"Eu senti vergonha ao ver uma camarada nossa na Ucrânia, convidaram um nazi para vir a Portugal": os bloquistas indignados com o atual Bloco

28 mai 2023, 16:35
XIII Convenção do BE (António Cotrim/Lusa)

A guerra na Ucrânia é um assunto mal resolvido no Bloco - pelo menos para os críticos da atual da direção do partido. Críticos esses que têm saudades de quando o Bloco era mais "radical". Quem apoio o que o Bloco fez é José Manuel Pureza: "Perguntam-nos o que fomos fazer a Kiev. Eu digo-vos: fomos levar a nossa solidariedade a um povo que está a ser morto à bomba"

Os críticos da direção bloquista aproveitaram a XIII Convenção Nacional do partido, que decorreu este fim de semana em Lisboa, para expressarem desagrado com o posicionamento do Bloco de Esquerda em relação à guerra na Ucrânia. A ida a Kiev da deputada bloquista Isabel Pires, que integrou a delegação parlamentar que acompanhou o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, causou estupefação aos críticos.

“Eu senti vergonha ao ver uma camarada nossa naquela delegação.” Manuela Tavares, professora e investigadora em estudos de género no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, participou na convenção na qualidade de delegada da moção E, subscrita pelos opositores da direção do partido. “Vivi bonitos tempos no Bloco. Receio que esses tempos não voltem.” Eram tempos em que o Bloco era mais “radical”, “independente”. Hoje, Manuela Tavafes já não reconhece este BE, que aceita “substituir um indivíduo do Chega” numa visita à Ucrânia para convidar “um nazi [Zelensky] a vir a Portugal”. 

“Há questões que não consigo entender. Que mal teria nós não irmos à Ucrânia?”, questiona. As palavras de Manuela Tavares ecoam as de Pedro Soares, porta-voz da moção E, que, no primeiro dia da convenção, disse ter ficado “perplexo” com a integração do Bloco naquela delegação parlamentar à Ucrânia, “a convite de um neonazi”.

José Manuel Pureza subiu ao púlpito da reunião magna para responder a esta questão, dirigindo-se aos críticos num tom peremptório: “Perguntam-nos o que fomos fazer a Kiev. Eu digo-vos: fomos levar a nossa solidariedade a um povo que está a ser morto à bomba.” Tal como o fizeram, aliás, “com as gentes” do Iraque e do Afeganistão: “A nossa solidariedade com as gentes do Iraque não ficou refém de Saddam, nem a nossa solidariedade com as gentes do Afeganistão ficou refém dos talibãs. Agora, a nossa solidariedade com as gentes da Ucrânia também não fica refém de Zelensky”.

Na perspetiva de Manuela Tavares, porém, estas são situações incomparáveis. Primeiro “porque a direção ucraniana não é fiável”, sendo liderada por um homem com uma ideologia assente num “nacionalismo muito conservador”. E, por outro lado, porque “a NATO está a aproveitar esta situação, que deseja há muitos anos, para se alargar a leste”.

Na mesma intervenção, José Manuel Pureza recusa-se a aceitar o argumento de que o Bloco esteja “a fazer favores a Zelensky”. “Já antes fomos acusados de fazer favores a Saddam Hussein ou ao terrorismo internacional e isso não nos intimidou”. “O mundo precisa de um grande movimento internacionalista pela paz, (...) que seja frontal na oposição à NATO e às suas estratégias que sufocaram a Ucrânia em dívida e em vertigem guerreira. Esta esquerda, a esquerda da Catarina Martins e da Mariana, não vai faltar a esse movimento”, assegurou o ex-deputado bloquista.

Mas "a esquerda" de Manuela Tavares e dos subscritores da moção E também defende "um movimento de opinião internacional muito forte" que apele à paz. "Como? Através do diálogo?", pergunta a CNN Portugal. "Tem de ser, não vejo outra forma", responde. 

Manuela Tavares, subscritora da moção E, acredita que o conflito na Ucrânia só termina na mesa de negociações e não na frente de combate

"Mas com pressão internacional. Na guerra no Iraque houve um movimento internacional a exigir paz. Agora falamos na paz e imediatamente dizem-nos que isso é apoiar o Putin. O Bloco está amarrado a isto, às políticas do Governo e dos governos europeus que, na prática, satisfazem os interesses da NATO e dos EUA", argumenta Manuela Tavares.

A professora admite que esta posição nem sempre é bem recebida, mas acredita que a controvérsia está na génese do partido e das suas lutas. "Podemos não ser entendidos logo de início, nós sabemos isso. Quantas vezes o Bloco não apresentou causas que não foram logo entendidas? Essa identidade está a perder-se."

No entender de José Gusmão, estas divergências internas são "inventadas" pelos críticos para "esconder uma divergência real sobre a condenação da agressão russa e a solidariedade para com o povo ucraniano". O eurodeputado, que falava no púlpito da convenção, acusou "os camaradas da moção E" de falta de coerência ao declararem que "estão obviamente solidários com o povo ucraniano" ao mesmo tempo que se "opuseram a toda e qualquer medida concreta do Bloco de apoio à resistência ucraniana".  "Defenderam publicamente a entrega dos territórios ocupados à Rússia e agora, nesta convenção, (...) defendem que o grupo parlamentar do BE devia ter rejeitado integrar uma delegação da Assembleia da República ao parlamento ucraniano, pedindo que o Bloco assumisse uma posição oficial de não reconhecimento da Ucrânia e das suas instituições", criticou.

Mais tarde, Carlos Matias, representante da moção E, acusou o eurodeputado de fazer declarações "falsas" e dirigiu uma questão à direção bloquista: "Diz o camarada José Gusmão que só indo à Ucrânia é que reconhecíamos as instituições ucranianas. Então, porque é que em tempos não fomos à China quando denunciámos os atropelos aos direitos humanos, sem deixar por isso de sermos solidários com as lutas do povo chinês?"

E o que dizem os jovens militantes?

Entre as camadas militantes mais jovens, as opiniões são uniformes. "Condenamos a invasão mas também reconhecemos os aspetos menos positivos da Ucrânia, principalmente a grande proporção de forças nazis nos seus exércitos. De qualquer maneira, é uma invasão", argumenta Catarina Santos.

Esta jovem, de 20 anos, está sentada nas primeiras filas da reunião magna e ouve atentamente as intervenções de cada um dos militantes que sobem ao palco. Mais tarde encontrámo-la a folhear a coleção de livros à venda no átrio do pavilhão. É a primeira vez que participa numa convenção partidária.

Catarina Santos começou a interessar-se por política no ensino secundário e o caminho para a licenciatura de Ciência Política foi o rumo natural das coisas. Porquê o Bloco?, perguntamos. "É o partido no qual me revejo mais, é aquele que luta pelas lutas feministas, é antirracista, luta ativamente pelos direitos dos trabalhadores, é ambientalista. No fundo, consagra tudo aquilo que são os ideais de esquerda. Tem um programa coeso e está sempre presente em todas as lutas."

Mais à frente, Inês Neves Martins caminha junto a um grupo de militantes. Chegaram no sábado, todos juntos, num autocarro que partiu de Barcelos. "Saímos de lá às 05:20 e fizemos uma viagem de 4h30. Viemos porque acreditamos no Bloco", conta esta jovem, de 18 anos, que está a estudar para seguir Medicina.

Tal como Catarina Santos, esta é a primeira vez que Inês Neves Martins participa numa convenção, apesar de já ser militante do Bloco há três anos. Considera que o BE é o partido-rosto dos "grande avanços na nossa sociedade, nomeadamente o casamento entre pessoas homossexuais, nos direitos das mulheres, na criminalização da violência doméstica, na defesa do ensino público e do SNS".

Sobre a guerra, ambas também estão de acordo, ainda que Inês Neves Martins vá mais longe: "É uma guerra, claramente. Estamos perante um país que invadiu e impediu a autodeterminação de outro e a Ucrânia deve prevalecer. Mas acho que não devemos cair na cantiga de 'mais armas' e NATO. Se queremos que a guerra acabe verdadeiramente, não devemos dar mais dinheiro para a guerra mas encontrar soluções de paz, de negociação". "Quem diz o provo ucraniano diz o povo palestiniano, diz o povo do Irão, diz todos os povos que estão a ser oprimidos e vítimas de uma guerra e que, muitas vezes, não são faladas", lembra, apontando o conflito entre Israel e Palestina como exemplo: "Nós proibimos a Rússia de jogar futebol e de ir à Eurovisão, mas depois Israel vai. Israel, que está a ocupar e a destruir a Palestina e a fazer um apartheid aos palestinianos? É uma narrativa muito perigosa e a razão disso são interesses monetários e racismo. Não podemos esquecer que estes povos precisam de tanta ajuda como os ucranianos".

Apesar das divergências - reais ou "inventadas" -, o Bloco uniu-se no final da convenção para receber a nova coordenadora, que promete continuar a fazer frente à direita e à extrema-direita e ao "poder absoluto". No seu primeiro discurso enquanto líder do BE, Mariana Mortágua também não esqueceu a Ucrânia, falando a uma só voz, como quem termina uma discussão entre irmãos. "Empenhamos a nossa solidariedade com todos os ativistas russos contra a guerra e a repressão, bem como com toda a esquerda que se bate em qualquer país do mundo pela democracia, pela representação de quem trabalha, contra a corrupção e a prepotência, contra o militarismo e as guerras", declarou. E todos aplaudiram.

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