Análise: salários conhecidos do antigo ministro da Economia são elevados, mas só a vida frugal que Manuel Pinho não teve poderia fazê-lo dispor dos seis milhões que o tribunal impôs de caução. A não ser que haja fortuna oculta. Usá-la poderia ser uma “confissão”
Não foi propriamente uma vida frugal aquela que Manuel Pinho teve quando deixou de ser ministro da Economia, em 2009, após ter feito com os dedos uns “corninhos” no Parlamento. Viveu em Times Square, no centro de Nova Iorque, andou pelos quatro cantos do mundo, da China à Austrália, hoje vive em Espanha. Hoje não, ontem: porque agora estará em prisão domiciliária com vigilância eletrónica em Portugal, depois de não ter pago uma caução de seis milhões de euros imposta pelo juiz Carlos Alexandre. “Manuel Pinho não tem esses seis milhões”, disse o seu advogado, Ricardo Sá Fernandes.
Manuel Pinho tem património em Portugal, incluindo uma casa no norte que está em obras, segundo explicou o seu advogado, dispondo também de contas bancárias no nosso país - “onde recebe a sua pensão”. A questão é relevante para interpretar a proporcionalidade entre o valor exigido por Carlos Alexandre e o património de Manuel Pinho. E se “não tem esses seis milhões”, então a fixação do valor pode ter duas interpretações, como têm referido alguns juristas: ou fixar uma caução impossível de pagar, para garantir que Pinho fica recluso em casa com pulseira eletrónica; ou fazer uma provocação de que Pinho tem património não declarado, como sustenta a tese do Ministério Público - se pagasse, Manuel Pinho estaria quase a “confessar” dispor desse dinheiro.
Notas: uma caução pode ser paga em dinheiro ou em património, como por exemplo fez Luís Filipe Vieira; a caução é devolvida no final dos processos judiciais, na íntegra caso os arguidos sejam absolvidos ou deduzindo-lhes eventuais multas se forem condenados.
Mas olhemos para os dados conhecidos da fortuna de Manuel Pinho para avaliar a proporcionalidade.
Os salários de Manuel Pinho
Quando o economista do BES passou para o governo de José Sócrates, em 2005, foi obrigado a declarar rendimentos e património ao Tribunal Constitucional. Ficou então a saber-se que, como administrador do BES (onde trabalhava desde 1994), Manuel Pinho declarou um rendimento bruto de cerca de 490 mil euros em 2005 e outro tanto em 2004. Era o seu salário anual antes de ser ministro.
Foi perder salário para o governo: em 2006 declarou 87 mil euros de salário e despesas de representação enquanto ministro, 88 mil euros em 2007, 90 mil euros em 2009.
Depois saiu do governo.
Nos 12 anos seguintes não houve declarações públicas de rendimentos, nem teria de haver. Mas há outras informações sobre fontes de rendimento do Manuel Pinho. Voltemos ao GES.
Voltamos porque Manuel Pinho também voltou: depois de sair do governo, o ministro da Economia voltou a ganhar rendimento pago pelo antigo patrão, Ricardo Salgado. Como administrador da BES África, uma “holding” sem qualquer atividade, Pinho recebeu desde 2009 até ao 2014 um pagamento mensal de 39 mil euros. Nessa altura, com a queda do BES (e do GES), o pagamento foi interrompido, o que levou Pinho a reclamar junto do Novo Banco um pagamento de 1,8 milhões de euros: Pinho alegava ter uma carta de Ricardo Salgado que deixava por escrito o compromisso de uma reforma antecipada com o pagamento antecipado de todos os salários até aos 65 anos. O Novo Banco não pagou.
Era esse dinheiro do GES que lhe permitia nesses anos viver em Nova Iorque, num apartamento com um dos metros quadrados mais caros do mundo, numa transversal a dezenas de metros de Times Square, em Nova Iorque. Manuel Pinho dava então aulas na Universidade de Columbia, que a EDP patrocinou, no que o Ministério Público entende ser um pagamento de favores. A EDP (no centro deste caso) sempre desmentiu, considerando ser uma coincidência o facto de patrocinar uma universidade imediatamente antes de esta contratar um ex-ministro que tinha tomados decisões que envolviam a empresa. “Não beneficio, nem beneficiei, de nenhuma cátedra de 3 milhões paga pela EDP”, afirmou o próprio Manuel Pinho em 2017.
Manuel Pinho deu aulas em vários países e desconhece-se que rendimentos auferiu por serviços como esses. Mas é o seu próprio advogado quem diz que ele não tem meios para pagar os seis milhões de euros de caução. A não ser que o juiz Carlos Alexandre acredite na tese do Ministério Público: que Manuel Pinho tenha dinheiro fora do país, que nunca declarou, pelo qual não pagou impostos, e que corresponde a pagamentos por corrupção.
Os dinheiros (literalmente) “por fora”
Os indícios recolhidos ao longo de anos pelo Ministério Público apontam para dinheiros fora do país. Alguns, aliás, nunca entraram no país, voando de umas sociedades offshore para outras sociedades offshores.
Segundo a investigação, Manuel Pinho terá recebido pelo menos 778 mil euros entre 2005 e 2009 do Grupo Espírito Santo enquanto foi ministro da Economia. Ou seja, Ricardo Salgado não foi patrão antes e depois de Pinho ser ministro: pagou-lhe sempre. O Ministério Público sustenta que estes pagamentos foram feitos entre o famoso “saco azul” do GES (a Espírito Santo Enterprises) e a Tartaruga Foundation, sociedade offshore com beneficiários últimos Manuel e a mulher Alexandra Pinho. Foram também rastreadas transferências a partir de Gibraltar, que o próprio Manuel Pinho justificaria como sendo resultado de uma herança. No total, as transferências terão ascendido a 3,7 milhões.
Este ano, na investigação “Pandora Papers”, foi confirmada a existência das três sociedades offshore atribuídas a Manuel Pinho que já constavam no processo do Ministério Público: a Tartaruga Foundation, a Blackwade Holdings e a Mandalay, sociedade sediada nas lhas Virgens Britânicas criada pela panamiana sociedade Mossack Fonseca. Foi esta última sociedade offshore que terá sido utilizada para comprar o apartamento em nova Iorque.
Uma caução "ultramilionária"
Horas depois da decisão de Carlos Alexandre, o advogado de Manuel Pinho, Ricardo Sá Fernandes descreveu na CNN Portugal qual é o património de Manuel Pinho: um T1 em Nova Iorque avaliado em um milhão de euros, quatro apartamentos no Norte do país, uma casa perto de Braga (onde vai cumprir a maior parte do tempo de prisão domiciliária) e uma quinta. Além disso, Manuel Pinho recebe uma reforma líquida de 15 mil euros, que recebe numa conta bancária em Portugal.
É tendo em conta este património declarado que a caução surge elevada. Ou "ultramilionária". A expressão é do advogado Manuel Magalhães e Silva, que esta quarta-feira disse duvidar da legalidade da medida de prisão domiciliária.
Os valores conhecidos quanto aos rendimentos de Manuel Pinho são muito elevados, mas só a existência das alegadas transferências pelas quais Manuel Pinho está indiciado por fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção poderão justificar uma caução de seis milhões de euros, a mais alta aplicada em Portugal – e o dobro, por exemplo, da primeira caução imposta a Ricardo Salgado, de três milhões de euros em 2014.
É aquilo em que acredita o Ministério Público. Ao fixar esta caução, o juiz Carlos Alexandre parece dar credibilidade a essas suspeitas.
Nota: notícia atualizada às 23:46 de 15 de dezembro de 2021 com novas declarações de Ricardo Sá Fernandes à CNN Portugal.