Benfica-Santa Clara, 3-0 (crónica)

David Marques , Estádio da Luz, Lisboa
27 mai 2023, 20:25

O 38 depois de anos que foram um 31

A 18 de maio de 2019, também nesta Luz contra o mesmo adversário desta tarde/noite, a estrutura parecia inquebrável. O projeto de futuro do Benfica estava mais vincado do que nunca. Ao 13.º ano, o Seixal dava, finalmente, verdadeiros frutos desportivos, com um treinador e meninos da formação a saltarem da equipa B para virarem do avesso um campeonato perdido.

Dizia-se que os encarnados estavam dez anos à frente da concorrência que, se assim fosse, nunca poderia sequer sê-lo. Que aquele ano anterior, em que o FC Porto negou o penta ao rival, fora mero acidente de percurso. Um descuido causado pelo excesso de confiança de um líder.

No ano seguinte, as águias de Lage voaram até já bem dentro da segunda metade da época. Até que deram sinais preocupantes de fragilidade. Veio uma pandemia. O futebol jogado em estádios sem alma. O Benfica a perder tudo o que havia conquistado. Os títulos. O projeto. O rumo.

Seguiu-se um arriscado investimento sem precedentes. O regresso de um messias de nome Jesus. Um presidente detido. A queda dele e a ascensão, validada em sufrágio, de outro. Muitas mudanças, mas, na prática, aquilo que verdadeiramente interessava aos adeptos na mesma. E os títulos? Nenhum desde a Supertaça no Algarve em agosto de 2019.

Até que chegou um alemão. Apaixonado por futebol. Apaixonado, por consequência, pelo Benfica, atirara sem pestanejar ainda no aeroporto.

E a águia levantou voo tanto tempo depois. Tornou-se dominadora por cá e voltou a ser gigante na Europa.

Apresentou um futebol fiável e vibrante, suportado por uma parceria improvável entre um futuro campeão do Mundo e um teenager imberbe no eixo defensivo. A bússola de Enzo a meio-campo. A fantasia de Neres, a velocidade de Rafa, o instinto de Ramos e um João Mário renascido.

O Mundial antes da metade da época fê-la perder altitude. E fez partir o jogador mais influente da equipa. Cerrou-se fileiras e improvisou-se com sucesso até o desgaste acumulado tornar impossível disfarçar que, afinal, havia fragilidades.

As últimas semanas trouxeram incerteza. Desassossego. A derrota caseira, à 27.ª jornada com o FC Porto, poderia ser apenas um acidente de percurso numa caminhada aparentemente inabalável, mas a forma como aconteceu e nova derrota em Chaves na semana seguinte mostraram que era bem mais do que isso.

Marcados por repetidas experiências traumáticas, os adeptos vacilaram. Era preciso algo diferente, dizia-se.

E entrou o miúdo Neves. João, como o outro, o Félix, que virara um campeonato do avesso quatro anos antes.

O Benfica voltou a estabilizar. Manteve distâncias para o maior rival e afastou outro da luta. Acumulou vitórias e voltou a crescer dentro de campo. O título estava à distância de uma vitória em Alvalade, mas no dérbi só se viu metade de Benfica: o da segunda parte, que ainda assim bastou para arrancar um empate.

Neste sábado, 1.470 longos dias depois, o 37 deu lugar ao 38 e ficou confirmado o fim de uma longa travessia no deserto.

Mas antes, porque entre a 27.ª e a 33.ª jornadas a vantagem de dez pontos caiu para os dois, foi necessário fazer por isso.

Em tese, o adversário era o mais acessível de todos num jogo de antípodas. O líder quase-campeão contra o lanterna-vermelha e já despromovido. Mas neste desporto chamado futebol, a lógica nem sempre prevalece.

E, no fundo, que bom que assim o é, mas na Luz ficou bem cedo vincado que o destino deste campeonato seria o mesmo de todos os outros nos quais o Benfica chegou líder à derradeira jornada.

Com três alterações no onze relativamente ao dérbi do fim de semana passado com o Sporting (Morato, Bah e Florentino), o Benfica entrou no jogo pressionante e o golo de Gonçalo Ramos aos 7 minutos foi a natural consequência do domínio territorial dos encarnados.

Não é que faltasse confiança, mas o golo serenou definitivamente a Luz e os jogadores no relvado. Confirmou, no fundo, que a festa do 38 não se transformaria num autêntico 31.

O ritmo baixou, mas os encarnados, autoritários, tiveram sempre o jogo controlado. Ainda assim, seria num momento em que o Santa Clara estava instalado no meio-campo ofensivo que se celebrou o 2-0, numa daquelas transições diabólicas iniciadas e concluídas por Rafa.

O Benfica-Santa Clara teve quase tudo o que foi o novo campeão nacional durante a época. O conservadorismo nas opções táticas do alemão. Eficácia na forma como os homens o Benfica construiu uma vantagem de dois golos com poucas ocasiões de golo. Capacidade para asfixiar o adversário e mantê-lo, quando mais importou, longe da baliza de Vlachodimos. Mas também momentos de desconcentração que estiveram na base da esperança com que o rival se alimentou até à meta. Viu-se isso a espaços na primeira parte e muito na segunda, mas aí já o Benfica construíra uma vantagem de três golos.

Por faltar em três, o último foi de Grimaldo. O lateral cumpriu o último jogo pelo Benfica e marcou de penálti. Antes de avançar para a bola, as bancadas pareciam divididas, mas quando Grimaldo beijou o símbolo a hostilidade deu lugar ao perdão que, no fundo, o espanhol merece por tudo o que deu pelo clube até ao último dia.

O betão das bancadas tremia e, por lá, via-se pouco do jogo. Mas nós, entre a visão perturbada pelos milhares aos saltos e o fumo cada vez mais intenso à flor do relvado, vimos Vlachodimos negar um par de vezes o golo aos açorianos. Também o grego teve o tributo merecido: saiu aos 88 minutos para ouvir o maior aplauso que a Luz alguma vez lhe dirigiu e para permitir que Samuel Soares também pudesse receber a medalha.

Podem soltar os foguetes. O Benfica é campeão.

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