harmónico e por toda a base da sua sustentação rítmica”, escreve Octávio Fonseca Silva no livro “Carlos Paredes - A Guitarra do Povo”.
“Havia uma figura tutelar que era o pai, o grande Artur. Para ele, o grande guitarrista era o Artur Paredes”, explica Luísa Amaro. Carlos Paredes “podia ter continuado a ser um segundo Artur Paredes porque ele tinha a técnica como o pai, tinha as mãos, e, no entanto, procurou um caminho seu, quis fazer diferente e isso foi mérito dele. Encontrou um espaço para si. Pegou nessa técnica e criou um estilo completamente diferente. É uma guitarra que se afirma sozinha, sem necessitar sempre da voz, sem necessitar de recorrer ao fado para sobreviver.”
Da técnica do pai, Carlos Paredes “aproveitou o essencial e desprezou o acessório”, como explica Octávio Fonseca Silva, citando o músico Paulo Soares. “Descomplicou a execução (e a criação), tirando o máximo partido das características da guitarra portuguesa, designadamente da sua afinação. Mas, para lá da técnica, abriu o instrumento a um género de repertório nunca antes nele abordado. E, acima de tudo, fê-lo com uma qualidade artística genial.”
Essa qualidade fica patente logo no segundo EP de Paredes, “Verdes Anos”, com temas compostos em 1962 para o filme homónimo de Paulo Rocha, marco do Novo Cinema português. No filme, a “Canção Verdes Anos” ganhou um poema de Pedro Tamen que foi interpretado por Teresa Paula Brito. Tal como o filme, a música parecia falar da juventude desses anos 60 de desejos por cumprir.
“Não há ninguém que seja tão original que possa desfazer-se de toda a herança que veio parar às suas mãos”, ouvimo-lo a dizer no filme “Movimentos Perpétuos” (2006), um “cine-tributo” de Edgar Pêra. Paredes aceitou a sua herança, mas moldou-a à sua maneira. Segundo o musicólogo Rui Vieira Nery, Carlos Paredes “soube ouvir as músicas múltiplas de Portugal, as eruditas e as populares, e sem se restringir a nenhum campo em especial, construiu uma linguagem que de alguma maneira incorpora todas essas componentes representativas do sentir musical português”.
Em 1967, lançou o seu primeiro álbum, “Guitarra Portuguesa”. A par deste, “Movimento Perpétuo” (1971) e “Espelho de Sons” (1988) são os seus trabalhos fundamentais.
O encontro com Luísa Amaro: companheiros de palco e de vida
Carlos Paredes nunca escondeu que gostava de ser desafiado por outros e de responder a encomendas. Esses convites que recebeu para o cinema, mas também para espetáculos, foram determinantes para o estimular a percorrer novos caminhos na composição. Destacam-se entre esses trabalhos, as composições para os filmes "Fado Corrido" (1964), realizado por Jorge Brum do Canto, “As pinturas do meu irmão Júlio” (1965), curta-metragem de Manoel de Oliveira, ou "Mudar de Vida" (1966), do cineasta Paulo Rocha.
“O Carlos Paredes compunha muito acompanhando imagens, para filmes, para espetáculos, a imagem era uma grande fonte de inspiração”, conta Luísa Amaro. “Quando deixou de ter essas encomendas, sobretudo dos filmes, começou a sentir um vazio. 'Agora componho para quê?' Às vezes utilizava slides para poder improvisar e criar a partir daí, foi isso que fez com os seis cantos sobre a cidade, usou fotografias da cidade, que fez com uma amiga nossa. Era sempre aquela ligação à imagem para contar uma história.”
Luísa Amaro, que tinha formação em viola clássica, conheceu Paredes através de um amigo, colega do Conservatório. “O Carlos estava a ensiná-lo para que o acompanhasse. O Fernando Alvim estava cansado, foram mais de 20 anos, sempre juntos, e ele de vez em quando já pedia se não haveria alguém que o pudesse substituir.” Houve um dia, em 1983, em que Carlos Paredes precisou de acompanhamento. “Não tinha nem o Alvim nem o meu amigo, nenhum deles estava disponível, então, ligou-me e perguntou se eu não me importava de o acompanhar. Porque eram só umas quatro músicas, era uma apresentação curta. E eu naquela inconsciência de quem toca viola e que sabe fazer aqueles acompanhamentos, porque, além da música clássica, na viola muitas vezes acompanhava a voz, aceitei.” Essa apresentação correu tão bem que depressa Luísa Amaro, com 24 anos, passou a acompanhar Carlos Paredes.
Tocar com Paredes era ao mesmo tempo um desafio e uma lição. Tinha de haver uma enorme empatia e uma atenção permanente. Os intérpretes da música popular, explica Luísa Amaro, “obedecem a um tempo muito diferente dos da música clássica. Na clássica, o músico tem de entrar nos compassos e aquilo tem de estar tudo certinho. A música popular tem outra elasticidade, não obedece a regras pré-estabelecidas, o tempo é o da respiração e quem acompanha tem de aprender isso e entrar nesse tempo, tem de fluir.”
Pupila e mestre, companheiros de palco e de vida. “O Carlos Paredes é um ser muito especial e muito desconcertante porque tinha tanto de genial e de grande músico, com um grau de exigência profundo e enorme, como tinha também um lado de criança, de menino quase perdido, portanto tinha mesmo que haver ali alguém a tomar conta para ele não se perder", recorda a companheira.
Quando compunha não se isolava nem se fechava num quarto. Pelo contrário, ficava sentado na sala a tocar e ia sempre interagindo: “Isto parece-te bem?”, perguntava. “Qualquer pessoa fica extasiada quando ouve, o que ele fazia, por muito simples que fosse, podiam ser simples improvisos, era muito bom. Eu às vezes dizia: guarda esse improviso que me parece muito bonito. Ele andava sempre com um gravadorzinho para captar rapidamente as coisas que estava a fazer. Fazia frases geniais, mas tinha que as guardar logo se não perdiam-se. E depois iria pegar naquele bocadinho e iria desenvolver, que era uma das grandes capacidades dele." Às vezes também cantava, ou seja, “acompanhava-se”, para perceber como aquilo soava. Outras vezes pedia a Luísa que o acompanhasse. “Ele precisava daquele impulso, do outro, que era uma coisa que o Fernando Alvim fazia muito bem. Eles eram capazes de estar horas e horas seguidas a tocar, e o Alvim ali ao pé dele com muita paciência.”
“Quando estava em palco era quando se sentia mais livre"
“Here comes Carlos Paredes and his pretty girl”. Aí vem Carlos Paredes e a sua miúda bonita. Eram estas as palavras de um dos maestros que conheceu o guitarrista português numa digressão pela China. E, não, a miúda a que se referia o maestro não era Luísa Amaro. “Não, não, a ‘pretty girl’ era a sua guitarra”, conta Luísa Amaro, entre risos, ao recordar esta história. Carlos Paredes nunca deixava a sua “pretty girl”. Tinha uma guitarra preferida, que levava consigo para todo o lado e com a qual tinha mil cuidados. Aquela guitarra não podia apanhar sol e nunca era pousada no chão frio.
Mais do que fazer discos, Paredes gostava de tocar para os outros. "Essa era a sua missão", diz Luísa Amaro. Tocou no país e no estrangeiro, passando por exemplo pelo festival Vilar de Mouros em 1968 ou pelo popular programa de televisão “Zip Zip” em 1969. A sua primeira grande apresentação no estrangeiro aconteceu em 1967, a convite de Amália Rodrigues: durante quase um mês integrou o elenco de um espetáculo de música portuguesa que se apresentou no Olympia de Paris. Depois do 25 de Abril, participou nas campanhas de dinamização cultural, viajava na sua 4L por todo o país e continuou a apresentar-se quer em pequenas coletividades quer em grandes palcos. Manteve-se militante do PCP e participava em muitas das suas atividades.
“Quando estava em palco era quando se sentia mais livre, libertava-se de tudo", recorda Luísa Amaro. "E tinha aquele ataque assombroso das primeiras notas. Muitos músicos clássicos, mesmo os muito bons, naqueles minutos iniciais ainda têm a mão fria. Mas o Carlos Paredes pegava na guitarra e aquilo era um ataque perfeito à corda, logo com uma força. Nas piores condições humanas que se possa imaginar, ele a tocar com frio horrível, aquele homem agarrava e tocava logo as cordas com uma força, que é uma coisa que tem a escola de Coimbra, é um ataque viril e muito forte, sem hesitações. Aquele ataque não permite insegurança, a partir dali o concerto está logo ganho.”
Luísa Amaro acompanhou-o em concertos em diferentes países e confirma que em todo o lado o público se rendia: "Eu estava a acompanhar, logo a atenção estava mesmo nele, eu era absolutamente invisível, coisa que não me incomodada, e era bom porque podia dar-me o luxo de sentir o público. E era um assombro, era arrepiante a maneira como as pessoas reagiam à música do Carlos Paredes".
Os concertos terminavam geralmente com o "Canto do Rio", que é a música preferida de Luísa Amaro: "Era como um suspiro de alívio, depois daquelas músicas muito violentas, muito obsessivas, de uma angústia, umas mais tristes, outras não, mas sempre com uma narrativa por detrás muito forte, vinha o 'Canto do Rio', que era dedicado ao Tejo, tem a ver com a luz e com aquela tranquilidade que nos transmite o rio. E parecia que psicologicamente ele também descansava naquela música". O concerto estava a terminar, missão cumprida.
Paredes gostava de colaborar com outros músicos e autores. "Gostava de desafios, de seguir caminhos diferentes." Fê-lo, por exemplo, em 1970, quando lançou “Meu País – Canções” com a cantora Cecília de Melo, em “É preciso um País” (1975, com o poeta Manuel Alegre) ou “Invenções Livres” (1986, com o pianista António Victorino d’Almeida). Em 1990 teve oportunidade de tocar com o contrabaixista Charlie Haden, com quem gravou o disco “Dialogues” e se apresentou ao vivo nos coliseus de Lisboa e do Porto.
"Naquela altura não havia outras formas que não fosse a editora a promover o artista. Também era difícil porque não era um artista comerciável. O que o Carlos Paredes conseguiu foi à custa do trabalho dele. E foi como se fosse uma bola de neve. Tinha uma série de gente pelo mundo fora, grandes músicos que o estimavam. Não era ele que os buscava, nem a editora. Eram eles próprios que iam ao encontro do Carlos Paredes", recorda Luísa Amaro.
"O Charlie Haden abriu-lhe muitas portas no mundo do jazz, ficaram todos fascinados com ele. E o trabalho do Carlos Paredes tinha muitas afinidades com o jazz, por causa da improvisação e de toda a liberdade." O músico chegou a ter planos para tocar com Astor Piazzolla, que morreu em 1992. E logo a seguir ficou doente e já não pôde concretizar outros encontros que estavam a ser arranjados, para tocar com Ravi Shankar e com o Kronos Quartet, por exemplo. "Foi uma enorme injustiça, porque naquela altura ele iria finalmente recolher os frutos de todo o trabalho", lamenta Luísa Amaro.
Humildade e coletividade: "Era um verdadeiro humanista"
A curiosidade era uma das suas principais características. Luísa Amaro recorda uma noite em que foram à discoteca Frágil, em Lisboa. À entrada, a porteira vaticinou: "Não acredito que ele aguente mais de cinco minutos". Mas Paredes ficou a noite toda, encostado ao balcão a beber sumos de laranja, a ouvir a música. Os jovens, na pista, não queriam acreditar no que viam: "Belisquem-me que está ali o Paredes".
Os amigos recordam-lhe a humildade e o espírito de coletividade. O seu sentido ético, de responsabilidade cívica. Dirigia-se aos outros como “amigo”. Luísa Amaro lembra-o como "um homem bondoso e um verdadeiro humanista". "Era uma pessoa que não ofendia ninguém, que não gozava com ninguém, não participava na má-língua nem em gracinhas, afastava-se quando via isso acontecer."
Em 1992 - nos dias 20 e 21 de março, no Teatro São Luiz, em Lisboa, e no dia 25 no Rivoli, no Porto - Carlos Paredes subiu ao palco, acompanhado por Luísa Amaro e Fernando Alvim e por mais uma mão cheia de convidados, para três concertos em que viajou por toda a sua carreira. "Ele dizia que os promotores iam ter prejuízo, que não ia haver ninguém no segundo dia, e dizia isto com muita convicção", conta Luísa Amaro. "Dizia muitas vezes assim: 'Eu sei que não sou nenhuma porcaria', mas daí a admitir que era genial… "
Mas os concertos foram memoráveis, claro. "Ele estava cansado, ainda não sabia o que tinha, mas estava com problemas, mas aguentou estoicamente."
Nesse ano, no 10 de junho, o Presidente da República Mário Soares condecorou-o com a Ordem Militar de Santiago, atribuindo-lhe o título de comendador. Pouco depois terminaria a sua carreira. A última atuação em público de Carlos Paredes foi em outubro de 1993, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, acompanhado por Luísa Amaro. Dois meses depois, foi-lhe diagnosticada uma mielopatia (doença da medula) que lhe prendeu os movimentos e o impediu de andar. Foi internado numa casa de saúde em Lisboa. Quando o visitava, Luísa Amaro levava-lhe a guitarra, que ele limpava e segurava, mas nunca mais tocou. Nem sequer suportava ouvir o som da guitarra. Com o rádio sempre ligado na Antena 1, só ouvia música clássica. Morreu em 23 de julho de 2004, aos 79 anos.
Continuar a tocar Paredes é mantê-lo vivo
Luísa Amaro começou a aprender a tocar guitarra com Carlos Paredes, mas não teve muito tempo até ele adoecer. “Ele dava-me exercícios e incentivava-me, Luisinha, tens de tocar isto. Mas eu não tinha muita disponibilidade, ia tocando só nos intervalos. A minha mágoa é não ter aprendido mais. Ele tinha mesmo muita paciência, é uma pessoa de uma cordialidade, de uma gentileza enormes. Nunca ofendia ninguém, podia estar cansado, mas dizia 'então vamos lá, o que é que queres aprender? Então vá lá, vou-te ensinar e faz assim, faz assado, vou-te explicar um exercício de mão que te vai ajudar'. E a pessoa via os dedos dele, como é que eu vou fazer isso? Aqueles dedos super rápidos, super seguros, com uma força precisa. 'Não digas que não és capaz.'Nunca o vi impaciente, estava sempre de bom coração a ensinar. Eu continuo a tentar, mas não chego lá.”
Depois dessas aulas, Luísa Amaro só voltou à guitarra portuguesa depois da morte de Carlos Paredes, e este acabou por se tornar o seu instrumento principal. Hoje praticamente não pega na viola. “O Carlos Paredes costumava dizer que uma pessoa quando pega na guitarra portuguesa não consegue deixar, e é verdade, é um instrumento viciante", diz. Atualmente com 66 anos, Luísa Amaro continua a interpretar os temas de Carlos Paredes e em todos os concertos explica como se sente honrada por poder partilhar com o público as histórias, os valores e as músicas de alguém que foi tão especial. Sente que é sua responsabilidade fazê-lo.
Amália Rodrigues considerava-o "um monumento nacional". Mas um monumento muito vivido. A obra de Carlos Paredes continua a inspirar diversos artistas e tem sido apropriada e recriada por músicas de diferentes géneros, do rapper Sam the Kid ao contrabaixista Bernardo Moreira, dos Gaiteiros de Lisboa aos Dead Combo, passando por Belle Chase Hotel, Stereossauro, Mísia, Sérgio Godinho ou Mariana Abrunheira. "Os mais puristas são capazes de dizer que isto não é Paredes, isto é outra coisa. Não importa, são mundos, são músicos que sentem o Paredes à maneira deles. Isso que é importante. E há coisas espantosas", admite Luísa Amaro.
Apropriado pela cultura popular, Carlos Paredes teve o rosto gravado em murais, deu nome a um avião da TAP, a um auditório na freguesia de Benfica, a um prémio patrocinado pela autarquia de Vila de Franca de Xira e que todos os anos reconhece o melhor da música portuguesa. Os seus discos foram reeditados no mercado internacional. A sua música aparece em filmes - por exemplo, em "A Festa" (2017), de Sally Potter. Os "Verdes Anos" continuam a ser inconfundíveis. Basta um acorde e já sabemos que aquela é a guitarra de Carlos Paredes.
Celebrar Paredes: o que aí vem
Em julho, o Ministério da Cultura anunciou a criação de um grupo de trabalho para a comemoração do centenário de Carlos Paredes. O grupo é coordenado pelo advogado Levi Batista, amigo e executor do testamento de Carlos Paredes, e composto pelo historiador António Nunes, pela diretora do Museu do Fado, Sara Pereira, pelo coordenador da equipa de instalação do Arquivo Nacional do Som, Pedro Félix, e pela técnica especialista do Gabinete da ministra da Cultura, Filipa Alfaro, em representação da área governativa da Cultura. A programação oficial será anunciada no próximo dia 20.
Enquanto isso, já há alguns eventos que estão nas agendas culturais:
- “O Homem de Mil Dedos” é um projeto dos músicos clássicos Daniel Almeida (piano) e Fábio Meneses (clarinete), que estudaram e adaptaram 12 temas de Carlos Paredes. Depois da estreia, no início do ano, as próximas apresentações são na Casa de Mateus, Vila Real (2 de fevereiro), e no Favo das Artes, Mondim de Basto (15 de fevereiro).
- 5 de fevereiro - Teatro São Luiz, Lisboa: Concerto “No centenário de Carlos Paredes” com a Orquestra Metropolitana de Lisboa.
- 6 de fevereiro - Centro Cultural de Belém, Lisboa: Espetáculo “Perpétuo: Tributo a Carlos Paredes”, concebido e encenado por Diogo Varela Gomes, com direção musical de João Paulo Santos.
- A partir de 13 de fevereiro: o guitarrista português Norberto Lobo e o norte-americano Ben Chasny vão dar seis concertos em Portugal para celebrar a vida e obra de Carlos Paredes. O ciclo arranca a 13 de Fevereiro, na Culturgest, em Lisboa, seguindo-se o gnration, em Braga, no dia 14, e o Auditório de Espinho, no dia 15. No dia em que Carlos Paredes faria 100 anos, a 16 de Fevereiro, a dupla de guitarristas toca no Convento São Francisco, em Coimbra, estando também agendado um concerto no dia 18 do mesmo mês no Teatro das Figuras, em Faro, e no festival Tremor, nos Açores, em Abril, onde estarão em residência artística no começo de 2025.
- 16 de fevereiro - Aula Magna da Universidade de Lisboa: concerto comemorativo - entrada livre.
- Fevereiro e março: o PCP prevê a realização de um seminário, na segunda quinzena de fevereiro, "com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre o homem e sobre a música e o pensamento estético". Em finais do mês de março, o PCP realizará um concerto em homenagem a Carlos Paredes.