Proibição da burca "reduz o risco de atentado" mas medida "pode ser desajustada ao risco da realidade portuguesa"

30 out, 16:48
Burca (Fonte: Getty)

Especialistas alertam para a falta de dados objetivos em Portugal e questionam se a proibição total do uso de burca é proporcional a um risco que consideram quase insignificante

A proibição do uso da burca em espaços públicos continua a dar que falar, com o Presidente da República a preferir aguardar pela versão final do documento para se pronunciar e com o primeiro-ministro a defender a medida, argumentando que está em causa "o direito à segurança e à perceção de segurança". Para os especialistas nessa mesma área, a medida pode "ser desajustada" face ao risco real que existe na realidade portuguesa e alertam que quando as medidas são tomadas por base em generalizações "podemos cometer erros". 

"Na realidade, ainda não há razões objetivas que justifiquem esta medida. Sinceramente, acho que pode ser desajustada ao risco da realidade portuguesa. Não faço ideia quantos os crimes que tenham envolvido a utilização da burca em Portugal, mas não acredito que tenham tido alguma expressão", defende o coronel Francisco Rodrigues, presidente o Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT).

A medida, aprovada na passada sexta-feira com os votos a favor do Chega, PSD, CDS-PP e IL, prevê a proibição da "utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto", como é o caso da burca ou do nicab. O objetivo é o impedimento de "forçar alguém a ocultar o rosto por motivos de género ou religião", mas grande parte dos argumentos utilizados pelos deputados visam questões de segurança. 

O primeiro-ministro, Luís Montenegro, defendeu a medida, referindo que votaria pela sua aprovação devido "à perceção de segurança" e ao "direito à segurança". O líder do Governo acrescentou ainda que não vale a pena ter "grandes discussões filosóficas" sobre o tema, uma vez que "o direito da liberdade de uma pessoa acaba quando esse direito coloca em causa os direitos de outras pessoas".

E não está sozinho. Para o tenente-coronel João Alvéolos, especialista em segurança, esta proibição pode ser fundamental para o trabalho das autoridades na identificação de indivíduos que cometam crimes, particularmente à medida que a videovigilância inteligente vai sendo aplicada em Portugal. 

"Esta medida pode ser um ato de bom senso, não podemos deixar que isto se torne numa perseguição. Mas esta medida reduz o risco de atentado ou de ocultação por parte de criminosos. As burcas podem ser utilizadas por criminosos para limitar a identificação de elementos biométricos", afirma João Alvéolos.

O argumento do especialista foca-se na prevenção e na inevitabilidade tecnológica. Ao dificultar a identificação, o véu facial coloca em causa a "paz social" e o "bem-estar" da comunidade. “Não anda 100 metros em Londres sem estar a ser retratado por 100 câmaras ligadas entre si, que fazem o seu percurso todo. Este fator traz muitas vantagens", defende, sugerindo que o interesse da segurança coletiva deve prevalecer.

João Alvéolos recorda ainda a existência de precedentes históricos, mencionando que "já houve casos no passado em que criminosos utilizaram este vestuário para escapar de locais de crime" e que há "muitos registos de atentados da Al-Qaeda a utilizar como cobertura a burca". Para o tenente-coronel, a proibição "torna o trabalho [das autoridades] muito mais fácil". 

No passado, o próprio Estado Islâmico chegou a proibir o uso de burca de forma a prevenir ataques de um grupo de assassinos rivais, que utilizavam o véu para esconder a identidade e atacar os comandantes do grupo terrorista. 

Mas nem todos estão de acordo com a lógica preventiva. O coronel Francisco Rodrigues defende que se deve evitar a generalização e o alarmismo. O presidente do OSCOT admite a validade do argumento securitário, com a burca a poder ser usada para ocultar a identidade, mas questiona a sua aplicação prática em Portugal.

"Sinceramente, acho que pode ser desajustada ao risco da realidade portuguesa", insiste Rodrigues, salientando que a proibição total pode violar o princípio da proporcionalidade jurídica. "Devíamos deixar na lei a possibilidade de proibição em determinadas situações. Não sei se concordo com a proibição total", admite.

Rodrigues refere ainda que, na prática, a utilização da burca em Portugal é "muito reduzida", não representando uma ameaça real para a segurança quotidiana, e levanta a preocupação de que a medida possa refletir um "preconceito" em relação a trajes culturais, em vez de uma resposta a uma ameaça factual. Para o coronel, o problema reside em tomar decisões políticas com base em "sensações" em vez de dados objetivos. "Quando tomamos decisões com base em sensações, podemos cometer erros", alerta.

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