O protagonista de hoje do Bestiário é o campeão das fotos de joelhos nas redes sociais. André Ventura não perde uma oportunidade de mostrar quão católico é, apesar das afirmações pouco católicas que produz. Por isso atacava o Papa Francisco: porque em vez da misericórdia e inclusão, prega a divisão e o ódio. Ontem tentou disfarçar, mas não enganou ninguém
Diz a literatura sobre o assunto que André Ventura descobriu o seu catolicismo tardiamente, mas de forma intensa. Contra a família, que não o havia educado como católico, quis ir para o Seminário Menor de Penafirme, onde fez o 12º ano e aparentemente esperava êxtases místicos, experiências alheias a este mundo e algum tipo de transformação. Como muitas vezes lhe acontece na vida, Ventura estava mal informado, atuou baseado em preconceitos infundados, mas marrou na sua mesmo quando o tentavam iluminar e moderar o sentido. Com Ventura, mesmo esse André pós-adolescente, discreto e sem brilho, aparentemente tão diferente do atual, tudo tinha de ser radical, excessivo. Menos do que isso não valia a pena. Desistiu do seminário, pois, como tantas vezes, a realidade não batia certo com a sua fantasia.
“Eu entrei para o seminário com a ideia de que ia viver num convento, num sítio fora do mundo, e encontrei pessoas que estavam neste mundo. Eu vinha com uma ideia mais espiritual da coisa”, confessou ao podcast “Entre Deus e o Diabo”, do jornalista Vítor Matos, também autor de um livro sobre o líder do Chega. “Pensei que ia ter uma espiritualidade quase fora do mundo” – eram fake news e André não sabia.
“Talvez o meu choque maior de personalidade depois dos 14 anos tenha sido a saída do seminário e a ida para São Nicolau”, contou Ventura, referindo-se à residência da paróquia de São Nicolau, na Baixa de Lisboa, onde o jovem seminarista iludido encontrou um mentor à altura das suas fantasias e radicalismo: o Padre Mário Rui Pedras, conhecido pelas suas posições ultra-conservadoras, que celebra missas tridentinas em latim, seguindo o rito pré-Concílio Vaticano II, como se a Igreja e o mundo nunca tivessem saída da Idade Média. O Padre Mário, pároco de São Nicolau, tornou-se confessor e guia espiritual de Ventura – “Foi o padre que mais me marcou até hoje”. Em 2023, foi afastado de funções por denúncias de abusos sexuais sobre menores.
Ventura saiu do seminário mas confessa que “o seminário não saiu de mim”. Tornou-se estudante universitário de Direito, mas vivia numa comunidade “com ritos religiosos, com orações, com uma vida religiosa permanente”. Frequentou as missas em latim, mas “não fiquei cliente regular”, embora compreenda quem o faça, neste mundo de “espiritualidade degradada”.
Em vez de missas em latim com o celebrante de costas para a comunidade, André preferia desempenhos mais carnais. Literalmente. “Na altura impunha castigos físicos a mim próprio. Tenho noção da dimensão diferente com que eu vivia a religião. Castigos físicos com materiais religiosos como o silício ou outros, que cheguei a usar, como viria a usar quando estava na universidade.” Radical, sempre radical. E mal informado, à procura da ascese ou do nirvana instantâneos, na facilidade com que se esfola a carne.
Não sabemos se Ventura já ultrapassou a fase dos silícios, nem serve esta coluna para julgar os prazeres lúdicos de terceiros, mas apenas referi-los na medida em que se cruzam com uma dimensão política. O ponto é que André Ventura concita em si diversos sintomas de uma religiosidade muito conveniente e pouco saudável, seja no gosto por torturar as carnes, na tendência para se fazer fotografar e publicar essas fotografias em redes sociais de cada vez que se ajoelha perante um altar, ou nos delírios místicos em que cai quando se imagina cavaleiro de Nossa Senhora de Fátima, ungido da missão divina de ganhar as eleições chefiando um partido racista, xenófobo e promotor de ódio. Se Nossa Senhora de Fátima se quisesse meter nessas coisas das eleições portuguesas, de certeza arranjaria um quarto pastorinho mais apresentável – digo eu, que não sou crente mas acredito na inteligência das supostas entidades místicas, no caso de existirem.
Dá-se o caso, para mais, de este auto-proclamado pastorinho não disfarçar o seu desdém pelo que era, até ontem, o pastor do rebanho de Cristo. Quer dizer: disfarçar, até tentou, mas de forma atabalhoada e já tarde demais, chorando online lágrimas de crocodilo pela morte do Papa Francisco. Ventura, que disse de Francisco o que Maomé não disse do toucinho, veio afetar um tom compungido para lamentar a morte de um Papa que representava tudo o que Ventura combate; sendo Ventura – sem o querer laudar – é muito daquilo que Bergoglio mais lastimava na Igreja.
Foi impossível não pensar em Ventura, na sua beatice de pechisbeque e na sua genuflexão de ocasião, quando Pedro Nuno Santos, numa declaração curta, sóbria e direta ao assunto, citou uma frase de Francisco: “Pior do que ser ateu é ir à missa todos os dias e alimentar o ódio.” É claro que não era em Ventura que Francisco estava a pensar quando disse esta frase, embora lhe vista na perfeição – infelizmente, o nosso André não tem qualquer excepcionalidade no cinismo oportunista e trafulha com que exibe a sua religião. É só mais um, entre tantos, que debita Pai Nossos enquanto atropela o Evangelho; que suspira hosanas enquanto prega crueldade.
Há uma parte da Igreja que resistia com todas as forças à mensagem de inclusão, amor, acolhimento e misericórdia que durante doze anos Francisco quis alargar a “todos, todos, todos”. Uma Igreja que insistia em fechar-se, em afastar, em mostrar-se indiferente perante os excluídos, os marginalizados, os deixados para trás, os diferentes. Que ninguém tenha ilusões: Ventura, o auto-proclamado 4⁰ pastorinho, inclui-se nessa parte da Igreja que resistiu ativamente às evidências mais esclarecidas que Francisco pregava.
A mensagem de humanidade, de acolhimento, de proximidade, de abraço às periferias, aos indefesos e aos marginalizados, “todos, todos, todos”, não era um pormenor no pensamento de Francisco. Era a essência. Sim, era política, porque são estas as questões que hoje separam águas na vida em comunidade e Francisco soube ler o mundo, teve sentido de oportunidade e usou as palavras certas para denunciar o que era errado.
Quando Ventura, ontem, justificou que “nem sempre estive de acordo com o Papa Francisco”, reduzindo as divergências a “matérias civilizacionais ou até em matérias de natureza política”, tentou fingir que só discordavam nas vírgulas. Não. Ventura discordava de Francisco na essência da sua mensagem e do seu Pontificado. Por isso o acusou em 2020 de prestar “um mau serviço ao cristianismo”, acusando-o de se colar à esquerda revolucionária, marxista e woke.
A recusa de Ventura em ouvir em direto e ao vivo à palavra de Francisco quando este esteve em Lisboa nas Jornadas Mundiais da Juventude selou esse divórcio entre o apóstolo do amor e o profeta do ódio. A coisa correu mal a Ventura, que viu tutti-quanti ao lado do Santo Padre, debicando um bocadinho da sua popularidade, enquanto ele, por birra, se autoexcluia do barulho das luzes. Por isso lhe caiu em cima um arrependimento de conveniência, confessado numa “carta ao Papa Francisco” que na verdade foi mandada para o Correio da Manhã, e não para o Vaticano. Até no arrependimento Ventura era charlatão.
Agora, volta a sê-lo, no lamento que afivela mas não lhe assenta. Porque o “todos, todos, todos” não é para todos. No caso de radicais como Ventura, “todos todos todos” é gente a mais.
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Imagem no topo feita através de ferramenta de Inteligência Artificial.