Factos primeiro: João Rendeiro só tem uma condenação simples sem trânsito em julgado?

23 nov 2021, 09:00
Ginásio, praia e restaurantes: a nova vida de Rendeiro

Este fact-check é uma parceria com o Observador

ERRADO

“Em termos jurídicos, tenho apenas uma condenação simples. Apenas uma. E essa condenação, ainda assim, está em apelo por um co-réu no Tribunal Constitucional. O que poderia significar, quase por absurdo, que se esse apelo do co-réu tivesse êxito, eu na verdade não teria neste momento qualquer condenação transitada em julgado.”

João Rendeiro afirmou, em entrevista à CNN Portugal, que nenhuma das suas três condenações a prisão efetiva transitou em julgado. O ex-líder do Banco Privado Português (BPP) referiu-se concretamente ao seu processo mais antigo — relativo à falsificação da contabilidade do BPP — para afirmar que o mesmo ainda tem pendente um recurso de um segundo arguido, Paulo Guichard.

João Rendeiro foi condenado a uma pena suspensa de cinco anos pelos crimes de falsificação informática e falsificação de documento a 15 de outubro de 2018. No início de julho de 2020, a Relação de Lisboa deu razão ao recurso do Ministério Público e converteu a pena suspensa em prisão efetiva e aumentou-a ligeiramente para cinco anos e oito meses pelos mesmos crimes.

Após a recusa do Supremo Tribunal de Justiça em apreciar o seu recurso, por não cumprir os critérios legais, o Tribunal Constitucional indeferiu liminarmente um novo recurso de João Rendeiro e considerou a sentença transitada em julgado a 16 de setembro de 2021.

Paulo Guichard, o co-réu a que o ex-líder do BPP se refere nas suas declarações e que também foi condenado no mesmo processo a quatro anos e oito meses, apresentou a 28 de julho (durante as férias judiciais) um segundo recurso da sua condenação para o Tribunal Constitucional. Em setembro, tal recurso não foi admitido por decisão da Relação de Lisboa e Guichard reclamou para o Tribunal Constitucional.

A defesa de João Rendeiro tentou juntar-se a esse segundo recurso de Guichard, mas tal pretensão também foi rejeitada pelos tribunais superiores e tornou-se definitiva após cumprimento dos prazos legais.

O Supremo Tribunal de Justiça ordenou a libertação de Paulo Guichard no dia 14 de outubro por estar pendente a já referida reclamação para o Tribunal Constitucional, o que levou a defesa de João Rendeiro a alegar que o facto de o Supremo ter assegurado que os autos ainda não tinham transitado em julgado para Guichard deveria ter efeitos para a situação processual de Rendeiro.

O Ministério Público suscitou esta questão e o juiz Nuno Dias Costa, titular dos autos de falsificação da contabilidade do BPP na primeira instância, garantiu num despacho datado de 25 de outubro que “a decisão final proferida nestes autos, no que ao arguido João Manuel Oliveira Rendeiro concerne, transitou em julgado”. “Nestes termos, mantém a certificação do trânsito em julgado da decisão final (…) e consequentemente a emissão do mandado de detenção”, lê-se no documento emitido já com Rendeiro em fuga para fora da União Europeia.

Numa certidão extraída a 15 de novembro, o Juízo Central Criminal de Lisboa certificou por ordem do mesmo magistrado que “o referido acórdão [condenatório da Relação de Lisboa] transitou em julgado, relativamente ao arguido João Manuel Oliveira Rendeiro, em 16 de setembro de 2021”.

Mais: a certidão foi extraída por ordem do juiz Nuno Dias Costa para ser enviada ao Tribunal de Execução de Penas, “a fim de, se assim for entendido, o arguido João Manuel de Oliveira Rendeiro ser declarado contumaz”.

É, por isso, falso que a pena de prisão de cinco anos e oito meses decidida pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 15 de outubro de 2018 não tenha transitado em julgado. Como o Juízo Central Criminal de Lisboa certificou, a condenação tornou-se definitiva a 16 de setembro de 2021. Acresce que, por conta de tal trânsito em julgado e por estar em fuga, João Rendeiro tem pendente um mandado de captura internacional expedido pela Justiça portuguesa para a Europol e a Interpol.

INCONCLUSIVO

“Em termos internacionais, processos que durem mais de sete anos são processos em falha”

A primeira acusação contra João Rendeiro é de 25 de junho de 2014, quatro anos depois de a polícia ter estado na sua casa na Quinta Patiño, em Alcabideche, e quando arrestou mais de uma centena de obras de arte que ali se encontravam. Neste processo, que já transitou em julgado e pelo qual Rendeiro é procurado internacionalmente para cumprir uma pena de cadeia de cinco anos e oito meses, foram também acusados Paulo Guichard, Salvador Fezas Vital, Fernando Lima e Paulo Lopes, por terem falsificado documentação do BPP.

Rendeiro e Guichard foram primeiro condenados a uma pena suspensa. Esta decisão foi depois alterada pela Relação, motivando o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça — que, em janeiro deste ano, decidiu que a pena única de prisão por cinco anos e oito meses aplicada a Rendeiro, por falsidade informática e falsificação de documentos, se mostrava “justa, adequada e proporcional, sendo, por isso, de manter”. Já quanto a Guichard, condenado a quatro anos e oito meses pela Relação, os juízes do Supremo entenderam que esta pena não lhe permitia recorrer para um tribunal superior. Em julho, a defesa de Guichard recorria então para o Tribunal Constitucional, alegando que o seu cliente tinha sido condenado duplamente pelo mesmo crime: uma vez por via do processo contraordenacional, outra pelo penal.

Quase dois meses depois, a 13 de setembro, a defesa de Rendeiro entregou no Tribunal Constitucional um requerimento a lembrar que um recurso interposto por um interessado aproveita aos restantes e tem efeito suspensivo, “pedindo a extensão do mesmo efeito ao ora requerente”. Mas, a 16 de setembro, era certificado o trânsito em julgado da decisão do Supremo.

Numa outra tentativa, e depois de ver o coarguido no processo, Guichard, ser libertado com um habeas corpus — depois de ter sido detido no aeroporto Francisco Sá Carneiro (Porto) quando regressava a Portugal, e de o tribunal ter considerado que o caso contra ele não transitara me julgado —, Rendeiro tentou usar essa bitola num requerimento ao juiz. Mas, em novembro, o juiz do processo acabava por considerar que o caso estava, sim, transitado, ou seja era definitivo quanto a ele.

O antigo banqueiro é ainda alvo de dois outros processos que nasceram deste. Num deles foi condenado a dez anos de cadeia em maio, no outro processo foi condenado a mais três anos de prisão. Na entrevista à CNN Portugal, transmitida esta segunda-feira, o antigo banqueiro revelou que tenciona pedir uma indemnização de 30 milhões de euros ao Estado português numa ação movida junta do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem porque, sustenta, “em termos internacionais, processos que durem mais de sete anos são processos em falha”.

De facto, já houve processos no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em que Portugal foi condenado a pagar indemnizações aos arguidos pelo tempo que o sistema judicial demorou a resolvê-los. Num acórdão cuja decisão foi conhecida em 2015, lê-se mesmo que os danos causados nestes casos, “mesmo quando não se prova que a vítima sofreu um grande sofrimento ou uma mudança sensível de vida ou de comportamento”, têm de ser compensados.

“Incumbe ao Estado organizar o seu sistema judicial de modo a evitar que os processos se eternizem nos tribunais, por meio dos incidentes e dos sucessivos recursos permitidos pela lei interna”, lê-se, imputando às instâncias públicas a responsabilidade de não atuarem para minimizar o impacto de eventuais estratégias dilatórias nos processos judiciais, como terá acontecido no caso de Rendeiro. “A duração global de um processo por mais de oito anos traduz-se, em si, numa disfunção da justiça”, acrescentam os decisores, referindo que o excesso deste período de tempo viola a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a própria Constituição.

Este tribunal reconhece, no entanto, que a própria jurisprudência portuguesa do Supremo Tribunal Administrativo “evoluiu muito no decurso dos últimos anos”, acabando por se aproximar daquilo que considera ser o “prazo razoável” estipulado no artigo 6.º 1) da Convenção. No entanto, muitas das decisões consultadas pelo Observador fazem uma ressalva: o prazo razoável de um processo depende muito da sua complexidade. Na entrevista, Rendeiro anunciou a sua intenção de levar o seu caso à apreciação dos tribunais internacionais — mas o facto é que essa intenção ainda não foi concretizada e, por isso, não é ainda possível apurar se o TEDH considera que o caso do ex-banqueiro se enquadra naquilo que noutros casos já foi definido como o resultado de uma “disfunção da justiça” ou se a complexidade do processo justifica os prazos atuais.

Um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português faz menção aos valores que as instâncias judiciais nacionais praticam nestes casos. Na CNN Portugal, o advogado Magalhães explicou que também a indemnização de 30 milhões de euros que Rendeiro quer exigir ao Estado é excessiva, pelo menos quando comparada com as decisões de outros casos.

O atraso na decisão de processos judiciais, quando viola o direito a uma decisão em prazo razoável, é um facto ilícito, gerador de responsabilidade civil do Estado. “Segundo a jurisprudência do TEDH, os danos não patrimoniais que, segundo o conhecimento comum, sempre ocorrem em praticamente todos os casos de atraso excessivo na atuação da justiça — correspondentes ao dano psicológico e moral comum que sofrem todas as pessoas que se dirigem aos tribunais e não vêem as suas pretensões resolvidas num prazo razoável — merecem, em princípio, a tutela do direito, não sendo de minimizar na respetiva relevância, sem prejuízo de prova em contrário ou de diferente causalidade”, lê-se. E os padrões de valores fixados por este tribunal europeu, lê-se, rondam os mil e os 1500 euros. Se o atraso for considerado excessivo, poderá chegar aos 2100 euros. Não é, para já, claro que o processo de Rendeiro se enquadre nos casos já analisados pelo TEDH.

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