A intelectual que queria "comer o mundo”. Como Susan Sontag nos inspira “a ser menos ignorantes e conformados"

22 mai 2022, 22:00
Susan Sontag em 1972 (Foto de Jean-Regis Rouston/Roger Viollet via Getty Images)

ENTREVISTA. Benjamim Moser, o premiado autor de "Sontag: Vida e Obra", fala daquela que foi talvez a “mais fascinante mulher do século XX”. Explica o seu próprio processo de investigação, de como Susan Sontag é ainda hoje uma inspiração – e de como Clarice Lispector mudou a sua vida

A 17 de agosto de 1993, pouco mais de um ano depois do início da guerra na Bósnia, Susan Sontag estreou, num abrigo sem eletricidade em Sarajevo, uma encenação de "À Espera de Godot", de Samuel Becket. Tinha 60 anos, estava no meio de uma guerra e não queria ser apenas uma turista, não queria só ficar a ver. A arte foi a sua maneira de intervir. "As pessoas riram-se dela", recorda o escritor Benjamin Moser: "Não entenderam porque é que aquela 'velha louca' estava a fazer aquilo - as pessoas acham que a guerra se ganha com armas, mas Susan dizia que não só."

A cidade continuava a ser bombardeada e Sontag pôs de facto a vida em risco para montar uma peça e mostrar que a cultura não é só "simbólica", que podia fazer a diferença na vida das pessoas, como fez na vida de todos aqueles que estiveram envolvidos no projeto, e que podia fazer a diferença também no mundo, pondo Sarajevo nas páginas dos jornais e das revistas do outro lado do Atlântico. "A cultura é importante e Susan Sontag estava disposta, literalmente, a morrer pela cultura", diz Moser. Godot não chegaria, e Sontag sabia-o, mas isso não a travaria.

Se tivesse de escolher um só episódio na vida da escritora norte-americana Susan Sontag (1933-2004) para ilustrar quem foi esta mulher, Benjamin Moser escolheria este. O autor da monumental biografia "Sontag: Vida e Obra", que há dois anos ganhou um prémio Pulitzer e acaba de ser editada em Portugal pela Objectiva, considera que Susan Sontag "é talvez a mulher mais fascinante do século XX", "uma chave para percebermos a nossa cultura e o nosso mundo".

"É uma mulher valente e que fez muitas coisas. E que nos inspira a ser menos ignorantes e menos conformados com a nossa vida de consumismo burguês, que nos inspira a querermos ser maiores e melhores."

De visita a Portugal para o lançamento desta biografia, o escritor norte-americano Benjamin Moser, 45 anos, fala num português quase perfeito com ligeiro sotaque brasileiro. Na juventude viveu na Europa e estudou em França e, quando voltou aos Estados Unidos para frequentar a universidade, andava com imensa curiosidade em relação ao Oriente e quis aprender chinês: "Fui um fracasso completo em chinês e ao fim de duas semanas de aulas pensei: tenho de fugir disto". Só que, nessa altura, as aulas já tinham começado e o único outro idioma disponível naquele horário de aulas era o português.

"Eu não sabia nada sobre o mundo lusófono, mas como falava francês e espanhol foi muito fácil, e logo no segundo ano começámos a ler obras curtas de literatura portuguesa e brasileira. Foi lá que descobri Clarice Lispector e o português transformou-se de uma coisa que eu estava a fazer porque tinha de estudar um idioma, para passar a ser a coisa que mais me animava na faculdade - e que, na verdade, mudou a minha vida. 25 anos depois deste 'acaso', falo português todos os dias. Já estudei coisas que nunca utilizei na minha vida, como cálculo ou química, nunca fiz nada com esses conhecimentos. Mas o português colou em mim."

Clarice Lispector (1920-1977) tornou-se quase uma paixão. "Ela transformou a minha cabeça", declara. Leu a obra da escritora brasileira nascida na Ucrânia e decidiu escrever a sua biografia porque queria saber mais sobre Clarice, conhecê-la melhor e assim compreender melhor os seus textos. Foi um trabalho de cinco anos. Publicado em 2009, o livro "Porquê Este Mundo?" ganhou o National Book Award, tornou Moser conhecido e contribuiu para que o mundo se interessasse pela obra da escritora. "E aconteceu uma coisa engraçada: pelo facto de ela se ter tornado conhecida no estrangeiro, os brasileiros perceberam que conheciam mal a sua obra e começaram também a interessar-se."

Benjamin Moser começou depois a orientar a tradução das obras de Lispector para inglês. "Como eu fiz essa biografia e fiquei um pouco 'a cara' de Clarice no mundo, tinha obrigação de continuar. Acho muito bom que as pessoas leiam o meu livro, mas a biografia é uma porta para uma obra, e quase não havia Clarice em inglês, por isso essa porta abria para uma casa que não existia."

"Uma biografia é quase como um casamento"

"Uma biografia é quase como um casamento", confessa Moser. O biógrafo entra na vida de uma pessoa, mas o biografado também entra na vida do autor. "No próximo ano faz 20 anos de presença diária de Clarice na minha vida. Continuo aprendendo coisas com ela, ela trouxe-me coisas que nunca imaginei." Coisas pequenas como o facto de ter sido convidado para participar em Lisboa na apresentação de uma peça da Vista Alegre desenhada pela neta de Clarice, Mariana Valente, e inspirada no livro "A Paixão segundo G.H.". Coisas muito grandes, como ter sido convidado para ser o biógrafo oficial de Susan Sontag. O convite surgiu em 2013 através de David Rieff, filho de Susan Sontag.

"Fiz a biografia de Clarice sem contrato, fiz pela paixão e foi um sucesso muito inesperado. Depois convidaram-me para fazer a [biografia de] Susan e eu fiquei extremamente intimidado. Para nós, americanos, ela era a grande aspiração de todo o jovem que queria ser inteligente e queria entender a arte e o mundo. Tinha esse peso. Havia uma certa mitologia em volta dela que até afastava as pessoas. Eu quase disse que não porque sabia que iria dar muito trabalho." Mas, no fundo, Benjamin Moser já sabia que não conseguiria dizer 'não'.

"Achei que ia valer a pena. E valeu. Eu gosto de aprender, sou um bom estudante. E eu aprendi muito ao fazer este livro." Com tudo o que leu, com todas as pessoas com quem falou, com todos os temas que foi forçado a conhecer.

"A Susan é uma educação, uma educação completa."

 

"Claro" que Moser conhecia Susan Sontag mas não muito. Tinha lido mas "só algumas coisas, basicamente aquilo que todo o mundo leu. No início, eu sabia duas coisas: Susan é Susan Sontag, a figura internacional, aquele ícone; e Susan é também a pessoa Susan Sontag. Sobre a figura pública eu sabia algumas coisas e sabia que não havia outra igual, e hoje ainda não há, nunca ninguém a substituiu. Sobre a pessoa não sabia quase nada."

Em ambas as biografias, Moser começou por ler a obra completa das autoras. Foi na obra que que começou por encontrá-las e foi à obra que foi voltando, sempre, ao longo do processo. "Eu vou anotando todos os nomes, por exemplo quando o livro é dedicado a alguém ou tem um agradecimento, todos os locais, todas as referências", explica. Só depois é que passou para as entrevistas e outras declarações de Sontag; e, por fim, para aquilo que sobre ela foi dito ou escrito. Mas o objetivo era, sobretudo, procurar as fontes originais. Falar com quem a conheceu. Estar nos sítios onde ela esteve. Tentar ver o mundo através da sua moldura (para usar uma expressão que Sontag também usava).

Moser admite que o processo pode tornar-se algo obsessivo. Por exemplo, um dia encontrou um artigo da New Yorker que listava os 50 filmes preferidos de Susan Sontag. Era uma lista com Bresson, Pasolini, Griffith, Kubrick, Fassbinder e outros. "Eu não sou totalmente ignorante em cinema mas só tinha visto uns três desses filmes, então dei-me conta que era muito ignorante e decidi assistir a esses filmes todos", conta.

As biografias que escreve estão cheias de detalhes sobre as famílias, os locais, os acontecimentos. A vida de uma pessoa é também o seu contexto, acredita. Para escrever sobre Sontag, Moser foi ao Hawai, onde mora a irmã, foi à Bósnia-Herzegovina para falar com os atores que trabalharam com ela em 1993, viajou pelos Estados Unidos para encontrar amigos de infância, colegas de faculdade, pessoas que se cruzaram com ela ao longo da vida. "Eu vou à procura das pessoas que são incontornáveis mas também das outras, há pessoas que só a conheceram uma vez ou que aparentemente podem não ter nada para contar mas depois têm histórias fascinantes ou contam pormenores que são importantes, por isso eu estou sempre muito aberto a ouvir tudo."

Teve acesso ilimitado aos arquivos de Susan Sontag, que estão na Universidade de Los Angeles, na Califórnia, incluindo a todos os seus diários, cartas e apontamentos. "Eu tive acesso ao computador da Susan Sontag. Ela morreu em 2004, já existia Internet, mas para as pessoas da geração dela não era uma coisa muito importante. Hoje, as pessoas têm a sua vida no computador, ela não era assim. No entanto, mexendo no computador dela eu tive uma sensação de invasão de privacidade que não tive quando estava mexendo nas cartas. Não era, oficialmente, uma invasão de privacidade, porque ela autorizou que tudo fosse para aquele arquivo, ainda assim eu senti-me invasivo."

Benjamin Moser garante que nunca sentiu qualquer pressão por parte da família para dar uma determinada versão de Susan Sontag. Pagaram-lhe para ser profissional, diz. Mas o processo não foi fácil. "No final da vida da Susan, havia um 'divórcio' entre o filho da Susan e a sua companheira, [a fotógrafa] Annie Leibovitz, que passaram a odiar-se. Ao início, ninguém do lado da Annie Leibovitz falava comigo, porque achavam que eu tinha sido enviado para sujar o nome da Susan Sontag. Isso foi um obstáculo muito grande. Eu consegui superar esse obstáculo, mas para a Annie falar comigo foram precisos cinco anos e muita insistência. Mas era muito importante, eu queria ter o lado dela. Eu posso ter as minhas preferências e posso acreditar ou não nas pessoas, mas sou profissional, quero ouvir todos os lados da história. Esse é o papel do biógrafo."

A salvação através da cultura

Algo que fascinou Benjamin Moser à medida que ia conhecendo Sontag foi perceber como ela "era uma menina muito infeliz, sozinha, o pai tinha morrido, a mãe bebia e estava muito ausente. Susan veio de uma província, sem muita orientação na cultura, leu uma coleção dos clássicos da literatura, de Platão até aos modernos, com a ideia de que os livros, a cultura, a iriam salvar. E isso foi muito humano e muito inteligente da parte dela: entender que a cultura pode ser uma porta de saída".

Moser surpreendeu-se com "a ambição e a extensão da sua obra". Ela escreveu ensaios e romances, fez filmes e teatro, era uma ativista política, escreveu e falou sobre literatura e filosofia, a estética gay ("camp"), sobre filmes de ficção científica, sobre o Holocausto, a guerra do Vietname, o feminismo, sobre a sida, a queda do Muro de Berlim, a guerra no Iraque, o 11 de setembro, sobre o cancro e o medo da morte.

"Ela tinha essa vontade de fazer tudo, de ver tudo, de experimentar tudo. Tinha uma curiosidade enorme. Era imparável", diz Moser, falando de uma espécie de "cosmofagia", uma "vontade de comer o mundo". "Ela comeu o mundo em muitos sentidos, e também no sentido sexual", diz, referindo-se ao facto de Susan Sontag ter uma vida sexual muito ativa. Sontag teve parceiros homens e mulheres, foi casada durante sete anos e teve um filho, mas as suas relações mais significativas foram com mulheres.

A homossexualidade é uma parte muito importante para entender Susan Sontag. "É preciso lembrarmo-nos como era ser homossexual nos anos 40, como era ser mulher nos anos 60. Isso agora parece-nos muito distante. Mas a igreja estava contra a homossexualidade, os políticos, a sociedade, toda a gente estava contra. Podia perder-se o emprego, os filhos (como quase aconteceu com ela), a casa, podia até ser-se preso." Para que a jovem que lutou - de facto - contra a sua homossexualidade se transformasse na mulher aparentemente sem medo que dizia o que pensava foi necessário uma enorme força de vontade. Entre 1989 e 2004, a sua companheira foi Annie Leibovitz. Nesta altura, Sontag já não tinha nada a esconder.

Para Moser, era importante mostrar todos os lados de Sontag, mesmo aqueles que pudessem ser menos bons. "Como é que eu posso fazer com que ela esteja viva para as pessoas e não seja apenas uma leitura obrigatória da faculdade? Pela sua humanidade. Pelas suas fraquezas, inseguranças, mostrando todos os seus lados, ela fica mais viva."

Para o biógrafo, o exemplo dela foi muito inspirador. Moser conheceu um poeta sul-coreano, San-Ha Lee, que esteve preso em 1987 e que foi libertado em parte devido aos protestos de Susan Sontag. "Ele nunca a conheceu mas contou que pensa muitas vezes nela, e pergunta-se: estou a fazer as coisas que deveria fazer? Estou a comprometer-me com as causas certas? Porque foi isso que ela lhe ensinou."

Moser sente mais ou menos o mesmo "Foi como se ela me dissesse: não fique só escrevendo sobre alguma coisa, um escritor deve ousar e fracassar. Ela fracassou em muitas coisas, ela foi um desastre em muitas coisas. Mas quem tem sucesso 30% das vezes tem sucesso sempre. E eu aceitei esse desafio. Pela Susan, comecei a aprender o servo-croata. Não vai servir para muita coisa, mas nunca se sabe", diz, sorrindo.

Entender o mundo

Susan Sontag acreditava que "o verdadeiro intelectual não é uma pessoa afastada da sociedade, da política, da vida". Pelo contrário. "A gente precisa da orientação dos intelectuais, dos artistas, dos escritores, para entender o mundo, a Ucrânia, a internet, a pandemia, tudo o que tem a ver com a vida humana. E não é na televisão ou no Twitter que vamos encontrar essa orientação. É um processo mais lento. É preciso uma intelectualidade", explica Benjamin Moser.

"Susan Sontag foi a pessoa que deu uma bússola, que nos disse: não estamos lá mas vamos nessa direção."

"Susan dizia que um escritor é interessado em tudo. Eu fico emocionado a pensar no legado dela, quanta gente ela ajudou a engajar-se com a cultura e com a política e com a arte, não como coisas separadas, porque na vida dela todas essas coisas se juntam. Poucas pessoas têm isso."

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