Porque Brian Wilson morreu. Porque todo o nosso amor, mesmo torto, merece canção

11 jun, 22:01
Brian Wilson

CRÓNICA || Antes, dizia-se que música era só música, que servia para dançarmos ou que servia para esquecermos - nunca para ficar. Depois chegou Brian Wilson. E a canção deixou de ser só superfície: passou a ser um abrigo. Foi ele quem me ensinou que uma harmonia podia ser mais funda do que a fala, que um acorde menor poderia dizer “amo-te” com mais verdade do que qualquer carta. Quando escutámos Pet Sounds, não ouvimos um disco - ouvimos um homem a tentar salvar-se. E, sem sabermos bem como, salvou-nos a nós também. A mim, sim

Houve um tempo em que pensei que as canções serviam para entreter. Para aliviar o caminho talvez.

Depois ouvi Pet Sounds - e tudo mudaria de sítio. Pet Sounds não foi só um disco. Foi mais um manifesto emocional. A tristeza, a solidão, o desejo também: tudo o que os rapazes de camisa de flanela e prancha aos ombros não deviam cantar, Brian cantou. A produção foi julgada demasiado complexa. E é hoje ensinada como cartilha sagrada. 

Paul McCartney dizia mesmo que, sem Pet Sounds, Sgt. Pepper’s nunca teria sequer existido. Dizia também Paul que a canção “God Only Knows” é “a melhor canção de sempre”. E é. Já falaremos dessa canção bendita. Agora falo de Pet Sounds

E falo de Pet Sounds como quem fala de uma espécie de evangelho laico. Porque é um disco que muda quem ouve com atenção. E não o digo aqui por militância estética — digo-o porque me aconteceu. Aqueles instrumentos — o theremin, sinos, cravo, baixo — não estão ali para brilhar. Estão para nos construir uma gramática, emocional. O que Brian fez foi inventar uma forma nova de dizer “estou aqui, e não sei se aguento, mas amo-te, e isso talvez baste”.

A canção “I Just Wasn’t Made for These Times” devia ser decretada — peço que decretem! — património mundial da solidão. “Sometimes I feel very sad.” Não há nada de especial nesta frase. Mas depois ele canta outra vez: “Sometimes I feel very sad.” E nós sabemos que está ali tudo. A inadequação. O desejo de caber. A certeza de que não se caberá. Mas o extraordinário é que, mesmo nessa escuridão cavada existe uma claridade qualquer. Como se Brian nos dissesse “eu não sobrevivo a isto sozinho, mas talvez, se nós nos ouvirmos uns aos outros, possamos todos sobreviver melhor”.

Como diz em “God Only Knows” também. Falemos dela agora. Esta canção bruta é o que nos acontece quando um homem em sofrimento consegue, ainda assim, amar. Porque sendo uma declaração não promete o “isto é para sempre”, mas reconhece o abismo do “e se tu não estiveres?”. É um amor com medo — e por isso é tão real. 

Melodicamente, a estrutura é delicada, tão delicada que parece que se vai depressa quebrar, a qualquer instante, mas não parte — antes cresce e cresce e cresce. Uma melodia inversa, uma ponte que nem parece ponte, harmonias vocais que se nos entrelaçam como se fossem por certo despedidas, mas não acabam — e final repete-se e repete-se e repete-se, como se não quisesse largar-nos. É uma canção que começa com uma linha de baixo de outro mundo, feita do silêncio antes do trovão, não se ouve — sente-se, como febre —, como se alguém tocasse a noite com os dedos, e termina com um crescendo de vozes que parecem querer escapar ao corpo. É sagrada sem ser religiosa. É pop, não é descartável. Dura dois minutos e quarenta e nove segundos, mas cabe lá dentro toda a fragilidade de um ser humano a pedir para não ser deixado sozinho. 

Ouvir “God Only Knows” é, talvez, a única forma certa de compreender o que Brian tentou dizer-nos a vida toda: que ainda é possível transformar dor em beleza, que ainda é possível ser frágil e que ainda é possível, ainda assim, criar algo eterno. É uma canção que me destrói — e me salva — todas as vezes. 

Começa com uma frase corajosa: “I may not always love you”. E depois rebenta-nos todos com a verdade: “God only knows what I’d be without you.” Porque o amor é também salvação e hesita, triunfal e falha. É essa humanidade que me destrói. Que reconhece os medos. Que aceita as dúvidas. E que, mesmo assim, ama. E é essa humanidade que me salva. Não conheço nada mais perfeito. Não conheço nada mais comovente. Uma canção que fala do amor sem idealismo. “God Only Knows” é o som do amor adulto. Que me apanha sempre do avesso. Que me reconcilia com tudo o que não sei sentir bem.

Brian não só compunha. Erguia. Ele não escrevia canções. Inventava geografias sentimentais. Cada acorde era gesto, cada harmonia uma dobra no coração. E não me interessa se quem lê isto ache que estou a exagerar ou a ser piroso. Porque nunca estarei a exagerar quando falo de Pet Sounds. A primeira vez que o ouvi — e não o ouvi logo, ou cedo, porque a vida leva o seu tempo a afinar-nos — senti vergonha. De não o ter percebido antes. De o ter deixado passar. De ter eu vivido tanto tempo sem saber que aquele disco existia. O disco é perfeito, mas imperfeito. Há ali dor, há ali uma urgência que não foi polida. Mas essa é, afinal, a grande arte: transformar o sofrimento em som e em lugar.

E depois há aquela voz. A dele, e a dos outros através dele. Porque mesmo quando Brian não cantava, era ele que conduzia o coro. Um maestro de sombras. O prodigioso compositor que, aos 24 anos, já criara canções que não pertencem aqui, ao chão. Que têm qualquer coisa de cima, de céu. Mas é um céu com nuvens, com feridas, com invernos. Não aquele céu californiano que os Beach Boys vendiam nos primeiros tempos — esse era um céu postal. Brian incendiou o postal e escreveu o poema.

Brian não nos deu apenas Pet Sounds.

Deu-nos outro disco, Smiley Smile, que é uma obra que só se entende se aceitarmos a beleza do inacabado. É estranho, imperfeito, caseiro — como Brian. E talvez por isso seja tão precioso. Fez o que pôde com aquilo que tinha. E o que tinha era a capacidade de transformar doença em delicadeza. Dor em detalhe. Trauma em técnica. É um disco com falhas, sim, mas que respira liberdade. 

Deu-nos Surf’s Up, onde a melodia é uma meditação. Deu-nos Love You, talvez o mais estranho dos discos de amor — uma espécie de bilhete infantil escrito por um adulto a tentar curar o miúdo que foi. 

Ficou por anos em silêncio, medicado, explorado, perdido entre casarões e clínicas. E quando já ninguém esperava, voltou.

Deu-nos That Lucky Old Sun, cheio de sol e cheio de cicatrizes. Como se dissesse: “continuo cá, não como antes, mas ainda inteiro naquilo que importa”.

Deu-nos Smile. O grande disco nunca acabado, que passou décadas a viver como mito, antes de finalmente ver a luz. Mas o que me impressiona mais não é o seu resultado. É o gesto. A ideia de que um homem devastado continua a tentar concluir aquilo que começou quando acreditava que o impossível podia ser feito. Não por vaidade, mas por amor à música. Por amor a uma ideia de que vale sempre a pena tentar.

A obra de Brian é extraordinária porque não se limita a existir. Ela insiste. Exige-nos. Como se nos dissesse: “escuta melhor, há mais aí dentro, há mais sobre ti, há mais nesta dor, há mais nesta beleza”. E por isso oiço Brian não como quem escuta música, mas como quem regressa a um sítio onde se aprende a respirar.

Penso que há uma espécie de injustiça permanente em ter sido ele, Brian, a carregar o seu dom. Porque a sensibilidade que tinha era quase uma maldição. O ouvido absoluto, a capacidade de visualizar camadas sonoras complexíssimas, a ambição de criar a “melhor canção de sempre” — tudo isso vinha acompanhado por uma grande fragilidade que não lhe deu tréguas. Este homem, que ouvia o mundo com tamanha nitidez, não conseguia filtrar o que lhe fazia bem e fazia mal. E, ainda assim, persistiu.

Há canções de Wilson que ouço como quem reza, outras como quem sangra. E outras em que só paro, me vejo ali parado, como se estivesse a ouvir alguém que vê mais longe do que eu, como se eu escutasse com ouvidos que não são meus, que são dele, como se me emprestasse a impossível escuta com que nasceu. Tinha uma obsessão com pureza. Não pureza moral, mas uma pureza sonora: uma nota, um sopro de oboé, um latido de cão a meio de uma faixa — tudo podia ser o detalhe necessário.

Brian nunca soube proteger-se do humanidade. A infância foi marcada por um pai autoritário, a juventude pela fama que chegou cedo demais. E a meio da fama, quando os Beach Boys eram os rostos da América sorridente, Brian já era um homem a viver dentro de casa e dele mesmo, a conversar com o piano e com as vozes que o visitavam. Um mundo interior tão rico, psicótico e doloroso mas rico, que o mundo exterior parecia um erro. Um rapaz americano comum, filho de pai tirano, filho da infância aos gritos, com uma cabeça pesada de sons e preenchida de fantasmas, decide parar de fazer sucesso — diz aos irmãos que não quer andar mais em digressões e fecha-se num estúdio — para fazer sentido. Canções que são orações para quem não acredita em quase nada, mas ainda assim reza. Canções que são tão íntimas que deviam vir com um pedido de desculpas por as ouvirmos.

E depois há o amor. Não um amor de canção de verão, mas o amor que é imperfeito, que falha, que magoa, que ainda se espera. Brian foi romântico na forma mais trágica desta palavra: sempre à procura e nunca encontrado. Casou-se, divorciou-se, perdeu-se, encontrou-se, foi explorado, foi resgatado. Brian ensinou-me quase tudo do amor-cabrão e do cabrão do amor. Não através de uma tese, nem de dogma — mas de uma vulnerabilidade quase insuportável. 

Brian não sabia viver. E, mesmo assim, viveu. Teve medo, teve horrores, teve fobia, teve uma cabeça dividida por vozes que não calavam. Teve um médico que o explorou, teve um corpo que às vezes não soube responder-lhe. E mesmo assim: viveu. De novo e de novo. A agarrar o efémero e torná-lo coisa da eternidade. Uma travessia constante entre o pânico e o piano. Mas o piano salvava-o. A música salvava-o. E, acho que por isso, salvou-nos a nós também.

Hoje, enquanto escrevo isto, ouço um silêncio que me custa. Não é ausência. É a presença da ausência. Mas é um silêncio cheio também. Um silêncio que, se escutarmos bem, talvez ainda nos cante algo. 

Brian Wilson morreu. O orquestrador da beleza melancólica de acorde menor sob o céu azul de Santa Monica, morreu. Já fizera 82 anos, mas era mais velho que isso — porque o grande sofrimento, quando visita um génio assim, é relógio que não respeita o tempo. Morreu e morre com ele uma ideia bastante específica da música popular: a de que se pode ver Deus numa canção pop de dois minutos e quarenta e nove segundos. 

Brian Wilson não morreu. Sempre que precisamos de uma canção que nos compreenda melhor do que nós próprios, não morreu. Porque há coisas que não cabem na morte. Uma melodia perfeita, um acorde maior a seguir a um menor que nos desarma, uma harmonia que nos faz acreditar que há ordem mesmo quando tudo parece ser ruído. Brian Wilson está, agora mesmo, sempre que alguém decidir — eu, agora mesmo — que tristeza poderá ser transformada em beleza. Que a dor não terá de nos emudecer. Porque todo o nosso amor, mesmo torto, merece canção.

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