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Comissário da PSP

O jogo do passa culpas

29 jul 2024, 12:49

O tema da insegurança é demasiado importante para que se exorbitem emoções ou se espetacularizem sensações pois ele carrega, como sabemos, uma carga tóxica e profundamente nociva para o tecido social. Deve, por isso, merecer a nossa mais dedicada atenção, mas fazendo-o com um fito pedagógico, positivamente consequente e sempre num quadro de intervenção multidisciplinar. Querer pessoalizar responsabilidades é, a este nível, para além de simplista e minimalista, muito pouco utilitário. 

Se é indiscutível que o crime anda de mãos dadas com o sentimento de insegurança, também não deixa de ser verdade que ele não é o único fator que contribui para esse sentimento e, como temos vindo a perceber, para a sua agudização. Nas ciências da criminologia diz-se que o medo do crime ultrapassa em muito a gravidade do próprio crime, tendo a capacidade de se alastrar de forma epidémica e endémica pela malha social, indo para lá das vítimas que objetivamente foram alvo dele. E ele cresce perante a erosão social de uma comunidade que tem a capacidade de se autodefender, de exercer o chamado controlo social informal que dá força e robustez à coesão das comunidades. E não se pense que as forças da autoridade, com a tão almejada omnipresença, conseguem substituir-se ao dever que em primeira linha recai sobre todos nós enquanto cidadãos, mas também às demais entidades públicas e privadas que têm o dever de contribuir, alinhada e responsavelmente, para a promoção de um sentimento de segurança forte e vital. E foi aqui que chegámos, a um Estado Providência onde o foral da segurança é como que atribuído em exclusivo às Forças de Segurança, sendo estas as primeiras visadas pela sedimentação de um clima próprio da chamada sociedade de risco de Maurice Cusson. 

As Polícias terão sempre o seu papel de primazia neste domínio, isso é inegável, todavia concorrem várias outras variáveis que podem condicionar, afetar ou dificultar o seu desempenho, não só razões de ordem interna como por exemplo a escassez de recursos, mas também a degradação do Estado Social, que, demitindo-se de exercer o seu papel homeostático e regulador, cria condições ótimas para a guetização ou nidificação de colónias ou espaços catalogados como perigosos, mesmo que muitas vezes não exista uma direta correspondência [conhecida pelo menos] com o número de crimes, sendo um resultado da vocalidade exacerbada que dá um recorte bem diferente à realidade instalada. 

É por isso que no campo das ciências se apontam razões múltiplas para o crescimento do sentimento de insegurança, com o crime e as incivilidades a assumirem a dianteira como catalisadores de primeira linha, mas não os únicos. É neste domínio que são introduzidos conceitos de prevenção situacional e criminologia ambiental, que grosso modo alertam para a degradação do espaço como sendo ele o motor propiciador de um clima de insegurança que favorece ou potencia a prática delinquente, e aqui entram coisas tão primárias como a organização e iluminação das vias, a existência ou não de edificados e parques degradados, da existência avolumada de pessoas sem abrigo, de lixo acumulado, de animais abandonados, da própria arquitetura urbanística, entre muitos outros. É neste caldo que surge o constructo teórico conhecido como defensible space, um espaço que é criado e mantido em condições favoráveis à manutenção de indicadores securitários estáveis e equilibrados, onde o controlo social é efetivo, funcionando numa rede alargada de controlo encabeçada naturalmente pelas forças de segurança e da ordem, mas sustentada por fortes relações simbióticas com as autarquias, com a segurança social, com as unidades hoteleiras, com a rede de transportes públicos, como as associações e entidades de apoio social, enfim, com todos aqueles que direta e indiretamente têm o dever de promover o bem estar das comunidades, e aqui entram também as pessoas. 

Todos os olhos atentos são importantes para que a resposta seja mais efetiva, e por isso é que a responsabilidade, não sendo de ninguém em exclusivo, pertence a todos nós. Começa obviamente na capacidade da Polícia em assegurar um forte dispositivo de visibilidade, fortemente alicerçado em vetores de prevenção criminal, co-operante com uma resposta investigatória eficaz, quer no plano imediato quer no plano mediato, mas também pelo envolvimento e sinalização de tudo o que possam ser indicadores ou comportamentos de risco junto das autoridades, ou intervenções junto dos espaços ou pessoas que façam a diferença na consolidação de uma perceção real de segurança. Para isto também concorre a implementação de medidas securitárias complementares que podem fazer ainda mais diferença, como introdução de sistemas CCTV em locais públicos, implementação de sistemas de alarmística mais evoluídos, mas também de medidas administrativas que reduzam cirurgicamente a escala de risco e, com isso, a catalogação de determinadas zonas como perigosas. 

Veja-se por exemplos estes dois exemplos:

1.    A venda de drogas falsas na zona central de lisboa é conhecida há anos como sendo um problema que corrói profundamente o sentimento de segurança das populações, residente e flutuante. Qual o resultado de milhares de apreensões feitas no quadro da venda ambulante ilegal? Que propostas de alteração legislativa já foram feitas? E pensar-se na criação de bolsas de interdição para esta mesma venda ambulante de forma a esvaziar a sua componente lucrativa?

2.    A existência de espaços residenciais sobrelotados é uma evidência no coração de Lisboa. E se até podemos acompanhar o parecer da ANAFRE quando à inexistência de obrigação por parte das autarquias em fiscalizar se determinado requerente mora ou não numa determinada habitação quando solicita um comprovativo de residência, também não deixa de ser verdade que a emissão de múltiplos comprovativos para um determinado local, em flagrante incompatibilidade com a tipologia do edifício, deverão constituir-se como alerta de uma situação que deverá ser reportada às autoridades competentes para averiguação da sua legalidade.

Em conclusão, espera-se que a Polícia continue a conseguir manter os seus mais elevados padrões de resposta, orientando e priorizando os seus esforços, os seus ativos, bem como as suas estratégicas, fazendo-o de forma dinâmica e orientada, para os locais mais críticos e urbanamente afetados pela delinquência e tudo o que possa corroer o sentimento de segurança das populações. Com mais dificuldades, é inegável o esforço de todos os seus profissionais que, dia após dia, têm procurado estar à altura das necessidades securitárias, mas também de liberdade, das pessoas que servem. Mas não se pense que a Polícia será algum dia omnipresente, e que bastará o mero reforço de polícias para que se assegure, a todo o tempo, o clima de segurança que todos exigimos. Para isso é necessário, como vimos, que a vinculação seja feita em toda a linha por parte de todas as entidades que têm especiais deveres neste domínio, promovendo uma forte componente de cooperação e interligação, entre o securitário e o social, entre o público e o privado, entre o administrativo e o criminal, entre o direito e a tecnologia, tudo em prole de um quadro que garante estabilidade, assegure segurança, e promova liberdade, mas sem esquecer, pois é essencial, que a segurança começa em cada um de Nós. 

Mais do que apontar o dedo, é importante que saibamos que, nesta matéria, todos os dedos contam e fazem diferença, pelo que no final do dia a melhor estratégia é dar as mãos. 

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