Mortágua é uma mulher na "machosfera", mas não é uma atriz, como a sua antecessora. Não adoça a fúria, não disfarça o olhar fulminante, argumenta até ao fim, mesmo que seja para perder votos. Odeia o TikTok apesar de falar para essa geração. Durante anos foi a princesa herdeira, mas agora precisou chamar os pais fundadores. As expetativas altas nunca ajudam
Quase no fim do debate das rádios entre os oito líderes de partidos com assento parlamentar, houve uma altercação entre André Ventura e Mariana Mortágua. O líder do Chega defendia a necessidade de Portugal aumentar o investimento em Defesa, e acusava de “irresponsabilidade” os representantes do PAN, do PCP e do BE. “Nós temos uma ameaça no Leste, o presidente russo não está armado com cravos nem com livros. Está armado, mesmo armado!” “São os seus aliados!”, ouve-se Mariana Mortágua a retorquir. “Esta conversa de que a Europa devia era deixar as armas e pegar em cravos, eu gostava de ver quando… se formos atacados, espero que não aconteça, gostava que se nos invadissem a Mariana Mortágua e o Paulo Raimundo pegassem em cravos e fossem para a linha da frente defender-nos”, conseguiu Ventura acabar de dizer, com ar de pregador televisivo. Paulo Raimundo nem reagiu ao “nheca-nheca”. Mas Mortágua não se conteve e respondeu por cima do fundador do Chega : “Putin não precisa de invadir… basta que Le Pen ganhe as eleições... Se os seus amigos ganharem as eleições na Europa, Putin está dentro da Europa. A desinformação que o Chega promove é a mesma do Putin. O perigo são os seus amigos da extrema-direita aliados do Putin... Esses estão a invadir a Europa por dentro.” As últimas palavras foram disparadas de rajada, com som e fúria.
Felizmente era só um debate na rádio. Porque, se é verdade que é preciso ouvir várias vezes, e com muita atenção, para se perceber o que ambos dizem, por outro lado, vendo o registo vídeo, muitas vezes com o ecrã dividido ao meio, vê-se a raiva que toma conta da líder bloquista. O braço direito esticado, o indicador a apontar para Ventura, o olhar a fulminá-lo. É aquele momento em que se percebe a utilidade de ser gamer e jogar "Call of Duty". Tivesse aquela interação decorrido no universo paralelo de um videojogo com armas em vez de cravos, e a líder do BE deixaria um banho de sangue atrás de si.
Para o bem e para o mal, Mariana Mortágua não é Catarina Martins. Para o mal, porque aparece pior nas sondagens. Para o bem… veremos. Mariana não é uma atriz treinada, com absoluto controlo das expressões faciais, do tom de voz, da intensidade do olhar. Não é uma mulher de meia idade, baixinha, casada com um homem, mãe de duas filhas, olho azul e entoação capazes de gerar empatia mesmo com quem pensa diferente. Mariana funciona mais no registo bulldozer: jovem, fit, mais alta, sempre de ténis, mangas do blazer arregaçadas, casada com uma mulher, de estrutura facial vincada, capaz de levar tudo à frente com racionalidade e fulgor. É apaixonada pelas políticas que defende, com unhas, e dentes, e cérebro e mãos que gesticulam muito, como se as palavras não chegassem para dizer tudo o que precisa.
Tem mestrado e doutoramento em economia, e um pós-doutoramento em gestão fiscal, e é professora auxiliar no ISCTE. Traz as causas de esquerda no ADN (é filha de Camilo Mortágua), tem preparação, tem anos de experiência parlamentar e muitas horas a enfrentar oponentes de toda a espécie em debates, comissões de inquérito ou programas de televisão. É mediática, tem notoriedade, foi politicamente apadrinhada por Francisco Louçã (com quem é coautora de livros) e sempre foi uma espécie de princesa herdeira do BE, à espera da hora certa de chegar à liderança.
E eis que, feita líder, em 2023, se mostra aquém daquilo a que os economistas chamam o “PIB potencial”. A acreditar no que dizem praticamente todas as sondagens – as boas, as más e as assim-assim – não só não há perspectivas de o BE crescer à medida do “PIB potencial” da sua líder, como tudo indica que poderá entrar em recessão eleitoral, perdendo votos e lugares na Assembleia da República. No ano passado, nas primeiras eleições em que liderou o BE, Mariana manteve os cinco deputados que herdara de Catarina Martins, e desceu ligeiramente o peso percentual do Bloco (ficou em 4,36%), apesar de ter conquistado quase mais 40 mil votos (a abstenção baixou bastante nesse ano, o que explica esta aparente contradição).
Agora, as sondagens colocam o BE em torno, ou abaixo, dos 3% (o último valor do agregador de sondagens da Renascença indica 2,8%). A chamada dos fundadores do partido para encabeçarem listas em distritos estratégicos (Francisco Louçã em Braga, Fernando Rosas em Leiria, e Luís Fazenda em Aveiro) foi justamente lida como um toque a rebate, num esforço coletivo para evitar um naufrágio. Catarina Martins, também chamada para as europeias, manteve o partido acima dos 4% (4,26%).
Atualmente, tudo indica que a conhecida, mediática, preparada e predestinada Mariana Mortágua não estará à altura da expectativa que sempre a rodeou. É o problema das expectativas altas… Mesmo nos debates televisivos, quando se fez representar pela irmã (em resposta a Montenegro, que desgraduou a representação, mandando Nuno Melo), Joana Mortágua deu tão bem conta do recado que fez melhor do que Mariana nalguns “painéis de avaliação” das TV.
Se as sondagens estiverem corretas e o BE estiver mesmo a ombro a ombro com o PCP para fugir ao lugar de lanterna vermelha da esquerda, porque é que Mariana não resulta?
Ontem, a coordenadora bloquista foi à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova fazer campanha eleitoral. De certa forma, jogava em casa (quando eu frequentei essa faculdade, há umas décadas, era a única no país com uma Associação de Estudantes do PSR). Depois de fazer as necessárias declarações à comunicação social sobre a ordem do dia, circulou entre os alunos (“Ai, eu não estou preparada para conhecer”, dizia uma aluna), tirou fotos (“Mariana, está aqui uma fã tua!”), espalhou charme (“Sabes o que ela é? Uma pop star!”, sentenciava outra), e sentou-se na esplanada da FCSH (uma instituição dentro da instituição) para conversar.
Vendeu o seu peixe sobre políticas de habitação e sobre alojamento para estudantes, e respondeu a tudo o que lhe quiseram perguntar. Sempre com um pé a bater, como quem está impaciente ou nervoso, mas sem pressa nenhuma de ir embora, ao ponto de fazer desesperar o staff de campanha.
Quando lhe perguntaram sobre a presença do BE nas redes sociais, com vídeos como este, questionando se esta não será uma abordagem “um bocadinho infantilizada”, Mariana foi de uma sinceridade desarmante, ainda mais tendo em conta que falava para a geração TikTok: “Sim, as redes sociais são infantilizantes, é reduzir tudo a segundos. Ninguém me deixa dizer o que eu penso sobre redes sociais, porque a minha posição não é muito popular. Por mim, não tinha. Imediatizaram a nossa forma de pensar, acabaram com a nossa concentração, impossibilitam raciocínios complexos, argumentos longos, tornam tudo um espetáculo, e obrigam-nos todos a ser produtores de conteúdos e dizer as coisas para criar impacto. Quem quiser ter sucesso, tem de provocar. Ora, não há discussão possível se o sucesso implica provocar.”
Quando um ativista da Climáximo lhe perguntou por que razão o BE não assume no seu programa o “fim dos combustíveis fósseis até 2030”, Mariana explicou, com toda a paciência e racionalidade, que essa seria uma promessa impossível de cumprir e, por isso, demagógica. É preciso um plano de transição energética – e o BE tem o seu, “um modelo económico diferente, que não deixa as pessoas sem emprego, sem chão, porque é para elas que queremos proteger o ambiente” – e é preciso tempo. “Fim ao fóssil até 2030 é o mesmo que vocês me perguntarem: comprometes-te a acabar com o capitalismo até 2030? Eu vou fazer o meu melhor! Estamos na luta”. Há risos na plateia ao sol.
Mas a resposta não convenceu os interpelantes. A discussão continuou depois, numa roda, já sem microfones. E aí, Mariana disse o que pensava sobre “ações espetaculares” como cobrir o líder da IL de tinta verde. “Vocês escolhem sabotar campanhas eleitorais. É um favor que fazem ao Montenegro quando lhe atiram tinta para cima. Fala-se das bolas de tinta e não se fala do clima. E depois tratam o Montenegro e o Rui Rocha como tratam o BE. É injusto. Porque é que atacaram a sede do BE e não a do Chega? Vocês estão errados e assim não vão conseguir aliados. O que vocês querem é que eu escreva no programa do BE fim ao fóssil até 2030? Isso chega-vos? Nós temos um programa de transição climática. O que vocês querem não é nada.”
Não é provável que Mariana tenha sacado algum voto nessa discussão. Talvez se tenha saído melhor na conversa sobre habitação e a saraivada de ataques de que é alvo sempre que apresenta propostas já testadas e bem sucedidas noutros países. “A grande diferença do Bloco para outros partidos é que temos coragem de dizer coisas que pouca gente diz, e dizemos que não é possível resolver problemas sem assumir conflitos”. Mariana gosta é assim: assumir conflitos, o boi pelos cornos, mas com argumentos longos e explicações complexas. Não é mesmo feita para o TikTok.
Pode argumentar-se que o facto de ser mulher também não ajuda, A história das mulheres líderes partidárias em Portugal não é exatamente animadora para o género. Manuela Ferreira Leite teve um resultado historicamente baixo para o PSD. Assunção Cristas prometia muito (empolada pelo bom resultado autárquico em Lisboa), mas deixou o CDS em maus lençóis (tão maus que lhe sucedeu o inesquecível Chicão). Inês Sousa Real luta pela sobrevivência do PAN. Catarina Martins é a (relativa) excepção que confirma a regra.
Mas, se muito subiu, muito caiu. Ultrapassou os 10% em 2015, o ano em que toda a esquerda subiu, e pouco caiu em 2019, apesar do mito de que a geringonça teve um grande custo para os parceiros juniores. O custo veio depois, quando o BE, seguido pelo PCP, rompeu com o PS de Costa e o deitou abaixo. Catarina nunca recuperou dos custos desse divórcio, e foi esse partido ferido que Mortágua recebeu. Incluindo um presente envenenado: o processo de despedimento de quatro funcionárias mães recentes, após a debacle eleitoral de 2022 – Mariana não era líder nessa altura, mas fazia parte da direção. A contradição entre o discurso de defesa das mulheres e a ação do partido que despede funcionárias que acabaram de ser mães deixa uma mancha que não cai.
Ou seja, também o argumento de ser mulher não convence como explicação para o eventual insucesso de Mariana como líder, embora hoje o mundo tenha menos vergonha de se mostrar machista e misógino. Ainda ontem o Observador tinha um artigo sobre a “machosfera”, a irmandade global de masculinidade tóxica “onde a misoginia e a violência contra as mulheres é espetacularizada”. No tempo de Catarina havia um comedimento que se perdeu. Mariana já não recebe esse comedimento - pelo contrário, sendo uma mulher lésbica casada, torna-se um íman de ódios. E também já não é olhada com a indulgência da novidade. É só outra mulher à frente do Bloco.
Não foi só na atitude face às mulheres que o mundo mudou. Se a esquerda abraçou as causas do chamado “wokismo”, Mariana é o rosto dessa palavra que provoca urticária entre os conservadores. E, note-se, os conservadores são mais, muito mais, do que eram. O eixo do mundo deslocou-se para a direita. A líder do BE, como o do PCP ou o do PS (Rui Tavares parece escapar a isso, o que é um outro assunto), estão a levar em cheio na cara com uma vaga direitista, conservadora, demagógica, xenófoba, securitária, anti-liberal, que varre o mundo todo, surfada por Donald Trump e variados aprendizes de feiticeiro.
Mariana só conhece uma forma de contrariar essa vaga: arregaçar as mangas e ir à luta, “Aviso-te, a vida é dura / Põe-te em guarda. / Cerra os dois punhos e andou. / Põe-te em guarda.” Com argumentos longos, raciocínios complexos (e outros que nem tanto: taxar os ricos!), como mulher forte, empoderada e dura. Há quem diga no BE que ela é a líder certa no tempo errado. Se for assim, é a líder errada.