Bestiário | O perdedor que divide será o mandatário do favorito que quer unir

3 jun, 08:20
Bestiário

A escolha de Rui Rio como mandatário nacional da candidatura de Gouveia e Melo é um mapa embrulhado num mistério. Mapa, porque ajuda a chegar a algum pensamento do Almirante; mistério porque Rio é um looser de papel passado que afugenta eleitores como ninguém

Era uma vez um menino que queria ser alemão. Ou melhor, o pai – português dos quatro costados, e sabendo do que a casa gasta – queria-o alemão, e inscreveu-o na escola alemã do Porto. Queria que o petiz aprendesse a língua de Goethe e das cantatas de Bach, só para nomear dois dos suprassumos da cultura ocidental hergestellt in Deutschland, mas sobretudo queria tirá-lo de cá quando chegasse a hora do rapaz ir para a faculdade, para lhe dar mundo e liberdade. Via que o infante pendia para as matemáticas e economia, e sonhava-o a licenciar-se nas melhores universidades alemãs. Mas o rapaz, apesar de bilíngue, apesar de saber falar como quem dá ordens na parada, não tinha dois amores. Quem que lhe tirasse o Porto tirava-lhe tudo. Não trocava as corridas de carros na Boavista por um qualquer canudo alemão, por mais prestigiante que fosse. Fez finca-pé para se licenciar na FEP, que era, dizia o jovem Rui, tão boa como qualquer faculdade alemã. Para desgosto do Senhor Rio-pai, o mundo do Rio-filho era do tamanho do Porto, e não dava mais. 

Foi a primeira grande discussão que Rui Rio teve com o pai, conta a biografia “Raízes de aço”. Biografia é a designação técnica do livro, que em tempos tive de ler por obrigação profissional. Mas a designação é um exagero benevolente. Na verdade, trata-se de uma hagiografia escrita por um amigo, que escorre baba em cada página. E que apresenta a total falta de cosmopolitismo e curiosidade pelo mundo do jovem Rui Rio como louváveis traços de caráter e demonstração do amor do biografado pela sua terra. 

Foi, pois, na sua muito amada cidade do Porto que, no sábado, Rui Rio voltou da morte política a que parecia condenado, e logo para ser Mandatário Nacional da candidatura do Almirante Gouveia e Melo. “Nacional” talvez seja, mais uma vez, um benevolente exagero, tratando-se do mesmo Rui Rio que, no que dependesse de si, só sairia do Porto para ir de férias para Moledo, e cujos horizontes vão, por regra, da Boavista até aos Carvalhos. O mesmo Rio que quando era líder do PSD abriu uma segunda sede nacional do partido no Porto, duplicando custos e estruturas de apoio, para vir menos a Lisboa, a “capital” a que se referia, como genuíno nojo, como “antro”. No “antro”, havia a “corja”, vocábulo que tanto designava os políticos (Rio, note-se, não se via como um político igual aos outros) como os jornalistas (Rio não gostava de jornalistas nem, em geral, de qualquer tipo de escrutínio). Em ambos os casos, ninguém me contou. Ouvi. 

Mas o Almirante escolheu, está escolhido. Segundo explicou ontem em entrevista à Sandra Felgueiras, “tenho uma grande admiração por ele [Rui Rio], enquanto 1) pessoa independente, com coragem, 2) com capacidade de negociar mesmo quando estava na oposição, e tenho também alguma afinidade relativamente aos objetivos em termos políticos. É 3) um reformista, é uma pessoa muito 4) mais preocupada com a estratégia do que com a tática e isso de alguma forma fez-me convergir com ele.” Vamos por partes. 

  1. Rio não é politicamente independente: é, toda a vida foi, militante do PSD. Coisa diferente é ter, várias vezes, traído o PSD. Aconteceu, por exemplo, quando apoiou Rui Moreira para a Câmara do Porto, à traição de Luís Filipe Menezes, seu arqui-inimigo nas hostes sociais-democratas. Agora, vai contra a indicação de voto em Marques Mendes na presidenciais, aprovada pela direção do partido. Razão: Mendes criticou Rio, e Rio não perdoa quem o critica.

  2. A negociação mais bem-sucedida de Rui Rio quando estava na oposição, tendo conseguido levar de vencida uma iniciativa sua, foi o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro. Rio, que era líder da oposição (mas sempre odiou o espaço parlamentar), e quis poupar o primeiro-ministro a dar explicações à oposição todos os 15 dias. Não foi preciso grande negociação. Sem surpresa, o PS apoiou a ideia.  De tão absurda, Luís Montenegro reverteu-a assim que pôde, quando chegou à chefia do PSD.

  3. Sim, Rui Rio fala muito em reformas. Só André Ventura fala mais do que ele na “reforma do regime”. E ninguém fala mais do que ele na “reforma da Justiça”. Desenvolveremos ambos os pontos mais abaixo.

  4. Se estar “mais preocupado com a estratégia do que com a tática” significa penhorar qualquer hipótese de aplicar as suas ideias por ser incapaz de vencer umas eleições, sim, essa é uma boa descrição de Rui Rio.

Estranha escolha, porém. Porque o Almirante tem tudo a seu favor para vencer as presidenciais e indiciou, para seu mandatário, um looser reincidente. Quando se candidatou pela primeira vez a líder do PSD, em 2018, depois de muitos anos a calcular e a preparar esse passo, apontou ao seu adversário, Pedro Santana Lopes, o rosário de derrotas que este já carregava (apesar de ter sido vice-presidente do PSD durante a liderança da Santana, em 2004, sendo por isso co-responsável pela derrota de Santana em 2005). Quanto a si, Rio apresentava-se como um vencedor inveterado. Não só tinha conquistado de forma surpreendente a Câmara do Porto, em 2002, como “nunca perdi uma eleição, nem para a associação de estudantes”, alardeava. Os factos não o deixavam mentir, e esse era um dos pilares da sua auto-proclamada excepcionalidade enquanto político.

Foi, claro, uma questão de tempo. Nos anos em que dirigiu o PSD só acumulou derrotas. Tem o seu nome no pior resultado do partido em legislativas na era pós-Cavaco (27,7% em 2019), e em 2022 ofereceu a António Costa uma maioria absoluta em que nem o PS acreditava (com 29% para o PSD) – para esse desfecho, ajudou a sua calculada ambiguidade em relação a possíveis acordos com o Chega. Rio até consegui, durante a sua liderança, o pior resultado de sempre do PSD em eleições nacionais (21,9% nas europeias de 2019), tendo o mesmo cabeça de lista (Rangel) que, em duas europeias anteriores, tinha alcançado resultados bastante superiores.

Mas a estranheza não é só isto de um winner potencial se aliar a um perdedor de papel passado. Também se estranha que o Almirante, tendo como slogan “Unir Portugal” tenha escolhido para mandatário nacional o líder mais divisivo da história do PSD. Não foi um azar que lhe aconteceu, foi uma opção deliberada e assumida por Rio, que prometeu “pôr ordem” no partido e convidou todos os insurrectos a procurar outra casa. Foi nessa altura que saíram do PSD André Ventura e Pedro Santana Lopes, entre muitos outros. A obsessão de Rio de colar o PSD ao PS abriu autoestradas à direita, e foi aí, e nesses tempos, que surgiram o Chega e a Iniciativa Liberal.

Quanto à promessa de “pôr ordem” no PSD, obviamente nunca foi concretizada. Porque o PPD-PSD, que é um bicho antigo e com instinto de sobrevivência, só amocha quando encontra líderes que o façam sonhar com o poder. Com Rio, nem cheiro de poder, e isso bastava para o desassossego permanente. Que o próprio acicatava, dizendo que quem quisesse “ser alguém na política” no PSD, mais valia esperar sentado. Luís Montenegro – sim, o mesmo que é agora primeiro-ministro, recém reeleito – avisou em devido tempo que “liderar não é isto. É ir à procura de apoio, é somar, é agregar, é motivar, é mobilizar e fazê-lo sobretudo quando as pessoas não estão de apoio à partida.” Resposta de Rio: “Estou cheiinho de medo!” 

A bazófia não o levou longe. Porém, Rio conseguiu um feito raro: mesmo com o péssimo resultado do seu primeiro embate com António Costa, em 2019, conseguiu manter-se como líder do PSD. Apesar da boca sempre cheia de desapego e desprendimento em relação a cargos, apesar de afetar sempre sacrifício e enfado pela cruz que carregava, apesar de acusar os outros de viverem da cacicagem de votos, Rio agarrou-se à liderança da mesma forma que a conquistou: apoiado pelo mais puro aparelhismo partidário – teve, em momentos decisivos, apoios tão improváveis como a família Gonçalves, que representa todo um submundo do PSD em Lisboa, ou Carlos Eduardo Reis, que Rio promoveu a deputado quando este já era figura de proa do caso “Tutti Frutti”.

Como todos os líderes que se consideram excepcionais e imaginam uma conspiração em cada esquina, Rio foi afastando gente e acabou por varrer das listas quase todos os membros destacados da atual direção do PSD. Alguns, como Luís Montenegro, não chegaram a ser corridos porque saíram por seu próprio pé. Outros, como Hugo Soares e Maria Luís Albuquerque, foram mesmo corridos por Rio.

Quando Montenegro se disponibilizou para precipitar eleições dentro do PSD, de forma a evitar a hecatombe eleitoral que se via no horizonte das legislativas de 2019, Rio deu um golpe de secretaria e, num Conselho Nacional onde Montenegro não tinha assento e não se podia defender, metralhou-o sem piedade: acusou-o de “falta de maturidade” e “falta de responsabilidade”, e de “lançar confusão e instabilidade” para “fazer o jogo do PS” e, pior, com “divergências que são meramente táticas artificiais”.

Se não é provocação, parece. Quando o Almirante escolhe Rui Rio para seu Mandatário Nacional, sabe que está a colar-se ao ex-líder do PSD que o atual e futuro primeiro-ministro Luís Montenegro mais combateu. Estando um em São Bento, se o outro for para Belém, está a Real Barraca montada. 

Por outro lado, o facto de Rio se juntar a Gouveia e Melo, só por si, contraria a decisão do PSD de apoiar Luís Marques Mendes. Só que Rio não perdoa quem o critica – é mais forte do que ele. E Mendes criticou-o muitas vezes nas suas funções de comentador político. Ironicamente, a “vingança” de Rio em relação a Mendes (para usar a palavra do diretor de campanha de Mendes) acaba por ser um reconhecimento e um elogio à independência do comentador televisivo: apesar de anos de militância no PSD, Mendes demarcou-se do seu partido quando entendeu fazê-lo. Fê-lo frequentemente quando Rio era líder. Agora, tem a paga. Como tantas vezes aconteceu, Rui Rio é o seu pior inimigo.

Outra estranheza de ver Rio aliado ao Almirante, e logo com responsabilidades de Mandatário Nacional, é o súbito desinteresse do antigo autarca do Porto pela questão das “forças ocultas”, “interesses obscuros” e “grupos organizados de perfil pouco ou nada transparente” – eufemismos que usava para se referir à Maçonaria. Quando, em 2020 teve de disputar a liderança do PSD com Luís Montenegro e Miguel Pinto Luz, acusou-os, em pleno debate televisivo, de serem maçons. “Os meus adversários são conhecidos como sendo da Maçonaria. Não consigo compreender como no pós-25 de Abril há necessidade de haver obediências secretas que não são devidamente escrutinadas” (Montenegro negou; Pinto Luz disse que já se tinha afastado da sua loja maçónica). Rui Rio, aparentemente tão bem informado sobre as fidelidades maçónicas de outrem, parece ter-se descuidado, pois não se terá dado conta do elevado número de maçons que estiveram na apresentação pública da candidatura do Almirante – bastava ver na televisão, eles destacavam-se como papoilas saltitantes em campos verdes. Passados ainda mais anos sobre o 25 de Abril, a existência destas “obediências secretas” parece que deixou de ser uma preocupação para Rio.

Mas numa preocupação Rio não cede: a reforma do país em geral e da Justiça em particular. A reforma mais ampla, é a do regime, de que Rio fala há anos – e, note-se, só André Ventura fala mais de reforma do regime do que Rio. Talvez essa coincidência explique o estranho facto de alguns colaboradores próximos de Rio, quando este liderava o PSD, se terem alistado no Chega depois de Rio ter deixado a liderança social-democrata. Não foram dois nem três – havia mesmo uma ideia de refundação do regime, de contornos autoritários, que Rio protagonizava e que, tendo falhado, muitos sociais-democratas só reconheciam no líder da extrema-direita. Maló de Abreu, amigo de uma vida e conselheiro muito próximo de Rio, foi o primeiro a dar esse salto. Seguiu-se Tiago Moreira de Sá, que era o conselheiro de Rio para questões internacionais. E até Lina Lopes, uma patusca figura que liderava as Mulheres Sociais-Democratas e a quem Rio deu bastante palco, é agora a candidata do Chega à Câmara de Setúbal. Ele há coincidências… Ou talvez não.

Quanto à reforma da Justiça, que Rio voltou a defender no sábado passado, e de que fez a sua bandeira nos últimos anos, tinha um objetivo e dois alvos em particular: o objetivo era, como sempre, “pôr na ordem”; os alvos eram as magistraturas e a comunicação social. Num projeto de reforma da Justiça que Rio propôs negociar em segredo em 2018, era evidente a preocupação de garantir um controlo político sobre os magistrados do Ministério Público e sobre os magistrados judiciais. Mas também havia a proposta de julgar com especial celeridade os “abusos dos jornalistas”, numa espécie de julgamento sumário, como se os crimes de abuso de liberdade de imprensa merecessem prioridade sobre crimes de sangue, tráfico de drogas ou crimes sexuais.

As propostas de Rio só não ficaram em segredo porque foram noticiadas no jornal onde então escrevia. E eram de tal calibre (“um monte de disparates”, segundo uma fonte que me deu acesso ao documento) que nenhum partido, da esquerda à direita, aceitou negociá-las, e muito menos em segredo. O social-democrata lá se lamentou por se perder a oportunidade de uma reforma “urgente”, mas talvez agora possa voltar à carga, caso sejam as suas teses que fazem o Almirante defender a necessidade de reformar a Justiça. E talvez sejam mesmo. “Partilhamos ideias”, reconheceu o Almirante, “concordo que deve haver uma reforma da Justiça … que muitas vezes é uma Justiça de pelourinho”. 

Ora aí está. “Justiça de Pelourinho” é a expressão que Rui Rio costuma usar para atingir dois coelhos com um tiro só: a justiça e a comunicação social. O rioísmo, que se julgava morto e enterrado, ressuscitou pelos poderes encantatórios do Almirante. Pacheco Pereira, velho aliado de Rui Rio, lamentou, no Princípio da Incerteza, o ato do seu amigo. “Acho um erro esta posição”. E explicou porquê: “O que dá força a Gouveia e Melo é ele funcionar como uma espécie de D. Sebastião (...) Ele vai trazer ideia do homem salvador, que no contexto da sua ação política ou rapidamente percebe que não pode fazer aquilo que diz, e se transforma num Presidente em que o poder presidencial não é exercido, ou pura e simplesmente vai ser um fator de caos, porque vai tentar fazer intervenções na condução do processo político.”

É verdade que não compete ao Presidente da República fazer leis ou aprovar reformas. Mas o Almirante, se for eleito, não será um Presidente como os outros: será, no mínimo, a voz de comando, autoritária e inquestionável, que Rio gostava de ter sido no país, como foi na Câmara do Porto. E, como se sabe, quem não tem cão caça com gato. Rio que o diga: na sua última campanha, o seu gato Zé Albino tornou-se mais popular do que o dono. 

Por falar nisso, o gato voltou às redes sociais, agora com a bandeira nacional em fundo. Não deveria ser o Zé Albino o Mandatário Nacional do Almirante? Teria mais likes nas redes e menos anticorpos na política.

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