«Sinto um sabor agridoce: não era desta forma que queria sair do Benfica»

12 jul, 23:59
Rodrigo Magalhães (DR)

Rodrigo Magalhães foi diretor técnico da formação do Benfica durante 20 anos e falou ao Maisfutebol no último dia no cargo

Rodrigo Magalhães foi durante 20 anos diretor-técnico da formação do Benfica. No último dia como funcionário do clube, depois de esvaziar o gabinete no Seixal e de entregar o carro na Luz, encontrou-se com o Maisfutebol no Estádio Universitário para um longa conversa.

Durante cerca de duas horas, falou de tudo e emocionou-se uma, e outra, e outra, e outra vez. A entrevista parou várias vezes, enquanto as lágrimas lhe caíam pela cara. Mas não se negou a falar de nada: do passado, das razões para a saída e de como será o futuro.

Garantiu, por exemplo, que não sai magoado com Rui Costa, mas também não sai da forma como gostava. Acha que o Benfica vai ganhar uma Youth League nos próximos dois anos e garante que Joaquim Milheiro não seria a primeira escolha dele para o substituir como diretor-técnico, embora lhe reconheça competência.

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Ainda se lembra de como é que foi o primeiro dia de trabalho no Benfica?

Lembro-me perfeitamente. Cheguei no dia 16 de julho de 2005. Passei cá o fim de semana, em casa do meu tio Lídio, no dia anterior estive a experimentar os transportes públicos, para perceber como é que teria de fazer: na altura apanhava o comboio de Paço de Arcos até ao Cais do Sodré e depois apanhava o autocarro para o Estádio da Luz. Lembro-me de ter sido recebido pelo sr. António Carraça e de ele me levar a visitar todos os departamentos do clube.

Já era uma estrutura grande nessa altura?

Pois, dito desta forma pode parecer algo de uma dimensão muito grande, mas a formação do Benfica trabalhava numa sala, onde estavam o Bruno Maruta da prospeção, o sr. António Luís do planeamento, o Luís Pedro Ribeiro e o Tiago, que eram dois jovens adolescentes a dar suporte, a Paula Francisco, a Generosa e o Alexandre Jesus. Depois, em dois gabinetes à parte, estavam o sr. Manuel Ribeiro e o sr. António Carraça. O falecido Peres Bandeira fazia scouting para a equipa A e também tinha uma mesinha neste espaço.

Do que é que nunca se esqueceu desse primeiro dia?

De tudo. Lembro-me perfeitamente de tudo, lembro-me inclusivamente do que tinha vestido: uns sapatos Rockport castanhos, umas calças cinzentas e uma camisa branca. E tinha a barba feita, claro, porque na altura trabalhávamos no Estádio da Luz, um local nobre, e por isso havia rigor com a aparência. Lembro-me dos cheiros, lembro-me das cores, lembro-me da temperatura, das sensações, lembro-me de tudo com uma clareza incrível. Era o consumar de um sonho de menino: trabalhar no Benfica

E lembra-se do que fez nesse primeiro dia? De como foi o trabalho?

Foi basicamente conhecer o Benfica. Lembro-me de entrar no carro com o sr. António Carraça e com o sr. Manuel Ribeiro, de irmos ao Monte da Galega falar com a malta da equipa B, era o João Santos o treinador. E depois, da parte da tarde, fomos aos Pupilos do Exército. Foi-me apresentado o mister Nené, a malta da rouparia e o pessoal do posto médico.

Apesar de ser uma estrutura pequena, tinha vários históricos do Benfica: Nené, António Carraça, Manuel Ribeiro, Peres Bandeira... 

Não me posso esquecer de mencionar, como é óbvio, o saudoso Jaime Graça, que é uma pessoa que me diz muito, que me apoiou em tudo, que me fez crescer e que me desafiou a pensar o futebol de forma diferente. Era uma pessoa muito à frente do seu tempo e foi fascinante.

E qual foi o dia emocionalmente mais intenso: esse primeiro ou este último?

É difícil indicar um dia, porque houve vários momentos. Pode parecer redutor, mas, por exemplo, a primeira vez que o Benfica venceu o principal rival, o Sporting, para ser campeão, foi emocionalmente muito forte. Lembro-me de um delegado nosso dar uma cambalhota dentro de campo e festejar efusivamente. Disse-me que trabalhava no Benfica há não sei quantos anos e nunca tinha vencido um campeonato. O impacto que isto teve em mim nessa altura foi algo... Pá, até me custa falar sobre isto.

[Rodrigo Magalhães começa a chorar]

Foi algo poderoso, algo...

[As lágrimas continuam a cair-lhe pelo rosto]

Peço desculpa. Falar disto... Foi algo com um impacto emocional muito grande. Foi a primeira vez que vencemos um título, e felizmente foi logo nesse primeiro ano, com os benjamins sub-11, era o Bruno Lage o treinador. Lembro-me também do impacto que foi a passagem para o Seixal. Para quem tinha uma sala pequenina no Estádio da Luz, um campo pelado nos Pupilos do Exército e andava com a casa às costas, a jogar no Fofó e no Monte da Galega, de repente ver algo com a magnitude e com a grandiosidade do Seixal foi motivador e altamente emocional. Não posso esquecer também a primeira vez que vencemos o Sporting na Academia, que era algo que parecia inatingível.

Venceram em que ano?

Foi em 2007-08, com a geração de 93 [de Ivan Cavaleiro, Tiago Silva e Martim Águas, entre outros]. Era Bruno Lage o treinador e foi muito impactante para nós. Não posso esquecer também o momento em que colocámos o primeiro jogador saído do Seixal na Liga: foi o Nélson Oliveira, quando foi emprestado ao Rio Ave, e o Centro de Estágios parou para ver a estreia dele.

Tinha o hábito de tirar uma fotografia aos jogadores quando se estreiam na equipa principal do Benfica, não era?

Sim, tinha por hábito tirar uma fotografia ao jogador a aquecer antes de entrar em campo, como aconteceu recentemente com o João Veloso e com o Hugo Félix. Depois mando a foto aos familiares ou aos próprios jogadores. Já aconteceu até tirar uma foto à televisão, quando não posso estar presente no estádio no jogo de estreia de algum jovem. Lembro-me também de sermos campeões europeus em 2016, com o Renato Sanches a ter um papel de destaque nesse momento. Lembro-me do Bernardo e do Ruben Dias a vencer a Liga dos Campeões. Lembro-me, obviamente, do Ramos e do João Neves este ano. Lembro-me de vencermos a Youth League. Lembro-me de este ano vencermos o triplete, fomos campeões nos três escalões, o que tem uma dimensão incrível. Portanto é muito difícil escolher um momento.

«A proposta do NEOM traz-me condições diferenciadas e um desafio fascinante»

E que dia foi este último dia?

Foi um dia diferente, um dia especial, em que sentimos a alma a sair do corpo quando temos de deixar o nosso gabinete, deixar o Benfica Campus, ir deixar o carro de serviço ao Estádio da Luz, precisar de boleia para vir aqui ter consigo, tudo isto começa a desligar a ficha. Começo a pensar que já não sou o diretor técnico do Benfica. Tive uma festa de despedida no Seixal, tive outra festa nos Pupilos do Exército que juntou cerca de 80 pessoas, algumas que trabalham no Benfica e outras que já não trabalham. Os últimos quatro dias têm sido sempre a receber mensagens, centenas de mensagens de pessoas que nos dizem muito.

E como é que isso o faz sentir?

Aprofunda ainda mais a dificuldade que foi tomar esta decisão. Há outra coisa que não posso esconder, a dificuldade que foi comunicar aos meus pais que ia dar este passo. E às minhas filhas, uma até me perguntou se era legal eu fazer isso, sair do Benfica. Elas já nasceram comigo no Benfica e, portanto, isso na cabeça delas não existe. A mais pequenina até me perguntou se podia continuar a ser do Benfica.

Porquê tomou esta decisão de sair?

Não posso ser hipócrita: tenho de admitir que a proposta me traz condições diferenciadas e um desafio fascinante pela frente, que é montar uma estrutura de raiz, num clube que vai ter o estádio da final do Mundial 2034. Sei que está tudo por construir e por isso vou encontrar condições muito, muito inferiores às que tenho no Benfica. Mas a oportunidade de construir uma estrutura de raiz da forma como eu penso e como eu interpreto que deve ser, é um desafio aliciante.

Até porque vai estar na cidade do futuro – NEOM -, que ainda está a ser construída e é o maior projeto da Árábia Saudita.

Sim, e vou estar envolvido num projeto de multiclubes dentro do próprio NEOM e, portanto, pode ser um ano, podem ser dois, podem ser três, podem ser mais, nestes contextos há sempre alguma volatilidade no que são os recursos humanos e a própria visão do projeto. Mas não tenho dúvida que no fim vai aumentar o meu nível de competência para um patamar superior.

Está a pensar levar recursos do Benfica que sejam da sua confiança para o NEOM?

Não. Antes da minha saída, fiz duas promessas ao presidente Rui Costa e ao próprio Benfica. A primeira é que não levaria pessoas do Benfica comigo, pelo menos no imediato, porque aí estaria a prejudicar o clube e a capacidade formativa de jovens talentos do Benfica, numa fase em que as ameaças emergentes estãoa a ganhar dimensão. A segunda promessa é que não iria estar cá fora a falar do passado e a lavar roupa suja.

Foi fácil negociar com os sauditas?

Foi muito fácil. Eles só acharam estranha uma exigência que eu fiz: pedi-lhes que tinham de pagar a criação de uma associação, que vai criar um torneio para jovens e trazer o Quim Barreiros para animar o dia. São as pessoas do Benfica que estão com essta tarefa, o Nuno Silva, que é secretário técnico da iniciação, José da Silva da logística e transportes na UEL, o Alexandre Jesus na parte administrativa, os roupeiros, enfim, várias pessoas. A ideia é criar um torneio e ter lá o Quim Barreira a atuar, para ser uma festa alegre e divertida.

«É expectável que o Benfica vença uma Youth League nos próximos dois anos»

Precisa de novos desafios?

No Benfica as infraestruturas são de excelência, os grupos multidisciplinares são fabulosos e existe um recurso humano para tudo o que possamos imaginar: nutricionistas, fisiologistas, fisioterapeutas, psicólogos, médicos, enfermeiros, delegados, team managers, diretores técnicos, secretários técnicos, não falta nada. A qualidade dos jogadores está lá, estamos a trabalhar com a nata, com os melhores jogadores nacionais e com muitos dos melhores jogadores internacionais. Aliás, posso dizer que nos próximos dois anos é expectável que o Benfica vença uma Youth League. Consegue juntar gerações de excelência e, em comparação com os restantes clubes da Europa, tem mais e melhores jogadores.

Então não é essa é uma boa razão para ficar?

Claro que me custa sair quando está um bolo tão bom para comer, e que demorou tanto tempo, tanto suor, tanto sangue e tantas lágrimas destas centenas de pessoas a fazer. Mas para sermos melhores, temos de ser humildes, temos de nos transformar, temos de nos readaptar e temos de ir beber a outros litorais.

«Era legítimo querer ser diretor do Benfica Campus, mas não me foi proposto e sinto que não seria a hora»

A saída de Pedro Mil-Homens da direção do Benfica Campus tem alguma influência nesta sua decisão?

Vou ser-lhe totalmente honesto, como sempre sou: saiu o Dr. Pedro Mil-Homens e todas as pessoas da estrutura, não só os treinadores do Benfica Campus, pensavam que seria eu ou o Bruno Maruta a ficar como responsável do Benfica Campus. Foi escolhido o Dr. Muller e, passado pouco tempo, surgiu então a possibilidade de sair para o NEOM. Naturalmente houve a associação de eu estar a sair porque queria ter o cargo de diretor da academia. Era legítimo, obviamente que era legítimo, alguém que está na casa há 20 anos, alguém que trabalha de braço dado com a prospeção, alguém que criou os Centros de Formação e Treino, alguém que criou o long-term player development, alguém que conhece todos os escalões, seria alguém com o know-how e preparado para essa função. Honestamente sentir-me-ia com essa capacidade, como o Bruno Maruta também sentiria. Não me foi proposto e se tivesse sido proposto, honestamente sinto que não seria a hora.

Porquê?

Porque acho que ainda tenho a vitalidade e a energia para pôr a máquina a funcionar. Se me sinto capacitado? Sinto. Se é algo que eu queria? Naquela altura não seria o momento certo. Se haveria alguém em Portugal para exercer essa função? Sim, eu e o Bruno Maruta. Provavelmente até mais o Bruno Maruta, que tem uma personalidade diferenciada da minha.

Já agora, que opinião tem sobre o Joaquim Milheiro, que o veio substituir como diretor-técnico?

O Joaquim Milheiro foi uma decisão tomada em conjunto dentro do clube, eu fiz parte dessa decisão, mas se a pudesse tomar sozinho, não seria a minha primeira escolha. Não tenho nada contra a personalidade e a capacidade do Joaquim Milheiro, até tenho uma excelente relação com ele. Uma relação profissional e também, não digo de amizade, mas de companheirismo, de algumas informações que fomos trocando ao longo do tempo. Reconheço que tem competência. Mas se me pergunta, devo dizer que não seria a minha primeira escolha.

E agora que está a sair: acha que vai voltar?

Eu vou voltar a Portugal. Se de facto conseguir cumprir este projeto, isso vai dar-me a liberdade para poder decidir como é que quero voltar, para onde é que quero voltar e o cargo que posso executar. Isso é uma liberdade que eu nunca tive. Sinto muita vontade das pessoas que se cruzam comigo de que a experiência lá fora seja célere. O Benfica está num período de ebulição, vêm aí eleições, e sinto muita vontade de pessoas que querem estar no Benfica de contar comigo e com a minha expertise. Mas vejo-me também, por exemplo, a trabalhar num organismo em prol do futebol nacional.

Curiosamente já esteve muito perto de sair no ano passado, mas acabou por ficar.

Sim, isso aconteceu em outubro. Tenho de ser o mais honesto possível, na altura fiquei no Benfica porque houve a saída de Pedro Mil-Homens, houve a saída do nosso treinador da equipa A e se saísse o diretor técnico do futebol de formação acho que seria um rude golpe, que iria afetar o Sport Lisboa Benfica. Por tudo o que eu dei ao Benfica e por tudo o que o Benfica também me deu, eu fiz um esforço para ficar e o Benfica fez um esforço para eu ficar. Agora surgiu uma nova proposta e o contexto é outro.

«Não saio magoado com Rui Costa, mas também não saio da forma que eu desejava»

Sai com alguma mágoa em relação a Rui Costa?

Não, não saio magoado com o Rui Costa. Longe disso, temos uma boa relação da longa data. O Rui Costa escreveu o prefácio de um livro que eu editei em coautoria com o Luís Nascimento e fez tudo o que estava ao seu alcance para me manter no clube. Obviamente também não saio magoado com o Benfica, o Benfica deu-me muito, elevou-me para outros patamares. Mas eu também dei tudo ao Benfica. Dei a minha vida ao Benfica, face ao investimento pessoal, emocional e temporal que deixei no clube. Portanto, o Benfica não me deve nada, eu também não devo nada ao Benfica. Agora, posso confidenciar-lhe que... acho que a palavra certa não é mágoa, mas acabo por não sair da forma que eu desejava.

Porquê?

Porque não houve um agradecimento ou uma menção formal do clube no fim deste ciclo. Muitas pessoas vieram despedir-se de mim, fizeram-me até duas festas num momento muito emotivo, uma no Benfica Campus e outra, não estruturada, nos Pupilos do Exército. Mas não houve nada formal do clube. Aliás, houve um momento em que se fez uma espécie de tributo às conquistas desta época na formação e o meu nome não entrou. Acho que foi uma estratégia de comunicação não muito bem conseguida. Muitas pessoas questionam-me se está tudo bem, se eu saí a bem ou se houve algum problema com a minha saída. Foi um momento único na história do clube, o meu nome não apareceu e infelizmente ainda tenho de explicar que não, que foi uma opção do clube e que está tudo bem, que eu saio muito agradecido ao Benfica.

E porque é que isso aconteceu?

Não sei. Tenho de associar isto, se calhar, ao facto de o clube ter crescido tanto. Estamos numa ótica empresarial, temos a empresa dentro do clube, mas muitas vezes é uma magnitude tão grande que o clube é que fica dentro da empresa. Para além de haver pessoas que, deduzo eu, não têm conhecimento do que é o Benfica, porque ao fim de três ou quatro anos as pessoas ainda não conseguem ter noção do que é o Benfica, do que é realmente a magnitude do Benfica. Honestamente tenho um sentimento agridoce, porque eu acho que todos os funcionários devem ser tratados de uma forma equitativa, mas eu também sinto que não fui qualquer um ao longo deste percurso de 20 anos. Quem não se sente, não é filho de boa gente. Dei sempre o melhor de mim ao Benfica e sinto que o facto de ter de justificar a terceiros esta forma de sair, é sinal de que ficou algo por dizer ou por fazer.

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