O líder da Iniciativa Liberal fala com açúcar nos olhos e pólvora seca nas palavras. Provavelmente, já se vê no poleiro. Depois de dar a mão direita a Montenegro, pode acabar nas mãos dele
Rui Rocha parece apaixonado: anda tão feliz com ser a futura noiva da AD que já chegou à igreja antes do noivo, do padre, dos convidados, das flores, dos músicos e até dos pombos – espera no altar, vidrado nos raios de luz, a contar os dias para o noivado de dia 18. O poder é um rei-sol, ilumina e aquece. E queima e cega.
Este embevecimento viu-se logo nos (maus) debates. As bujardas para a esquerda foram angulosas como sempre, mas as críticas para Montenegro pareciam combinadas, até obsequiosas. O objetivo de entrar no governo é perfeitamente aceitável, porém demasiado denunciado para não ser anunciado. As ocasionais juras de Rocha de que assim não será parecem papel de rebuçado: para rasgar antes de comer.
O cio político é recíproco, aliás: a Montenegro só falta dizer que, se com o Chega o não é não, com a IL o sim é sim. Só que isto, que poderá ser bom para a AD, e bom até para Rocha, dificilmente o será para a IL. No futuro. E também já.
Veremos à chegada, mas à partida a IL tinha condições para crescer muito, agregando os desiludidos com os pilha-galinhas do Chega e os descontentes com o PM-empresário-angariador-advogado-acionista-facilitador-pai Luís Montenegro. A IL é, ao mesmo tempo, o partido de direita que não contribuiu para a crise política (votou contra as moções de censura e a favor da moção de confiança) e aquele que menos casos tem (e se não fosse a história da falsificação de assinaturas de Tiago Mayan, não teria nenhum).
É provável que a IL tenha a sua maior votação nestas eleições, superando os oito deputados anteriores, o que fará de Rui Rocha um vencedor na noite eleitoral. Mas é também provável que, se não tivesse trocado o ferrão pelo mel para Luís Montenegro, crescesse ainda mais.
Rui Rocha passou de, em fevereiro, dizer que “não estamos cá para trocar as nossas ideias por cargos” e que “fomos sozinhos [nas eleições anteriores] e fizemos muito bem”, para agora dizer que “estamos abertos” a acordos com AD e já com nomes de ministérios com cargos a trocar por ideias. E se em fevereiro era "se Luís Montenegro quer continuar a ser primeiro-ministro, tem de extinguir" a empresa”, em maio “terá sempre de haver uma conversa” com Montenegro sobre a Spinumviva.
Uma conversa.
Uma conversa pode bastar para salvar ou para amaldiçoar um homem. Ou mesmo para salvar E amaldiçoar. Assim aconteceu a Mikhail Bulgakov, escritor soviético que, em 1929, sentindo-se ostracizado pelas suas ideias, escreveu uma “Carta à URSS” pedindo liberdade para se ir embora ou um emprego para ficar - e foi surpreendido por um telefonema: do outro lado estava Estaline, o próprio, que nessa conversa lhe ofereceu um emprego e prometeu coisas que nunca cumpriria, manipulando-o e agrilhoando-o a uma falsa esperança toda a vida.
A falsa esperança de Rui Rocha não será a de acabar com o socialismo, mas a de infiltrar no governo próximo o liberalismo intensamente ideológico do seu partido. Já noutra ocasião escrevi o que penso da Iniciativa Liberal: que só nasceu tarde e já nasceu velha, “com vinte anos de atraso e quarenta anos de deslumbramentos por Margaret Thatcher e Ronald Reagan”. E isto significa que fazia muita falta um partido liberal em Portugal, mas também que as suas propostas estão longe de ser novas.
Não foi só o Chega que nasceu do pós-Passismo, depois de o PSD se desfederar da direita para o centro (“O PSD não é de direita”, disse Rui Rio depois de substituir Passos Coelho); também a IL se tornou inquilina de um espaço político inventado por Passos que ficou desocupado depois dele. Os “três objetivos para até 2030” que abrem o programa eleitoral da IL desdobram-se em 14: lendo-os, vemos que mais de metade foram ditos por Passos há 15 anos e metade da outra metade poderia por ele ser dita agora.
Na conversa que “terá sempre de haver” sobre a Spinumviva, Rui Rocha poderá ouvir Luís Montenegro ler-lhe uma passagem de um dos livros de cabeceira dos liberais:
“Já não se espera que os seres humanos sejam santos nem que sejam punidos pelos seus pecados. Ninguém está certo ou errado, estamos todos juntos nisto, somos todos humanos — e o ser humano é imperfeito. Não ganharás nada amanhã provando que eles estão errados. Deves ceder com boa vontade, simplesmente porque é a coisa prática a fazer. Deves ficar em silêncio, precisamente porque eles estão errados. Eles vão apreciar isso. Faz concessões aos outros e eles farão concessões a ti. Vive e deixa viver. Dá e recebe. Cede e aceita. Essa é a política da nossa era - e está na hora de aceitá-la.” “A Revolta de Atlas” (1957), de Ayn Rand.
“A Revolta de Atlas” é um livro quase tão abominável para a esquerda como o “Mein Kampf”, tanto que provavelmente ninguém da esquerda sequer o lê. Fazem mal, porque sendo uma celebração retórica-eufórica do egoísmo e do individualismo radical (o Objetivismo de Rand), e de um capitalismo tão livre de regulação, Estado e impostos quanto possível, este “Atlas…” é também um manual de instruções psicográficas para compreender a ideologia nascente, os seus afluentes e efluentes.
Para enfileirar com a AD, a IL vai talvez querer mais do que dois ministérios, um para a Modernização Administrativa e outro para a Economia, um para Rui Rocha e outro para Óscar Afonso, que agora alinhou com a IL depois de há um ano ter trabalhado ao lado de Miranda Sarmento e sido eleito ao lado de Luís Montenegro - e renunciado à bancada parlamentar do PSD, porque, precisamente, esperaria ser ministro da Economia e não foi. Vale a pena ler os (sem ironia) belos textos que Óscar Afonso tem publicado no Eco desde fevereiro. Incluindo, já agora, este: “Aliança AD-IL reformista pode tornar realista crescimento económico da AD”.
Branco é, galinha o põe.
Rui Rocha lidera o partido sob a sombra de dois líderes: o anterior, Cotrim de Figueiredo, que no atual contexto Spinumviva teria feito uma campanha temível para Montenegro; e o provável futuro, Bernardo Blanco, que foi-ali-e-já-vem fazer um estágio para um dia regressar “das empresas”, comme IL faut para se singrar neste partido. Ora, uma entrada no governo dá a Rocha o seu próprio zénite.
O ímpeto de fazer uma ADIL é tão indisfarçável que, pela vontade de Rocha, a coligação até perderia esse nome de remédio para o reumático e chamar-se-ia ILDA. Mas há dois riscos nesta aproximação ao sol com tanta sofreguidão como a que teve Ícaro antes de se despenhar: uma é já, na campanha, porque a brandura com a AD destrói a estratégia de base da IL, a de que PS e PSD são iguais, o que deixa de funcionar quando Rui Rocha diz que um é sério e o outro não - e sem essa estratégia o voto útil pode ser drenado pela AD; o outro risco é no futuro, quando Luís Montenegro desativar Rui Rocha como António Costa desativou Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, destruindo a diferenciação que fazia existir os seus partidos não apenas para os seus militantes, mas também para o seu eleitorado.
O PSD comeu o CDS ao pequeno-almoço e prepara-se para jantar a IL garantindo-lhe que partilha o jantar com ela. Um prato de lentilhas, talvez, e uma cerveja de penalty. Afinal, como também escreve Ayn Rand, “é preciso trocar alguma coisa. Se não trocamos dinheiro - e a era do dinheiro já passou - então trocamos homens.”
NE: imagem no topo concebida com recurso a ferramentas de inteligência artificial.