Hoje desce aqui o medonhento, como diz o povo. Isto é, as pessoas. Ou seja, a gente. Deixa o Luís gabar Albuquerque, deixa o Luís não debater com todas e todos, deixa o Luís, deixa o Luís, deixa o Luís…
“O Luís” é o Galo de Barcelos da AD, um mini-eu de Montenegro que se apresenta como figura popular, como gente simples e autêntica da nossa terra - mas na verdade foi criado por propaganda política. Nesta fase da campanha, tudo é propaganda – e a da AD é tão profissional em parecer amadora que ainda veremos “O Luís” como pesa-papéis nas lojas de souvenirs para pêpêdês de Espinho ao Pontal.
Há nisto uma estratégia eleitoral, que hoje tateamos – e hoje é mais um dia em que “O Luís” não debate com ninguém e talvez confesse de novo em quem agora se inspira: não em Passos nem em Cavaco, é em Miguel Albuquerque. “O Luís” dixit, foi ontem na TV, tinha gente ao lado e ninguém à frente: as mulheres que o queriam enfrentar tiveram que se descontentar com Nuno Melo, era ele ou outro caramelo, o pê-éme em gestão após 11 meses de gestação é que não, estava mais ocupado em parecer “O Luís” do que em ser Montenegro.
A propaganda é sempre projeção e raramente é falsificação pura, o artificioso credibiliza-se na verosimilhança. Também António Ferro se apoiou numa fábula longeva e destinou a produção do seu galináceo preto-colorido a Barcelos, para lá fecundar a falsa tradição do pesa-naperons que o século XX consagrou em cima de centos de televisores do Portugal profundo. Com “O Luís”, há menos Ferro e mais dentes-de-leão, mas o princípio popular está lá.
A verosimilhança está no Montenegro que sabe coser uma almofada com o ponto de Arraiolos e cozer um arroz de cabidela no programa da tarde, o Montenegro que canta ‘Sonhos de Menino’ em dueto com Tony Carreira e tanto chora de emoção na Cristina como defende o riso sincero na Júlia, o Montenegro nadador-salvador na praia de Espinho aos 16 anos, o Montenegro que aos 49 percorreu o país à procura de notoriedade sob o lema “Sentir Portugal em…”. É esse “O Luís” do hino rimado por uma inteligência artificial, que desce ao lugar “das pessoas”, fala de esperança, substitui o nós por “a gente”, parece que se dirige a vós mas interpela o eles, os soezes, “deixa o Luís, deixa o Luís”, e ele trabalha tanto, ele já desceu impostos aos novos, pagou pensões e remédios aos velhos, aumentou salários a 19 profissões, “deixa o Luís, deixa o Luís, deixa o Luís, deixa o Luís trabalhar”. Parece-lhe música de feira, romântico-sentimental? Então parece-lhe bem – é o Galo de Barcelos, é “O Luís” do barro dos homens, da terra, do povo, um rural como disse Marcelo, é um de nós, nós quem?, nós, “as pessoas”, a gente.
“O Luís” não é um parolo para risota dos comentadores da cidade (perdão, de Lisboa), é um estratega que quer rir melhor porque rirá no fim. Várias sondagens iniciais mostravam duas coisas: que muitos portugueses queriam que o governo continuasse a governar; e que muitos portugueses censuravam Montenegro por ter angariado clientes de influência na Spinumviva e preferiam que ele saísse. Será provavelmente a basculação entre estes dois pratos que fará alguns milhares de eleitores decidir a eleição.
Montenegro agarrou-se ao governo e ao PSD, fazendo de ministros os seus escudeiros e de militantes os lanceiros do jogo sujo, assim libertando-se para a simpatia e a positividade; ele aposta mais em vitimizar-se do que em afirmar-se; mais em futuro do que em passado; mais em não poder parar do que em discutir porquê; mais em engrandecer-se do que em explicar-se (“ele tem palavra, ele tem valor”) - mais em não perder do que em ganhar.
“Mas porquê? Ele roubou alguma coisa a alguém?", ripostava o suspeito de corrupção Miguel Albuquerque há semanas assim defendendo que Montenegro não abdicasse. Ontem, “O Luís” colou-se mais ao líder do PSD na Madeira do que este se colara a si próprio na campanha insular, onde nem sequer usou a sua cara nos cartazes. Colou-se a um arguido suspeito de crimes graves no exercício de cargos públicos, e que conquistou a sua maior vitória de sempre, vencendo também a justiça pelo voto democrático. Colou-se porque deseja o mesmo, lavar-se de suspeitas através dos votos de um “povo que não quer brincadeiras” ante um sistema de suspeitas, ético ou judicial, em descredibilização acelerada. Colou-se invejando “as condições de estabilidade e de governação" que Albuquerque conseguiu.
É isto: de um lado suspeitas, do outro estabilidade. Agora escolha.
Nesta estratégia não cabem debates de atrito. Enquanto Pedro Nuno Santos e André Ventura já fizeram seis debates (de sete), Montenegro só fez dois (de quatro). Não debaterá com nenhuma mulher – Nuno Melo substitui-o e debateu com três. Não insinuo misoginia ao homem que escolheu Maria Luis Albuquerque para comissária europeia ou Filipa Urbano Calvão para o Tribunal de Contas, e que no congresso do PSD afivelou a sua mão à de Leonor Beleza, que ficou com cara de quem não sabia onde se meter. Mas se o que fez Montenegro recusar debates foi medo ou desprezo ou calculismo, é sintomático que fosse de duas mulheres (Mariana Mortágua e Inês Sousa Real) e de um homem (Rui Tavares) que se fez substituir por uma mulher (Isabel Mendes Lopes) que “O Luís” tenha tido medo ou desprezado ou sido calculista. Preparar um debate dá muito trabalho e ou Montenegro se poupou para vencer os debates que lhe interessam (os dois que faltam), ou os eleitores verão no seu possível cálculo uma possível covardia.
Em Barcelos não há só galos polícromos, há um riquíssimo Figurado - e há um Bestiário de santos e diabos, com chifres e a língua de fora, de sátiras e fantasmagorias, e de bestas antigas a que o povo chama o medonhento. Rosa Ramalho, a sua maior a mais misteriosa artífice, surrealista fascinante, dizia que Deus fez o homem de Figurado para melhor ele se ver e se entender.
Talvez sim. Talvez esses misteriosos bichos bravos rodeiem de temores os que perseguem o poder. “O Luís”, talismã Galo de Barcelos, quer ganhar o país como um suspeito ganhou a Madeira, e quer bater todos sem debater com todos. Nem trinta minutos teve para o BE, o PAN e o Livre. Talvez trinta minutos fosse de mais. Ou talvez não fosse só propaganda, fosse superstição das coisas invisíveis. Rosa Ramalho, a bonecreira, não sabia ler nem escrever, mas sabia antever descargas invisíveis e até desmandos em trinta minutos: “Se eu me rachar agora ao meio, passa meia hora e já não entendo a minha metade”.
Referências:
- saiba mais sobre o Figurado de Barcelos por exemplo nesta publicação do Município da Barcelos;
- leia mais sobre a história incrível de Rosa Ramalho por exemplo aqui;
- consulte como António Ferro, mestre de propaganda do Estado Novo, “inventou” o Galo de Barcelos aqui;
- e não perca a excelente reportagem de Raquel Matos Cruz “Galos, Santos, Bonecos e Bestas” aqui.
Imagem no topo feita através de ferramenta de Inteligência Artificial.
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