Portugal celebra este ano os 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões. Numa entrevista à CNN Portugal, Frederico Lourenço, que acaba de lançar uma antologia camoniana, destaca a intemporalidade e relevância do poeta
O primeiro contacto de Frederico Lourenço com a obra de Camões remonta à infância, por influência da mãe. Autor do romance camoniano "Pode um desejo imenso" (primeiro verso de uma ode do poeta) e agora de “Camões – Uma antologia”, Frederico Lourenço recorda que o poeta “foi sempre um ilustre conhecido".
Frederico Lourenço, que esta segunda esteve na Feira do Livro de Lisboa a apresentar a sua obra, acredita que o poeta recebeu mais reconhecimento em vida do que se pensa.
Recorda-se do primeiro contacto com Camões?
Camões foi sempre um ilustre conhecido na minha infância e adolescência. A minha mãe conhecia bastante bem a obra de Camões pelo facto de ter sido aluna na Escola Francesa de Lisboa do Professor Roger Bismut, que era um grande especialista de Camões e obrigava os alunos a traduzirem sonetos de Camões para francês. Não consegui gostar de Os Lusíadas antes de ter feito o curso de Estudos Clássicos. Mas, depois de ter adquirido aquela cultura clássica que Camões pressupõe dos seus leitores, passei a achar o poema fascinante.
A obra de Camões pode ser sempre vista de formas diferentes?
Para mim o encanto de Camões é tão inesgotável quanto imbatível. Na sua poesia lírica, a beleza da linguagem vive por si só, sem precisarmos de conhecer os poetas que ele leu e que estão por trás dos seus versos: Vergílio, Horácio, Petrarca, Garcilaso e Boscán. Claro que a sua poesia se torna ainda mais interessante se conhecermos os modelos, mas ela vive de forma autónoma. No caso de Os Lusíadas já acho que o poema não faz sentido se o divorciarmos dos seus modelos antigos, sobretudo a Eneida de Vergílio. E para apreciarmos a linguagem épica de Camões em toda a sua plenitude, precisamos de saber latim. O que ele faz é escrever num idioma que tem tanto de latim como de português, jogando constantemente com a capacidade do português de se fazer passar por latim.
Que lições atuais podemos aprender com a leitura de Os Lusíadas e da lírica de Camões?
As lições da Lírica têm a ver com a intemporalidade dos sentimentos humanos: Camões escreve aparentemente sobre a sua vida sentimental, mas no fundo há uma universalidade enorme nos seus versos e na forma como ele verbaliza as emoções humanas. Houve sempre passos de Camões que me acompanharam nos piores e melhores momentos da minha própria vida sentimental. Sob esse ponto de vista, não há nada de distante em Camões. No caso d'Os Lusíadas, trata-se de um poema que exige dos leitores mais cultura e conhecimentos. Mas é uma obra que configura uma meditação grandiosa sobre Portugal, no que Portugal tem de bom e de mau. Tem, por isso, uma mensagem que ainda é relevante atualmente, porque nos ajuda a compreender, à luz de hoje, o nosso passado.
Portugal celebra o dia da morte de Camões, que morreu pobre. Acha que Portugal deve mais a Camões do que ele a Portugal?
Camões teve (na minha opinião) mais reconhecimento em vida do que as pessoas pensam. Na classe alta, obteve vários mecenas e o facto de ter conseguido um parecer tão positivo da Inquisição para a publicação d'Os Lusíadas mostra que ele não era um zé-ninguém. Terá sido sempre pobre, mas já o seu primeiro biógrafo escreveu em 1613 que a culpa da pobreza era do próprio Camões, que era um grande gastador. No entanto, não há dúvida de que foi depois da sua morte que Camões se tornou o ídolo nacional. O facto de termos tido a União Ibérica entre 1580 e 1640 ajudou a levar às estrelas o nome de Camões, porque ler Camões tornou-se uma espécie de dever patriótico.
Que mensagem deixaria a um jovem que só conhece Camões do ensino secundário e quer explorar mais a obra?
Aos leitores mais jovens, eu diria sempre para começarem pelos sonetos. São poemas mais breves, muitos deles de uma beleza imediata. Quem não adora logo à primeira «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades» ou «Amor é um fogo que arde sem se ver?»
Em Camões – Uma Antologia, diz que Camões está ao nível dos grandes poetas mundiais como Homero e Virgílio. É o único poeta português de quem se pode dizer isso?
O facto de Camões ter escrito o poema épico mais brilhante da literatura europeia leva a que ele esteja numa categoria especial na literatura portuguesa. Camões é o nosso Homero, o nosso Vergílio, o nosso Dante. Claro que temos o outro génio inultrapassável, que é Fernando Pessoa. E Pessoa não fica atrás de nenhum poeta da história da literatura. Adoro ambos, sem dúvida, mas Camões interessa-me mais, também pelos desafios da própria disciplina dos Estudos Camonianos, que é um mundo próprio dentro do estudo da literatura portuguesa.
As diferentes visões de Camões (humanista e poeta "maldito") mostram a riqueza da obra?
Camões humanista fez parte da mesma personalidade do homem que foi também o frequentador de tabernas e bordéis, mas a "personagem" que deixou mais marca na sua poesia foi a do humanista. O Camões real é uma construção hipotética que fazemos a partir do facto de ter sido preso e mandado para a Índia e também a partir das Cartas que lhe são atribuídas, em que ele fala de prostitutas. Mas, na sua poesia, quem surge em primeiro plano é o Camões humanista, o poeta erudito que sabia tudo sobre literatura latina, italiana e espanhola.
Tanto o dia como o lugar do nascimento de Camões continuam sem ser consensuais. Acha que a sugestão de que Camões nasceu no dia 23 de janeiro, defendida por alguns investigadores, está próxima da verdade?
Camões insere-se totalmente na linha do poeta-fingidor, seguindo nos passos de Horácio e Petrarca. Por isso, é sempre arriscado basear teorias biográficas nos seus poemas, que são construções literárias onde há alguns elementos autobiográficos (como aponto na Antologia), mas esses elementos surgem transfigurados e manipulados por necessidades de expressão cuja essência só tem realidade literária.