"Fui bully. Achava que devia gozar com ele, para ele mudar"

20 out 2022, 08:00
Bullying/Escolas (Getty Images)

Passaram-se 20 anos e Inês Andrade continua a recriminar-se por ter agredido psicologicamente um colega na primária. Ela foi bully mas só tomou consciência disso quando passou a vítima. Psicólogos especialistas no assunto explicam, nesta quinta-feira, Dia Mundial de Combate ao Bullying, como é que os pais podem perceber se o filho é um agressor e dá sugestões de como lidar com a situação

Inês Andrade não esquece. Os detalhes continuam bem claros, mesmo tendo passado cerca de 20 anos. “Há uma grande demonização dos bullies. E é por isso que eu afirmo que fui bully, para desmistificar que os bullies são monstros”.

É uma das poucas agressoras que cede ao pedido para falar da sua história. Fá-lo porque hoje está do outro lado do problema, enquanto apoiante da causa anti-bullying, tendo criado a sua própria associação, a No Bullying.

Para perceber como Inês se tornou bully, é preciso regressar até à escola primária, que frequentou em Lisboa. “Dava-me bem com os meus colegas e tinha algum poder entre eles. Mas não utilizei esse poder para o bem, mas antes para tratar mal um colega meu”.

Um rapaz mais “frágil” e “socialmente fora de contexto” tornou-se o seu alvo. “Um dos pais dele era estrangeiro. Achávamos que era um contexto diferente do nosso. Os miúdos embirram com coisas pequeninas”.

Os ataques nunca foram físicos. Antes gozo, piadas e provocações contínuas, mesmo sabendo que essas palavras feriam o outro lado. “Era o meu registo natural. Lembro-me até de a mãe dele vir falar comigo. Mas eu achava que era normal. Achava que devia gozar com ele, para ele mudar”.

Inês Andrade, agora com 28 anos, lembra que a situação, sendo do conhecimento de todos, sempre foi desvalorizada na escola, encarada como parte do crescimento, das brincadeiras entre miúdos. Sobretudo por não haver agressões físicas. E, mesmo com o colega em lágrimas, ela foi arrastando a situação, por um único motivo: “queria sentir a validação dos meus colegas”.

O ponto final só chegou quando ela mudou de escola, passando para o quinto ano. Uma escola nova onde era ela, agora, quem estava fora de contexto, passando de agressora a vítima. “Estamos sempre a trocar de papéis. E depois aí é que percebemos o que fizemos. Percebi o que ele sentiu, o que é estar do outro lado, ser-se o excluído. Qualquer pessoa pode ficar nessa situação”.

Vinte anos depois, Inês argumenta que a crítica é a atitude mais recorrente da sociedade perante os bullies – o que impede que muitos se afirmem como tal e procurem ajuda para superarem essa situação. Mas, por detrás de cada agressão, haverá um motivo. Ela ainda hoje se arrepende, mesmo trabalhando todos os dias na luta anti-bullying.  “Não tenho noção do impacto que terei tido na vida dele. Espero que não tenha sido muito”.

Há uns anos, numa reunião de antigos alunos, Inês e o colega estiveram no mesmo espaço. Não falaram sobre o assunto.

Cada vez mais campanhas procuram pôr um ponto final no bullying, em todo o mundo (Getty Images)

Retrato incompleto - e a mudança de escola como derradeira solução

Para Inês, mudar de escola foi, de forma natural, o caminho para terminar o bullying. Mas a mudança de escola pode funcionar como uma medida para cortar o ciclo de violência – tanto para o agressor como para a vítima.

No último ano letivo, segundo dados do Ministério da Educação cedidos à CNN Portugal, foram registadas 698 ocorrências na plataforma do Sistema de Informação de Segurança Escolar, “incluindo casos específicos de bullying (73 ocorrências)”. No ano letivo 2020/2021 foram registadas 437 ocorrências. No anterior, 1263.

Esta é uma plataforma utilizada pelas direções das escolas para assinalar situações de violência e insegurança no seio escolar. Contudo, os porta-vozes da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas explicaram à CNN Portugal que apenas “as situações mais graves” chegam a este sistema. A maioria dos casos não entra, por isso, neste balanço.

Quanto à medida de transferência de escola, “a medida mais gravosa” no âmbito do Estatuto do Aluno, “foram aplicadas 18 transferências” durante o ano letivo passado, “sendo várias as razões que levaram a este tipo de decisão”, incluindo o bullying exercido sobre outros alunos.

Dados nunca refletem a realidade completa do fenómeno (Getty Images)

“Os agressores são todos órfãos de pais vivos”: como identificar se o seu filho é bully

Antes de mais, fixe isto: não há um perfil para as crianças e jovens que se tornam agressores. O seu filho pode ser um bully, contrariando todas as suas expectativas sobre ele. Então, como podem os pais identificar esta situação? Luís Fernandes, psicólogo que trabalha nesta área há 20 anos, explica os sinais a que pode estar atento.

Oscilações de humor, desinteresse pela escola, descida repentina das notas, pouca tolerância à frustração, recurso à força física ou psicológica para resolver problemas, a que se junta depois a exposição a algum tipo de violência em casa.

“Os pais, se desconfiam que o filho possa estar a exercer algum tipo de agressão, aconselho a contactarem com a escola ou com outras atividades que ele frequente, para confirmar se isso está a acontecer”, aponta o especialista. Os agressores, garante, vão sempre dando sinais. É só preciso estar atento a eles.

Segundo Luís Fernandes, há “cada vez mais pais que são chamados à escola devido a situações desse género e que ficam espantados” com o facto de o filho ser um agressor.

Há muitos motivos que podem ajudar a explicar essa condição. A começar pela pressão dos pares, que é “tremenda” no início do terceiro ciclo, a fase em que as situações de bullying são mais recorrentes, porque correspondem a uma “fase em que querem muitos estar inseridos”. Mostrar força perante outros pode ser um caminho para lá chegar.

“Depois há o facto de passarem muito tempo sozinhos”, com acesso a tecnologias e conteúdos que normalizam a violência e a amplificam. “Facilmente querem replicar esses comportamentos. Há uma série de desafios [nas redes sociais] que fazem com que seja mais fácil e direto agredir”, aponta o especialista.

E como devem, então, agir os pais quando confirmam as suspeitas? “Tentar não criticá-los, no sentido de puni-los logo sem os ouvir, mas tentar antes perceber as causas” - sem, obviamente, acreditar plenamente em tudo o que a criança diz, porque parte da narrativa pode ser manipulada a seu favor. Muitas vezes, os pais têm, eles próprios de dar o exemplo e adaptar o seu discurso ou ações. Por exemplo, não encarando a violência como um traço que constrói a masculinidade dos filhos rapazes. E não aplicando, eles próprios, um castigo físico ao filho.

O reconhecimento familiar do problema, assumindo-se como pai ou mãe de um agressor pode ser difícil. “Os agressores são todos órfãos de pais vivos”, costuma dizer Luís Fernandes. Mas há cada vez mais famílias a fazer esse “mea culpa” e a querer parar de imediato a situação.

Em 2021, o Observatório Nacional do Bullying da Associação Plano i registou 82 denúncias de bullying. Uma em cada três pessoas que fazem as denúncias são encarregadas de educação das vítimas ou ex-vítimas. Na quase totalidade das situações, vítimas e agressores frequentavam a mesma escola, sendo a violência psicológica a mais comum. O aspeto físico e os resultados académicos são os motivos mais comuns na escolha da vítima.

Mas, para eliminar de todo esta realidade, não basta olhar apenas para o lado das vítimas, diz Luís Fernandes: “Devemos olhar para o fenómeno na sua perspetiva total, não esquecendo de envolver os agressores. Estes miúdos têm de ser trabalhados”.

Pais devem procurar entender os motivos do filho e não apontar o dedo (Getty Images)

A importância do apoio psicológico (e da conversa em casa)

Há cada vez mais famílias a tomar consciência de que os seus filhos são agressores e a pedir apoio especializado. Aos consultórios dos psicólogos chegam muitos desses casos. “Os pais já têm outra postura, em que procuram resolver o problema. Porque o bully, tal como a vítima, está a reagir emocionalmente a qualquer coisa”, explica Nathalie Marques, psicóloga infanto-juvenil na Academia Transformar.

Segundo a especialista, os comportamentos agressivos nascem sobretudo como uma reação ao ambiente familiar. “São formas de exteriorizar as emoções menos positivas, até porque não lhes foi ensinado a fazer essa gestão emocional”, acrescenta. Por isso, desvalorizar essas situações é também desvalorizar problemas mais profundos em casa.

Normalmente, os pais dão conta de que o filho é bully porque lhes chega uma queixa da escola. Uma prova de que a comunicação, no seio da família, poderá não ser a melhor – e algo que poderá estar na origem do próprio comportamento.

O acompanhamento psicológico, garante, permite inverter a situação. “Por norma, o que um bully quer é uma atenção sobre as necessidades dele. O processo terapêutico passa por tentar perceber o que leva ao comportamento. O tom nunca pode ser de julgamento. É de entendimento, de compreensão”, descreve.

Para as famílias com baixos recursos, para quem o apoio profissional poderá estar vedado, deixa estratégias simples que podem ser adotadas: promover uma postura de conversa aberta entre todos os membros da família, refletir sobre os valores que querem transmitir e a forma como o discurso parental está alinhado com essa vontade e, por fim, recorrer ao aconselhamento parental junto de associações e organizações que trabalham nesta área de combate ao bullying.

Isolamento é uma das condições que favorece as situações de agressão (Getty Images)

 

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