Merelinense: duas freguesias, um clube, zero derrotas

5 jan 2017, 10:27
Merelinense (foto: Joaquim Macedo)

Fundado em 1938, o Merelinense Futebol Clube vive um dos momentos altos da sua história. O regresso aos campeonatos nacionais, três anos depois, faz-se de vitórias atrás de vitórias. Com cautela máxima, mas ambição bastante, este emblema do concelho de Braga aponta firme à II Liga

CAMINHOS DE PORTUGAL é uma rubrica do jornal Maisfutebol que visita passado e presente de determinado clube dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá a nossa atenção.

MERELINENSE FUTEBOL CLUBE – Campeonato de Portugal – Série A

Plantel do Merelinense nos anos 70

A palma de São Paio e a chave de São Pedro abrem as portas de um clube com mais de 78 anos de história. No concelho de Braga, duas freguesias, Merelim como denominador comum e um clube com ambições em alta na Série A do Campeonato de Portugal.

Antes de tudo, uma pergunta. Há rivalidade num clube que representa duas freguesias? Não. «Sempre foi assim». Palavra de presidente, António Silva. Tanto assim é que o fundador, João Soares Vieira – que dá nome ao estádio – era natural de São Paio, enquanto a sede está instalada em São Pedro de Merelim.

Entre fronteiras, nada de desavenças e um objetivo único: subir às competições profissionais. A meta está traçada.

Antes de lá chegarmos, contudo, é preciso conhecer o caminho de um clube que viveu, não raras vezes, altos e baixos.

Esperança, intermitência, expectativa, desânimo. Ingredientes que marcaram décadas de um clube que (quase) sempre viveu entre os campeonatos não profissionais e as provas distritais. Da inédita subida à extinta 2.ª Divisão B, em 2006/07, ao futsal como expoente além relvados, o Merelinense começava a afirmar-se nos pequenos palcos em pleno século XXI. Seguiu-se o que foi, de forma quase unânime, um dos jogos mais importantes da história do clube. Adversário, Vitória de Guimarães. Ano, 2011. Janeiro, dia 27.

Estamos no Estádio 1.º de Maio, Braga. Quartos-de-final da Taça de Portugal.

Valter Beck era, tal como hoje, o capitão de equipa. Recorda um duelo onde houve um natural «nervosinho». «Não é todos os dias que se chega àquela fase [da Taça]», confessa. Além disso, um duelo com um jogador que sempre admirou, João Alves. «Naquele jogo não fugiu à regra. Fiz uma entrada mais dura (risos), mas depois pedi desculpa», conta.

António Silva já não era presidente nesta altura. Voltaria mais tarde, como veremos à frente. Mas continuava ligado ao clube da sua terra. O jogo com o Vitória era mediático, mas defende que o clube nunca devia ter jogado no 1.º de Maio. «O presidente começou a falar em números, mas primeiro era preciso estratégia. Perceber como íamos ganhar ao Vitória. Tínhamos de jogar no nosso campo. O Manuel Machado [treinador do Vitória] disse que ia passar um mau bocado» se jogasse em Merelim. «O Merelinense não era favorito, mas tinha hipóteses. E depois podia dar lucro. Acabaram por ir para o 1.º de Maio e o resultado financeiro foi como o jogo: negativo», lembra o empresário de 53 anos.

VÍDEO: O jogo entre Merelinense e Vitória de Guimarães:

O sonho da Taça terminava com uma derrota por dois a zero. «Quem sabe se a gente não tinha feito a história de uma vida», insiste.

Daí a nova queda nos distritais da equipa sénior, dois anos bastaram. O mesmo número de descidas ditou regresso à AF Braga. O futsal acabou. Épocas de maior dificuldade à vista. Dentro e fora de campo. «Havia jogos que tínhamos cinco ou dez pessoas», garante o atual presidente.

«É um objetivo subir à II Liga»

Nos dias que correm no estádio João Soares Vieira, os números e a estrutura apontam ao topo. Acima de tudo, respira-se calma. Estabilidade. Tudo (re)começou na época passada. António Silva, antigo jogador, treinador das camadas jovens e presidente entre 2007 e 2010, regressou ao clube como tal em 2015. Consigo, levou o atual treinador, Micael Sequeira. E títulos quanto baste. O clube foi campeão distrital, venceu a Taça e a Supertaça da AF Braga, a Taça Fair-Play e a Taça do Minho – título disputado com o campeão da AF Viana do Castelo, o Ponte da Barca.

VÍDEO: Vitória na Taça AF Braga, no final da época 2015/2016:

O regresso aos nacionais não poderia, pois, estar mais perto da perfeição. Onze vitórias e três empates, liderança isolada, melhor ataque da Série A (33 golos) e o mesmo estatuto na defesa – apenas sete golos sofridos em 14 jogos. O clube não perde há 36 jogos oficiais. Está perto da fase de subida à II Liga. E, mesmo na Taça de Portugal, só caiu nas grandes penalidades, ante o Leixões, à terceira eliminatória. Pelo meio, o futebol de formação como base para futuro.

No meio dos registos, António Silva explica o que o fez voltar ao Merelinense e destaca trabalho e compromisso como estando na base dos números. «Voltei porque o clube estava mesmo em baixo. Começámos a ganhar, a motivação cresceu e podia-se fazer mais qualquer coisa. Preparámos uma estrutura forte. Subindo, fomos buscar meia dúzia de jogadores jovens e experientes. Existe carolice, amor à camisola, mas quando me meto no futebol não é para perder tempo. Passa a ser profissão e funciona com organização e mentalidade profissional».

A criação de uma SAD para a equipa sénior ilustra, por isso, os objetivos do presidente. O projeto, a concluir este mês, envolve clube e três empresários de Braga com ligações a Merelim. «Ter motivação em alta é fazer coisas importantes. Não vale a pena mentir. É um objetivo subir este ano à II Liga. Não sou de meias palavras», atira António Silva.

A ascensão fica mais evidente pelo número atual de sócios pagantes. Em pouco mais de um ano, subiu de 150 para cerca de 650. Há ânimo e mais adeptos, ainda que o treinador, Micael Sequeira, insista que «podiam ser mais». É o que espera para a fase decisiva da época.

Jovens adeptos do Merelinense na final da Taça AF Braga (foto: Joaquim Macedo) 

Do gene argentino ao aluno de Ferguson e Van Gaal

Num plantel de 24 jogadores amadores, há de tudo um pouco. De juventude a experiência, trabalhadores, estudantes universitários e também quem viva só do mundo da bola. Uma mescla que só permite treinar mesmo à noitinha: o último jogador sai tarde do trabalho e só chega às 19h30 ao João Soares Vieira.

Beck, médio e capitão, faz parte do leque de atletas que só joga. Cumpre a décima época no clube e tem sido peça intocável esta época. Com 37 anos, é o mais velho no balneário. Conhece os cantos à casa como poucos. É uma «referência», avalia Micael Sequeira. Filho de mãe portuguesa e de Edgar Beck, argentino que se destacou no Sp. Braga nos anos 80, Valter herdou posição e as ganas sul-americanas do pai. Mas há diferenças no estilo. «Não sou de berrar muito, mas sim, há aquela raça, o dar tudo. Dizem que há parecenças, mas o meu pai era mais durão. Muito duro (risos)», considera.

Onze titular na vitória da Taça AF Braga, na época 2015/16 (foto: Joaquim Macedo)

A idade não é problema para um jogador que nunca quis ser profissional. Vai jogar enquanto tiver motivação e fala na «legitimidade» do clube lutar pela subida à II Liga. Opinião partilhada por Micael Sequeira, treinador que, imagine-se, já trabalhou com Van Gaal no Barcelona, em 2002. E Alex Ferguson, no Manchester United, em 2008. Histórias curiosas partilhadas pelo próprio.

«Apresentei a minha tese e o juiz era o Nélson Puga, médico do FC Porto. Fiz um trabalho em termos fisiológicos. Tive 19 e fui convidado para o apresentar num congresso em Salamanca. Estava lá o preparador físico do Barcelona, Paco Seirulo, que me disse ser importante ver como o Van Gaal pensa. Quando cheguei lá [a Barcelona] os seguranças achavam impossível um português estar ali para estagiar com o Van Gaal (risos)». Mas aconteceu. Cerca de três semanas de aprendizagem a que se seguiram outras tantas em Manchester mais tarde, por intermédio de Carlos Queiroz. «O Ferguson não tinha uma participação ativa no treino, estava lá 20 ou 30 minutos», lembra. «Era um tipo de liderança diferente. O Van Gaal era mais participativo», compara.

De ambos, Micael Sequeira, professor no ensino secundário e universitário, herdou conhecimento que hoje põe em prática. Comandou o regresso do Merelinense aos Nacionais e procura dar continuidade ao feito. Sem obsessões. «É o desejo de toda a gente. Acredito no grupo e com a contribuição dos adeptos conseguiremos alcançar êxitos», vinca.

Em meia época, fase de subida iminente. Derrotas, nem vê-las. Vitórias em cima de vitórias.

Estará aí a «história de uma vida»? 

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