"Atestaram mais de 300 euros em combustível e fugiram, tive de ser eu a pagar". Quando são os trabalhadores a cobrir os prejuízos da empresa

2 set, 07:00
Combustíveis fósseis (foto: E. McLean/ Unsplash)

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Milena enfrentou uma dívida de centenas de euros para pagar uma fuga na bomba de gasolina onde trabalhava, André viu-se obrigado a pagar por uma piza “oferecida” pelo gerente. À CNN Portugal, especialistas em direito laboral alertam que a situação pode ser ilegal. “Ninguém espera que, em condições normais, o trabalhador arrisque a vida para travar um assalto”, afirma o advogado e professor universitário Luís Gonçalves da Silva

A fuga da bomba de gasolina aconteceu em plena luz do dia. “Eram cerca das 16:00, uma pessoa apareceu no posto para atestar o carro e encher uns jerricãs que tinha no porta-bagagens”, conta à CNN Portugal Milena Braga. A jovem, de 26 anos, autorizou o abastecimento e seguiu com o olhar o cliente ao mesmo tempo que ele fazia subir o contador do gasóleo. “Quando parou, abriu o porta-bagagens, como se fosse tirar algo de lá de dentro e atirou-se para a mala do veículo, enquanto outra pessoa, que estava escondida no lugar do condutor, pegou no carro e acelerou a toda a velocidade.”. Foram embora e, no fim, a gerência daquele posto de combustível na A21, na Malveira, na região de Lisboa, obrigou a trabalhadora a pagar o custo do roubo - “foram 320 euros, tive mesmo muita dificuldade em pagar”. 

O incidente ocorreu em junho do ano passado numa concessionária da BP, mas o Sindicato do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP) refere que este não é um caso isolado. “É uma realidade que afeta vários trabalhadores que se deparam com roubos ou fugas e são pressionados pela entidade trabalhadora a pagar esse prejuízo”, diz a sindicalista Cláudia Pereira, ela própria testemunha desta realidade numa das gasolineiras onde trabalhou em Aveiro. “Lembro-me do caso de uma colega que trabalhava de noite e era a mais prejudicada, chegava a existir meses em que recebia meio salário para pagar à gerência o custo das fugas e nunca chegou a ser indemnizada.” “Infelizmente, é uma realidade”, acrescenta.

Esta prática, contudo, pode ser ilegal, referem vários advogados especialistas em direito laboral à CNN Portugal. “Para que um trabalhador seja obrigado a pagar o custo de uma perda para a empresa, primeiro tem sempre de ser aberto um procedimento disciplinar ou que haja uma sentença decretada por um tribunal”, explica Pedro da Quitéria Faria, sócio na firma Antas da Cunha Ecija & Associados, acrescentando que, “em casos onde isso não aconteça, estão reunidas as condições para que esse pagamento seja ilícito”.

Dentro da loja da bomba de gasolina, Milena conta que seguiu à risca todos os procedimentos em caso de roubo, instantes depois de os dois assaltantes fugirem do local. “A primeira coisa que fiz foi telefonar à minha superior que me disse para lançar a fuga em sistema porque seria possível identificar os ladrões pela matrícula se eles parassem noutro posto de abastecimento.” Depois, continua, telefonou para a polícia e descreveu os assaltantes e o carro que conduziam. “No entanto, viemos a descobrir que a matrícula era falsa e que nem sequer pertencia àquele carro. Até hoje não conseguiram encontrar os dois homens e tive eu de pagar pela fuga.” 

Imagem captada por videovigilância do grupo que assaltou o posto de combustível onde Milena trabalhava/ D.R

A justificação dada pela gerência, conta Milena, foi a de que esta era uma prática geral da empresa e que teria de ser ela a suportar os custos. “Eu questionei, na altura, se a empresa não tinha um seguro para estas situações e a indicação que me deram foi a de que o seguro servia somente para danos internos na loja, como roubos do cofre ou artigos e não para fugas.” 

Milena conta que, mesmo não tendo sido alvo de qualquer procedimento disciplinar, foi-lhe descontado do ordenado mensalmente um valor de 40 euros até saldar a dívida com o empregador. “Sabia que era algo comum, porque já aconteceu a outros trabalhadores. Mesmo assim senti-me lesada, porque já trabalhava lá há três anos e achei completamente injusto não acionarem o seguro ou não terem uma solução para este tipo de problemas.”

Esta realidade não se passa somente no universo dos trabalhadores de gasolineiras. André Figueira, 30 anos, conta que passou por uma situação idêntica no ano passado enquanto trabalhava numa loja da marca Telepizza no Monte da Caparica, Almada, região de Lisboa. Por volta das 21:00, recebeu uma chamada para uma encomenda de um cliente que estava indeciso quando aos ingredientes que queria na sua piza. Ao aperceber-se disso, sugeriu-lhe “alguns ingredientes, levando a que as pizas fossem todas diferentes, e o homem concordou no momento”. 

“Quando o cliente chegou à loja para levantar as pizas, alegou que afinal tinha pedido as pizas todas iguais e que não ia pagar as mesmas”, recorda. A gerência ainda perguntou se o cliente podia aguardar enquanto retificavam o pedido, mas a resposta foi negativa, pelo que os seus superiores decidiram oferecer as pizas, sem qualquer custo. O homem saiu da loja e minutos depois chamaram André Figueira à parte, pressionando-o para que fosse ele a pagar o valor do pedido - cerca de 20 euros. 

Advogados alertam: valor só pode ser retirado ao trabalhador após um processo formal

“É uma situação que por vezes se sucede também nas empresas de segurança privada, que tentam cobrar aos trabalhadores o prejuízo de assaltos”, lembra a advogada Rita Garcia Pereira, especialista em direito do trabalho. Nestes casos e noutros, continua, “a lei é clara”. “Mesmo quando existem acontecimentos fortuitos que decorrem da responsabilidade do próprio trabalhador, designadamente uma situação de negligência, a empresa só pode proceder a descontos depois de ter uma sentença do tribunal a confirmar isso.” A advogada exemplifica com um caso em que um motorista de matérias perigosas meteu o combustível errado no veículo. “A culpa é dele, não fez de propósito, mas só depois de o tribunal o ter decretado é que esse valor pôde ser descontado.” 

Rita Garcia Pereira sublinha que o mesmo acontece para os trabalhadores que recebem um abono para falhas, que é um subsídio para os trabalhadores que têm à sua guarda elevados valores de dinheiro ou documentos importantes. “Esse valor só pode ser retirado mediante um processo formal”, garante. O advogado Pedro da Quitéria Faria tem o mesmo entendimento: “Para que se retire o abono para falhas, é necessário provar que existe um nexo causal entre o ato e a consequência e que o ato tenha sido promovido por esse trabalhador. Portanto, não dispensaria de que se lançasse num processo disciplinar.”

Igualmente a advogada Susana Afonso confirma que mesmo que a falha tenha ocorrido sem sombra de dúvidas por culpa do trabalhador, “como por exemplo se existir um assalto a uma loja de roupa depois de o empregado ter deixado todos os produtos sem alarme e não ter acionado qualquer medida de segurança antes”, “tem de surgir sempre um procedimento disciplinar”.

Luís Gonçalves da Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, considera mesmo que “a questão é simples”: “Para se imputar responsabilidade ao trabalhador, tem de existir primeiro um processo disciplinar, sem ele o empregador não pode imputar o dano ao trabalhador.” O especialista em direito do trabalho refere ainda que a margem para calcular uma eventual negligência por parte do empregado não é “muito grande”. “Desde que, por exemplo, não se tenha ausentado da loja durante um assalto, ou tenha demorado uma semana a reportar o mesmo, e tenha cumprido as regras, não vejo como é que um dano que estava fora do controlo do trabalhador lhe possa ser imputado.” 

“Ninguém espera que, em condições normais, o trabalhador arrisque a vida para travar um assalto”, continua o professor de Direito. No entanto, foi isso mesmo que aconteceu há cerca de um mês, quando um funcionário de um posto de abastecimento no Porto foi atropelado enquanto tentava travar uma fuga. O trabalhador, apurou a CNN Portugal, continua hospitalizado e o acontecimento levou o CESP a emitir um alerta aos trabalhadores sindicalizados para que nunca aceitem pagar de imediato a despesa causada por um roubo. 

Como Milena conseguiu recuperar o dinheiro pago 

Milena, que apresentou queixa à ACT - Autoridade para as Condições do Trabalho após a fuga durante o verão de 2023, demorou oito meses a pagar o valor alegadamente em dívida ao empregador. No final desse ano, decidiu despedir-se. “Foi a gota de água”, diz. Denunciou a situação à BP que, num e-mail a que a CNN Portugal teve acesso, sublinhou “que os postos de abastecimento são explorados por parceiros externos" à multinacional, aos quais “solicitam a averiguação das situações reportadas", como foi o seu caso. 

Três meses após esse e-mail, a empresa que geria a bomba de gasolina convidou-a para uma reunião, onde lhe devolveu o dinheiro cobrado. No documento, é referido que a decisão surgiu após ter sido “detetado que, mediante auditoria, por lapso, foi cativado um valor a título de falha de caixa indevido”. À CNN Portugal, fonte da BP Portugal garantiu ser alheia a esta prática. "Os postos de combustíveis são geridos por entidades terceiras e são as mesmas que definem os procedimentos", afirmou.

Já André Figueira acabou por ser despedido daquela loja da Telepizza. A gestão decidiu rescindir-lhe o contrato por “inadaptação à função”, decisão essa tomada durante o período experimental. Ainda assim, dias depois de ter sido obrigado a pagar o valor das pizas oferecidas pelos seus superiores ao cliente insatisfeito, o seu irmão decidiu fazer um teste. Foi à mesma loja, encomendou duas pizas e simulou ter ficado insatisfeito com um pedido. “A funcionária, sem hesitar, disse que poderia levar as pizas sem qualquer custo.” Ele perguntou o que aconteceria então a essa falha e se seria assumida pela Telepizza ou pelo staff. “Confirmaram-me que, de facto, seria o staff a assumir o custo. Ao ouvir isto, pediu o livro de reclamações.” A Telepizza não respondeu aos pedidos de esclarecimento da CNN Portugal.

 

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