Ainda falta a aprovação da lei na especialidade, mas os especialistas ouvidos pela CNN Portugal admitem que há coisas mal feitas no projeto do Chega que a direita aprovou
Em 2011, França foi o primeiro país a proibir o uso em público de véus que cubram o rosto. Agora foi Portugal a aprovar o projeto de lei do Chega que proíbe "a utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto" e a entrar para este grupo que já conta com mais de 20 Estados.
O Parlamento aprovou, na generalidade, aquela que promete ficar para a história como a lei da burca, mas há dúvidas legais. Por exemplo, pode usar-se um capacete em espaços públicos, tendo em conta a formulação do projeto aprovado?
O advogado Manuel Magalhães e Silva começa por esclarecer que "tem certas dúvidas" que um capacete possa abrangido por esta proibição, porque o projeto de lei do Chega define especificamente "roupas" e os capacetes não são vistos como uma peça de vestuário, mas sim como um elemento protetor de um condutor que se desloca num veículo sem grande proteção frontal.
Toda a lei tem exceções e o projeto de lei do Chega não é diferente. O documento admite que "razões de saúde ou motivos profissionais, artísticos e de entretenimento ou publicidade" são motivos plausíveis para o incumprimento desta proibição. Aviões ou instalações diplomáticas e consulares também são espaços em que a obrigação não se aplica. Tal lei "é ainda excluída por motivos relacionados com a segurança ou devido às condições climáticas".
As exceções complicam ainda mais esta perceção do que é e não permitido. Por exemplo, pode-se cobrir o rosto num espaço público com um passa-montanhas se estiver frio? E um cachecol a cobrir o rosto? Já agora, qual é a temperatura a partir da qual se pode dizer que está frio?
Magalhães e Silva acredita que neste ponto vão acabar por imperar "os hábitos de determinado local", ou seja, "se é comum num determinado local em função do frio existente usarem-se aqueles passa-montanhas em que só se veem os olhos, é evidente que isso cabe perfeitamente dentro da razão climatérica".
Numa análise mais ampla ao projeto-lei, o experiente advogado confidencia que partilha do entendimento do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem vindo a considerar que este tipo de proibições não é uma violação da Convenção dos Direitos do Homem, sempre que os casos assentem numa questão de "identidade pessoal e segurança" e não cultural, porque "temos a obrigação estrita de respeitar outras culturas". Contudo, como alerta Magalhães e Silva, a questão da proibição da burca "não é um confronto com a realidade cultural de um grupo de pessoas, mas sim uma razão de segurança".
"Mesmo no islamismo este é um tema que gera discórdia", explica Magalhães e Silva, que dá como exemplo Emine Erdoğan, mulher do presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, que "cobre a cabeça, mas não cobre o rosto".
Um projeto de lei que "é triste, está muito mal feito e é só para fazer chicana política"
O constitucionalista Jorge Pereira da Silva considera que este projeto de lei "é triste, está muito mal feito e os pareceres enviados são muito fracos", resumindo o que aconteceu esta sexta-feira no Parlamento: "Por defeito, quando o Chega apresenta, todos rejeitam, mas desta vez o Chega tem outro peso e foi aprovado". "Ninguém esperava que fosse aprovado e agora temos uma questão séria, mas que começou muito mal, pura chicana política", acrescenta.
Pereira da Silva diz que agora é preciso que este projeto de lei "seja corrigido na Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias e que lhe seja dada uma redação minimamente aceitável", antecipando que o que o Tribunal Constitucional vai decidir sobre este diploma é o mesmo que já decidiu o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, sendo que "a Constituição Portuguesa tem de ser interpretada também à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos".
Para o constitucionalista, neste tipo de proibições tem de ser feita "uma análise fria e separar a discussão política da questão constitucional propriamente dita". Pereira da Silva lembra que, resumidamente, estamos perante "uma restrição indireta à liberdade religiosa, porque as visadas são, essencialmente, mulheres muçulmanas", mas alerta que "o facto de se invocar a liberdade religiosa é só o princípio do debate".
"Invocar a liberdade religiosa não é um direito absoluto. A ordem jurídica portuguesa e várias ordens jurídicas europeias têm proibições de condutas que são fundadas em preceitos religiosos. Eis alguns exemplos: o casamento poligâmico, que não só não é reconhecido em Portugal como a poligamia é qualificada como crime pelo Código Penal; mutilação genital feminina e os sacrifícios rituais de animais, uma prática que chocaria as pessoas do PAN", explica o constitucionalista, lembrando que "os fundamentos do projeto do Chega e em vários outros países por essa Europa - a liberdade e a autodeterminação da mulher e razões de segurança - justificam a restrição".
Jorge Pereira da Silva confessa que, no seu entendimento, "não é crível que as mulheres que andem de burca o façam sem qualquer forma de constrangimento", sendo que isso coloca em causa a liberdade e a autodeterminação da mulher "da mesma forma que acho que o casamento poligâmico é incompatível com o princípio da igualdade entre os cônjuges". "Tenho dificuldade em aceitar que o uso da burca não resulte de um constrangimento familiar e social e que resulte de uma vontade livre e esclarecida da mulher", resume, questionando: "Andamos aos anos a tentar implementar o princípio da igualdade e depois aceitamos a burca? O rosto tapado é um símbolo de uma condição que não é uma condição igual à do homem".
Do ponto de vista da segurança, Pereira da Silva lembra que "não é por acaso que quando se tira o cartão de cidadão tem de se tirar uma fotografia com a cara descoberta para facilitar a identificação".
Manuel Magalhães e Silva concorda, lembrando que em casos em que "a segurança conflitua com a proteção da identidade, deixa-se cair a proteção da identidade por razões de segurança". O experiente especialista em Direito considera que, caso se prove "que a utilização de burca ou niqab fora do espaço doméstico era uma imposição marital, então deveria ser considerado um crime de violência doméstica e crime público, ou seja, não estava dependente da queixa de quem quer que fosse".
Para o especialista, esta criminalização sim serviria "para proteger a mulher, a sua dignidade e a sua identidade, porque uma coisa é cobrir a cabeça, outra coisa é ser obrigada pelo marido a andar com o rosto completamente coberto", explica Magalhães e Silva.
Em sentido contrastante, José Godinho Rocha defende que, ao apreciar-se o projeto de lei do Chega, "identifica-se in casu uma errada interpretação à Constituição da República Portuguesa", que não prevê que possa existir "qualquer tipo de proibição de existência em razão de religião, convicções políticas ou ideológicas".
"Qualquer tipo de proibição nesse sentido coloca em causa o Estado de Direito, a própria Constituição e o respeito pelos direitos, liberdades e garantias", explica Godinho Rocha, que considera que a proposta do Chega se "assemelha a algo desviante e de pluralidades de direito inerentes ao ser humano num Estado democrático, livre e pleno".
Posta a explanação, o advogado entende que "é líquido afirmar que é possível circular livremente, por exemplo, de capacete em espaços públicos ou com um cachecol a tapar a cara" quer esteja ou não frio.
José Godinho Rocha acrescenta ainda que mesmo numa questão de segurança - como argumenta o projeto de lei apresentado pelo Chega - devem ser "apreciados os prós e os contras de tal ação", sendo que "nunca se poderá ultrapassar o espírito da lei fundamental, a Constituição da República Portuguesa, assim como os direitos fundamentais nela consagrados".