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Putin também mora em Setúbal

5 mai 2022, 15:23

“Mas eu sou obrigado a responder?” A pergunta, que, quando lida, não tem tão clara a arrogância como para quem a ouviu, foi feita pelo ainda presidente da Câmara Municipal de Setúbal. O local e os interlocutores, a quem fez, irritado, tal pergunta, também não são, de todo em todo, indiferentes. Questionado em plena reunião de Câmara pelos vereadores da oposição sobre o que estaria ou não a ser feito para apurar o que se passou no acolhimento de cidadãos ucranianos, o autarca não só se recusou, durante várias horas, a dar qualquer explicação, como quis, por várias vezes, dar o assunto por encerrado, sugerindo que o melhor, mesmo, era não se falar mais do assunto.

Qualquer comparação entre a conceção de democracia de André Martins — é esse o nome do presidente setubalense – e Vladimir Putin não pode ser mera coincidência. Descontando a distância a que se senta dos membros do seu executivo, só faltou ao autarca eleito pela CDU nas últimas autárquicas mandar calar cada um dos atrevidos vereadores que insistiam em procurar respostas – como é natural numa democracia – para aquilo que parece ser um caso extremamente grave.

Mas não é esse o entendimento de André Martins. O mais longe que consegue ir nas suas palavras é considerar que este caso “enlameou” a cidade que governa. Não porque, sob a sua égide, dois funcionários russos andaram a pedir informações aos ucranianos sobre o paradeiro dos seus familiares e a fotocopiar-lhes documentos de identificação, sabe Deus para quê e para que fins. Não. André Martins culpa a embaixadora da Ucrânia em Portugal e, claro, a comunicação social, essa chata, que anda por aí a escrutinar o poder público. Vladimir Putin também acha que não invadiu a Ucrânia, que o que está a acontecer não é uma guerra, mas uma operação militar especial e que a culpa é da desinformação a que é sujeita a opinião pública do Ocidente. Esses parolos que andam por aí a vontade, a ler, a informar-se e a pensar pela sua própria cabeça.

O que se passou e está a passar-se em Setúbal é demasiado grave para que o assunto caia no esquecimento ou seja engolido pela voragem das notícias. Portugal, que, do ponto de vista internacional, é um anão diplomático e militar, nunca deixou de ser um gigante na forma como acolhe quem foge da guerra, da miséria e da pobreza. Porque os portugueses também já o fizeram no passado, porque sempre fomos um povo solidário e porque a humanidade com que tratamos os outros também nos define enquanto pátria.

Ao presidente da Câmara Municipal de Setúbal não faltaram oportunidades para esclarecer as suspeitas que começaram por ser levantadas pela embaixadora da Ucrânia numa entrevista à CNN Portugal e, mais tarde, pelo jornal Expresso. Podia ter aberto uma sindicância interna, dando assim o primeiro passo para o apuramento dos factos. Podia ter-se dirigido às autoridades competentes e pedir ajuda nessa tarefa. Podia, até, ter suspendido, de imediato, os dois funcionários russos, até que tudo estivesse esclarecido. Mas não.

O autarca de Setúbal só suspendeu os funcionários depois da notícia que colocava em causa os procedimentos da autarquia no acolhimento dos refugiados ucranianos. Pior, decidiu fazer política com este caso e, quando foi apanhado na curva, mentiu.

A carta que André Martins escreveu ao primeiro-ministro – e que ele não imaginou que se tornasse pública – é uma espécie de statement político, onde as perguntas, retóricas todas elas, revelam nas entrelinhas de que lado se coloca o presidente da Câmara de Setúbal nesta guerra.

Que o autarca do PEV pense como o PCP — o partido com quem, na CDU, foi eleito — e tenha uma opinião muito própria sobre esta guerra na Ucrânia, não vem daí mal nenhum ao mundo. Sorte a dele viver em Portugal, porque, se vivesse na Rússia, não o poderia fazer. Mas que se considere numa posição em que não tem de prestar contas a ninguém, que insista numa mentira sobre perguntas que nunca fez e, sobretudo, que ande permanentemente a sacudir responsabilidades que são exclusivamente suas para cima de outras entidades, isso não é aceitável.

Porque nem os setubalenses merecem ver o nome da sua cidade enlameado, como o próprio autarca descreveu, nem a democracia portuguesa precisa de pequenos Putins, que confundem poder com autoritarismo.

Aguardemos pelas conclusões das autoridades competentes que vão agora entrar na Câmara de Setúbal para apurar a dimensão do problema — e, em Portugal, já se sabe, os inquéritos e as investigações raramente são céleres. Por isso, não nos esqueçamos deste assunto, porque em causa pode estar a segurança de muitos ucranianos que ficaram no país a lutar pela sobrevivência da sua democracia.

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