Plano de contingência para o calor? “Que não falhem os portugueses num país em que falha o Estado”: uma lição sobre como é tudo "muito bonito no papel"

12 jul 2022, 07:00
onda de calor, temperaturas altas, praia, verão. 8 julho 2022. Foto: Armando França/AP

Portugal não tem apenas um plano de contingência para combater o calor - tem vários. Problema: não são testados. "Podíamos ter simulado esses planos em período de acalmia para verificar se estão alinhados." Não o fizemos. E agora, como vai ser?

Plano de Contingência Saúde Sazonal – Módulo Verão 2022”: assim se chama o documento da Direção-Geral da Saúde (DGS) com indicações de como lidar com os fenómenos característicos da estação quente, incluindo com os dias de temperaturas extremas. Mas será este um plano nacional que define normas e regras de atuação, por exemplo, sobre como devem os hospitais e centros de saúde lidar com a maior procura causada pelo calor? A resposta é não. Este ficheiro é antes uma referência para que os planos de contingência sejam depois definidos a nível local.

“Com base na informação disponível a nível nacional, regional e local, as ARS [Autoridades Regionais de Saúde] e as instituições do SNS sob a sua jurisdição devem organizar-se, em cada momento, antecipando as necessidades de resposta face à procura (aumento da procura ou procura diferente da esperada) com o objetivo de minimizar os efeitos do calor intenso na saúde e nos serviços”, pode ler-se. No documento, que produz efeitos de maio a setembro, não faltam, contudo, os conselhos que os portugueses se habituaram a ouvir nas televisões: beber muita água, evitar a rua nas horas de maior exposição solar, usar roupa fresca, chapéu e óculos de sol.

“São os referenciais que servem de guia para serem utilizados por regiões, agrupamentos e hospitais nos seus planos internos”, explica à CNN Portugal Elisabete Serrada, uma das relatoras do documento da DGS e dirigente do Sindicato Independente dos Médicos, concretizando que este ficheiro orientador existe desde 2003. É depois nesses documentos locais que cabe definir qual a resposta concreta a picos de procura causados por desidratação, dificuldades de respiração (o ar quente torna a respiração mais pesada) ou queimaduras causadas por uma insolação ou incêndio – seja ao nível de pessoal ou de instalações.

Mas, da teoria à prática, a diferença pode ser grande. “O defeito que eu apontaria é o facto de que estes planos poderiam ser testados, simulados. Poderíamos ter simulado em período de acalmia para verificar que pontos estão alinhados. A rede está montada. Falta é ser treinada”, admite a especialista em Saúde Pública.

Nos planos de contingência, além da articulação com outras entidades como a Proteção Civil (na definição de abrigos em igrejas, que são mais frescas, por exemplo), estão definidos elementos que, a serem aplicados, tornam a resposta mais eficaz. Há diferentes níveis a ter em conta, que vão desde a disponibilização de depósitos de água para que os doentes à espera possam beber nos hospitais e centros de saúde, passando pela definição de locais mais frescos que funcionem temporariamente como enfermarias caso a habitual não tenha ar condicionado, até ao número de camas a disponibilizar.

“Mediante a avaliação de risco, o nível de ativação não é o mesmo. A resposta será diferente. Imagine uma situação extrema, de incêndio, com a eventualidade de haver queimados ou feridos, fará com que seja ativado, por exemplo, uma resposta no centro de saúde durante a noite”, concretiza Elisabete Serrada. No plano, diz, estará o nome e o contacto da pessoa que guarda a chave da unidade.

"Já estamos em contingência todos os dias"

Os profissionais de saúde ouvidos pela CNN Portugal reconhecem que existem estes planos de contingência motivados pelo calor nos seus locais de trabalho. Contudo, contam que não existe um momento em que recebem indicações claras por parte das instituições de que existirá uma reorganização dos serviços para fazer face à nova realidade. O que vai acontecendo, dizem, é fruto da sua sensibilidade e do conhecimento acumulado ao longo dos anos de serviço. Ainda assim, o guia da DGS aponta o ato de “comunicar aos profissionais de saúde, aos cidadãos e à comunicação social o início do Módulo Verão do Plano de Contingência Saúde Sazonal” como uma medida de saúde pública.

Os médicos e enfermeiros consultados destacam ainda que nem sempre é possível o reforço de meios perante a estrutural falta de pessoal. “O plano de contingência é, basicamente, fazer o mesmo que no ano todo. Supostamente deveria haver reforço. É tudo muito bonito no papel. A realidade é outra”, desabafa um enfermeiro, a trabalhar em Bragança.

“Já estamos em contingência todos os dias. Se houver um problema destas terá de se limitar outras atividades. E estamos numa altura de férias, que limita ainda mais a capacidade de resposta. A margem é deixar outras coisas para trás, desconvocar doentes e consultas. E mobilizar profissionais. Porque as urgências e hospitais não estão nem podem estar preparados para acolher pessoas às dezenas, já estão a trabalhar para lá dos limites”, considera Rui Nogueira, ex-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.

Mesmo com a existência destes documentos, o bastonário da Ordem dos Médicos veio defender publicamente um plano de contingência na saúde para fazer face às temperaturas extremas que estão previstas. Miguel Guimarães insistiu no reforço das urgências, considerando que vai haver uma maior afluência de doentes e lamentando que não sejam tomadas mais medidas por antecipação.

A CNN Portugal contactou o Ministério da Saúde para perceber que reforço está em curso nas unidades de saúde para esta semana, sendo reencaminhada para as declarações desta segunda-feira de Marta Temido: a ministra prometeu estar a trabalhar na “prontidão da parte dos serviços de saúde” e destacou o esforço do INEM “no apoio aos efetivos que estão a responder aos incêndios mas também a apoiar aquilo que possam ser as necessidades de saúde na retaguarda”. “Estamos a postos”, resumiu.

"Num país em que falha o Estado que não falhem os portugueses"

Uma das preocupações por estes dias está precisamente nos idosos. As organizações a trabalhar junto desta faixa da população lamentam que o Governo não tenha em marcha um dispositivo de proteção perante o calor extremo – deixando essa responsabilidade nas mãos de vizinhos ou de quem presta apoio domiciliário.

“Vai-se fazendo, com a boa vontade, o que sempre têm feito e que não responde as estas situações de exceção. O país peca por sempre responder por atuação, não por prevenção. Diria que a maioria dos municípios não terá um sistema de vigilância destes idosos”, lamenta Ricardo Pocinho, presidente da ANGES - Associação Nacional de Gerontologia Social.

Casimiro Menezes, presidente da Confederação Nacional de Reformados, Pensionistas e Idosos e antigo médico, lembra que os idosos tendem a perder a perceção da sede devido à medicação que tomam – o que, em dias como estes, pode fazer toda a diferença. “Há poucas redes de apoio. Se não for familiar, essa rede não existe. Não basta dizer que é preciso hidratar. É preciso garantir que isso se faz”, insiste.

Em jeito de conclusão, fica o pedido de Ricardo Pocinho a todos os que tenham nas redondezas idosos a viver sozinho: “Num país em que falha o Estado que não falhem os portugueses”.

Nisso mesmo insiste o médico Rui Nogueira, lembrando que as autarquias têm um papel fundamental na identificação destes idosos e na definição de espaços de acolhimento que, permitindo atuar de forma preventiva, evitariam que as unidades de saúde ficassem ainda mais entupidas: “É necessária uma atenção muito especial em relação à pessoas idosas, que precisam de alguém que lhes oriente e tome conta. Nos hospitais, seria muito difícil que existissem condições para acolher idosos que não se podem manter em suas casas”.

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