Categorias femininas e masculinas dos Brit Awards foram substituídas por uma única categoria mista. Mas a tentativa de "inclusão" está a criar polémica: este ano só foram nomeados homens

14 fev 2023, 00:36
Harry Styles nos Brit Awards (Photo by Dave J Hogan/Getty Images)

Harry Styles dedicou o prémio de "Artista do Ano" às cantoras femininas que não chegaram a ser nomeadas, mas a discussão continua. Será que as categorias "neutras" estão condenadas a ter rosto de homem?

Harry Styles foi o grande vencedor dos Brit Awards deste sábado: subiu ao palco quatro vezes para receber as estatuetas de todos os prémios para os quais estava nomeado, incluindo a categorial principal de Artista do Ano. O discurso de agradecimento foi emocionado e abundou de palavras de gratidão para a família, para a mãe e até para os ex-integrantes do grupo One Direction. Mas o momento mais crucial foi mesmo no final, segundos antes de abandonar o palco. "Estou muito consciente do meu privilégio", declara, antes de dedicar o prémio a cinco artistas femininas que não foram nomeadas.

A dedicatória não foi mera cortesia, mas sim referência a uma polémica que tem ensombrado as últimas duas edições dos prémios de música inglesa. Se o intérprete de "As It Was" não tivesse sido eleito o artista do ano, uma verdade permaneceria imutável: o vencedor seria sempre um artista do sexo masculino. Além de Harry Styles foram nomeados os britânicos Central Cee, Fred Again, George Ezra e Stormzy. Já em 2020 Stormzy tinha vencido a categoria de "Melhor Artista Masculino", com a cantora de R&B Mabel a sagrar-se vencedora na categoria equivalente de "Melhor Artista Feminina". Foi o último ano em que o prémio teve categorias segregadas por sexo: um apelo de Sam Smith viria a revolucionar os Brit Awards.

Em setembro de 2019, Sam Smith anunciou nas redes sociais que se identificava como pessoa não-binária e que preferia ser tratado pelos pronomes neutros they/them (sem equivalência na língua portuguesa), em vez de he/him (ele/dele). A Indústria Fonográfica Britânica, que tinha anunciado por diversas vezes a intenção de tornar o evento o mais inclusivo possível, deparou-se então com uma situação inesperada: ao assumir-se como não-binário, o artista tornou-se inelegível para as categorias ramificadas por sexo e ficou excluído do principal prémio da edição de 2021.

"Anseio por uma época em que as cerimónias de prémios reflitam a sociedade em que vivemos. Vamos celebrar toda a gente, independentemente de género, raça, idade, capacidade, sexualidade e classe." A mensagem de Sam Smith foi recebida pelos Brit Awards, que logo anunciaram que as categorias de "Melhor Artista Masculino" e "Melhor Artista Feminina" seriam fundidas na categoria única de "Artista do Ano". A medida parecia enquadrar-se na resolução do evento britânico de se tornar cada vez mais "inclusivo" e foi amplamente elogiada por celebridades e ativistas, que a consideraram um passo na direção certa. Quaisquer artistas merecedores do título poderiam agora ser nomeados, independentemente do sexo ou identidade de género. Além disso, outros prémios ainda mais renomeados como o Nobel ou o Pulitzer não têm categorias específicas para cada sexo - porque não aplicar esta lógica "inclusiva" aos Brits?

Sam Smith surpreendeu na passadeira vermelha dos Brit Awards com um fato de látex insuflado (Dave J Hogan/Getty Images)

Os mais céticos atreveram-se a responder à questão. As mulheres constituem apenas cerca de 6% do total de vencedores do prémio Nobel; se nos debruçarmos sobre os últimos 100 anos de prémios Pulitzer, a percentagem de mulheres vencedoras sobe para 16%. Ativistas feministas como Caroline Criado Perez realçaram a existência de uma "cultura masculina por definição" e as assimetrias que tal poderia acarretar para o painel de nomeados, em que a neutralidade assume geralmente rosto de homem. Os espaços e categorias femininos são ainda mais importantes se tomados em consideração estudos recentes sobre a indústria da música, que mostram que as artistas femininas são "subrepresentadas" em relação aos pares masculinos - tanto enquanto intérpretes como compositoras.

Apesar do debate, os Brit Awards de 2022 seguiram com o plano e mantiveram a categoria única de "Artista do Ano". Dos cinco nomeados, dois foram mulheres - e a grande vencedora acabou mesmo por ser Adele, que não se coibiu de fazer uma referência à polémica no seu discurso de agradecimento. "Percebo porque é que o nome deste prémio mudou, mas adoro mesmo ser mulher e ser uma artista feminina. Adoro, adoro! Estou muito orgulhosa de nós, estou mesmo", declarou perante as mulheres da audiência, no que muitos interpretaram como uma crítica subtil às mudanças do evento.

A nomeação de duas mulheres e a vitória de uma evitou que a discussão se prolongasse. Isto é: até ao anúncio das nomeações exclusivamente masculinas de 2023. Os géneros musicais, pelo menos, continuaram ecléticos: a lista consistia nos rappers Stormzy e Central Cee, no DJ Fred Again, no cantor e compositor folk George Ezra - e, claro, na estrela pop Harry Styles. As reações de incredulidade percorreram an Internet: "um passo em frente, três para trás", escreveu Tim Burgess, da banda The Charlatans. A jornalista Milli Hill apontou também o dedo aos nomeados, que não se pronunciaram quanto à ausência de cantoras femininas: "Não seria ótimo se apenas UM dos nomeados se levantasse e dissesse: não, isto não é justo, isto não é inclusão?".

O sucesso de Harry Styles no universo cultural contemporâneo ultrapassa continentes e valeu-lhe troféus no outro lado do Atlântico. Ao vencer o prémio de "Álbum do Ano" nos mais recentes Grammys pelo terceiro trabalho de estúdio "Harry's House", declarou: "Isto não acontece muito frequentemente a pessoas como eu". Sucederam-se manchetes e críticas pelas redes sociais, que o acusaram de não reconhecer o privilégio enquanto "homem caucasiano" ("as mulheres negras não vencem há mais de 20 anos", lembrou uma utilizadora do Twitter), enquanto alguns fãs tentavam contextualizar a afirmação do cantor com a infância modesta em Cheshire, no noroeste da Inglaterra. 

Nos Brit Awards, o discurso foi diferente: não só reconheceu o seu "privilégio", como mencionou algumas das artistas femininas que não foram nomeadas este ano. Rina Sawayama - artista de origem japonesa que, há dois anos, levou os Brits a mudar as regras e a incluir qualquer artista nascido no Reino Unido mesmo sem cidadania britânica - foi a primeira a ser mencionada. Seguiram-se Charli XCX, Florence Welch de Florence and the Machine, Mabel (que já tinha sido premiada na categoria "Melhor Artista Feminina" em 2020) e Becky Hill.

As palavras de Harry Styles reacenderam a discussão sobre a (in)visibilidade das mulheres na indústria da música, mas estão longe de a solucionar. Pouco depois do anúncio dos nomeados, um porta-voz da Indústria Fonográfica Britânica, responsável pela organização do evento, reconheceu que a falta de visibilidade das mulheres era "dececionante" mas atribuiu-a a "poucos lançamentos de artistas femininas em 2022". 

Já após o evento deste sábado, a presidente YolanDa Brown voltou a abordar o assunto e prometeu que o processo de nomeação seria reavaliado, embora pareça pouco provável que resulte em mudanças significativas. "A mudança e a evolução são desconfortáveis", justificou, considerando ainda prematuro falar de desigualdades entre sexos ou misoginia. "Este é apenas o segundo ano" em que a categoria é mista, acrescentou, fazendo adivinhar que assim deve permanecer por mais alguns anos. 

Apesar de a discussão central ser sobre os direitos das mulheres e das pessoas não-binárias (e sobre a eventual incompatibilidade dos dois, tema que tem dividido o Reino Unido), há também quem opine que, simplesmente, nenhuma artista feminina se destacou no panorama musical britânico ao longo deste último ano. Ou, pelo menos, não quando comparada com o leque de homens nomeados. Charli XCX, uma das artistas mencionadas por Harry Styles e autora do álbum "Crash", que chegou ao topo das tabelas do Reino Unido, rejeita esta posição e remete a responsabilidade para os votantes dos Brit Awards.

"Ouvi que poucas artistas femininas promoveram álbuns este ano. Mas eu estive a promover um álbum, e chegou ao número 1", afirmou, em tom sarcástico, relembrando a justificação apresentada pela Indústria Fonográfica Britânica. "Estamos a fazer tudo certo. Não acho que a culpa seja nossa. Acho que talvez possa ser deles."

Charli XCX surge com as palavras "real winner" ("verdadeira vencedora") estampadas na camisa, na afterparty dos Brit Awards (David M. Benett/Dave Benett/Getty Images for Warner Music)

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