Seguro sente-se “uma pessoa abençoada”. Venha connosco ao centro geodésico da política portuguesa
Há uma canção para tudo na vida, e também há uma canção para o assunto que aqui nos traz. “O que é que você vai fazer nesse domingo à tarde?”, é a pergunta que Nelson Ned fazia num dos seus inesquecíveis boleros, “brega” como só alguma música romântica brasileira consegue ser. “Quem não é brega quando fala de amor? É o amor que é brega, não a minha música”, diria Nelson Ned muitos anos depois deste e de dezenas de outros sucessos que lhe projetaram o nome no Brasil, por toda a América Latina, nos Estados Unidos e também em Portugal. Hoje, continua a ser o único anão que conseguiu ter casa cheia para o ovacionar em salas tão distintas como o Canecão, o Carnegie Hall e o Madison Square Garden. Os brasileiros que compravam bilhetes para os seus shows já sabiam que ouviriam uma voz enorme projetada por um corpo pequeno (as fontes divergem: há quem lhe atribua 90cm de altura e que lhe dê 1,11m), mas os americanos eram quase sempre surpreendidos quando viam chegar ao palco um galã com um laço quase do tamanho da sua cabeça.
Vem tudo isto a propósito das candidaturas presidenciais. E não, não é sobre Marques Mendes. À pergunta “o que é que você vai fazer nesse domingo à tarde?”, António José Seguro responde: vou apresentar a minha candidatura a Presidente da República. Será no Centro Cultural das Caldas da Rainha, uma escolha aparentemente estranha, mas justificada com convicção por Seguro, em entrevista ao João Póvoa Marinheiro: “É a cidade onde eu vivo, onde eduquei os meus filhos, uma cidade de enorme cultura, e a cultura é muito importante.”
Frases como “a cultura é muito importante” pode parecer o tipo de declaração chapa-cinco, que qualquer candidato a qualquer coisa diz em qualquer circunstância, mas desde que o atual Governo juntou no mesmo ministério Cultura, Juventude e Desporto, afirmar que “a cultura é muito importante” deixou de ser uma frase oca para ser um corajoso statement. Bem-haja, Tozé, por isso.
Não leve a mal a informalidade, Exmo. leitor. Há várias gerações, incluindo a minha, para quem o António José Seguro não existe. Existe o Tozé Seguro. Ou, simplesmente, o Tozé. Conheci o Tozé quando o Tozé, não sendo já assim tão jovem, ainda insistia em ser o Tozé (“Chamem-me Tozé” era uma das suas frases de assinatura) e usava palavras como “fixe”. Era líder da JS apesar de, já então, ter um espírito velho, um sorriso de velho e um sobrolho de velho. Tinha, já nos finais dos anos 80, princípios dos 90, quando chegou à liderança da “jota”, fama de ser o “jovem velho”. Mas, por força de querer parecer jovem, fazia coisas que o podiam fazer parecer jovem.
Uma vez, em plena campanha para as legislativas de 1991, era Jorge Sampaio o líder do PS, a JS do jovem Tozé desatou a distribuir preservativos em ações de campanha, porque vivíamos os anos da SIDA, a educação sexual ainda era uma coisa demasiado ousada, e a rapaziada resistia a essas modernices de enfiar um carapuço, salvo seja, antes de consumar o ato. Tozé achou, e bem, que era importante dar acesso aos preservativos, divulgá-los enquanto método de prevenção de contágio por HIV e, ao mesmo tempo, método contraceptivo.
Uma ideia disruptiva e até “fixe”, não fosse o caso de Tozé, himself, ter sabotado o seu próprio esforço de parecer “práfrentex” (outra expressão que se usava na época e que… esqueça, não há explicação que chegue…). Numa entrevista a O Independente, Tozé admitiu que preservativos não eram coisa para ele. “Usei uma vez, mas devo confessar que detestei e, por isso, pus de parte”. Por essas e por outras, esse texto de O Independente, uma página inteira dedicada ao Tozé, tinha como título “Preservativo Mental”.
O Tozé cresceu, deixou de ser líder da jota, subiu aos séniores, tornou-se uma peça-chave do guterrismo, chegou a secretário de Estado, depois a ministro, e depois disse que estava cansado e precisava de descansar – Guterres fez-lhe a vontade e mandou-o para um spa em Bruxelas chamado Parlamento Europeu. Depois, recambiou-se de volta para Portugal, porque o seu governo se estava a esfrangalhar e precisava do Tozé-ministro. Quando o guterrismo se afundou no seu próprio pântano, ninguém levava o Tozé a sério para a sucessão, por isso Ferro Rodrigues foi o senhor que se seguiu e, depois dele, José Sócrates. Só quando Sócrates caiu de podre, de demagogia barata e de bancarrota nacional é que chegou a vez de António José Seguro ter “o seu lugar ao sol” (não por acaso, escolhi o título de uma música dos Delfins).
Foi, digamos por facilidade, sol de pouca dura. Seguro até venceu umas eleições europeias, mas António Costa, a sua némesis desde tempos imemoriais, achou que era uma vitória “poucochinha”. Seguro, que nunca tinha conseguido convencer boa parte do partido sobre as suas capacidades de liderança, foi defenestrado pelo PS à primeira oportunidade.
É estranho, por isso, que venha agora apresentar-se como candidato à Presidência da República para fazer, diz ele, “aquilo de que mais gosto, que é promover consensos, criar condições de conciliação”. Se nem o seu partido conseguiu conciliar, e se ainda hoje boa parte do partido sente encarquilhar-se as unhas dos pés ao ouvir a sua voz, como irá Seguro conciliar e consensualizar o que quer que seja? Parece que, no fim de semana antes de tomar a sua ponderosa decisão, Seguro teve uma epifania: “Falei com amigos, encontrei pessoas na rua, e senti que há um dever da minha parte” – o dever de se candidatar à chefia do Estado. Como canta o B Fachada: “Tozé fica deitado, não sejas pau mandado / Tu espera um bom bocado pra fazer o tal recado.” Lá está: a cultura é uma coisa importante.
Aqui chegados, Seguro sente-se “uma pessoa abençoada”. Não no comprimento de onda de André Ventura, que teve Nossa Senhora a falar com ele, mas numa dimensão mais terrena, envolvendo telefonemas e sms. “Quando há milhares de cidadãos, mesmo que fossem só centenas (…), que reconhecem que eu tenho características para servir o meu país no mais alto cargo da nação, eu não posso desiludir essas pessoas.”
Mas há bençãos e bençãos e a de Seguro claramente é das mais fraquinhas. Só isso explica que logo o seu primeiro plano para a candidatura tenha ido por água abaixo por razões da Natureza. Tozé explicou que queria apresentar a sua candidatura no centro geodésico de Portugal. Bem sei que é difícil de acreditar, mas não estou cá para enganar ninguém e como há gravação, podem confirmar aqui.
O centro geodésico de Portugal marca o ponto exato do centro do território de Portugal continental. Fica na Serra da Melriça, concelho de Vila de Rei, a uma altitude de 592m, e tem um marco padrão sem graça nenhuma onde há gente que insiste em fazer fotos para o Instagram, só porque sim. Para Seguro, era importante que a apresentação da sua candidatura fosse ali, porque o Seguro-candidato-presidencial não é o Seguro-de-esquerda, mas um Seguro-renovado-de-centro. “Eu quero fazer [a apresentação] no Centro [do país]. Para mim é muito importante esse simbolismo. Tentei fazer no centro geodésico, ou seja, no centro do centro em Portugal, porque é um elemento de união dos portugueses que vêm da esquerda, da direita, que vêm do centro, os do norte, os do sul, os do litoral e do interior, os da Madeira e dos Açores, a nossa diáspora.”
Algumas notas sobre esta atração pelo “centro do centro”. Nem Mário Soares, nos tempos em que trancou o socialismo à chave numa gaveta, deixou de se assumir como de esquerda e do “socialismo democrático”. Nem António Guterres, no auge do seu centramento inspirado pela Terceira Via, deixou de chamar para os seus Estados Gerais algumas das melhores cabeças da esquerda inorgânica, para além de ter absorvido no partido uma boa parte dos desiludidos do PCP que formaram a Plataforma de Esquerda. Nem José Luís Carneiro, que como Guterres fez muito da sua “formação cívica e política (...) em movimentos católicos de juventude inspirados na doutrina social da Igreja”, como assinalou o Público num texto recente, deixou de reafirmar no sábado, na apresentação da sua candidatura a secretário-geral, o lugar do PS como “o grande partido da esquerda democrática” e “líder do espaço progressista”. Mais ou menos à esquerda, o PS sempre foi de centro-esquerda; nunca foi de centro. Talvez Seguro, no seu amor pelo “centro do centro” tenha passado anos no partido errado, e talvez isso explique o desamor que tantos lhe dedicaram, e continuam a dedicar, nesse partido.
Infelizmente, “não há condições logísticas para que isso pudesse acontecer, nem condições climatéricas”, informou Seguro, sobre o seu sonho do centro geodésico. Abençoado, ma non troppo. Mas, antes de desistir desse sonho, se conformar com facilitismos, e rumar às Caldas, talvez Seguro pudesse ter mostrado mais ambição. Antes de mais, se queria mesmo estar no centro de todo o Portugal, incluindo Madeira e Açores, Tozé deveria ter-se feito ao mar e optado por um ponto que fica algures no meio do Oceano Atlântico. Eu sou madeirense e levo estas coisas a sério. Talvez o Almirante o pudesse ter ajudado nessa tarefa, porque o Almirante diz que está cá para ajudar.
Dirá o leitor: que disparate. Concedo. Fiquemos, então, pelo retângulo (como nós, nas ilhas, referimos o território continental). Mas não há uma terra perto do centro geodésico que pudesse cumprir a função por aproximação? Vila de Rei? Demasiado monárquico… Mação? Demasiado aumentativo… Sertã? Demasiado culinário… Picha? Demasiado explícito. Seguro precisa de um palco onde um discurso duro não pareça exibicionismo e um discurso mole consiga, ainda assim, penetrar no eleitorado. Talvez Caldas da Rainha, a terra de Bordalo, que tanto fazia couves-travessa como frades travessos, seja a escolha certa para quem quer estar no centro do centro, de bem com todos. E, convenhamos, antes o Tozé das Caldas do que o Tozé da Picha. A bem da unidade e da Pátria.