O casal que enganou o mundo da arte e fez milhões com quadros falsificados - até ser apanhado

CNN , Oscar Holland
11 fev 2023, 16:00
O casal Beltracchi, Helene e Wolfgang. Créditos: Vera Hartmann/13 Photo/Redux

Em vez de forjar pinturas existentes, Wolfgang Beltracchi produziu centenas de obras originais que imitavam habilmente os estilos de artistas europeus falecidos, incluindo Max Ernst, Fernand Léger, Kees van Dongen e André Derain. A sua mulher, Helene, vendia-os depois como obras anteriormente não documentadas, às vezes por quantias de sete dígitos

Após décadas a pintarem falsificações, forjarem provas e apagarem diligentemente os seus rastos, um único ato de descuido revelou a farsa dos Beltracchi.

Uma das metades da dupla alemã, Wolfgang Beltracchi, tinha ficado sem o zinco que utilizava para criar tinta branca para as suas falsificações. Em vez disso, comprou um pigmento de zinco a um fabricante holandês que não lhe disse que continha titânio.

No ano seguinte, depois de uma das criações de Wolfgang - "Quadro Vermelho com Cavalos", considerada uma obra do artista expressionista Heinrich Campendonk - ter sido vendida em leilão por um valor recorde de 2,8 milhões de euros, surgiu uma inconsistência. A análise da pintura encontrou vestígios do titânio, mas a substância só havia sido usada como pigmento branco a partir da década de 1920.

A obra em questão teria sido produzida em 1914.

A descoberta desencadeou uma cadeia de acontecimentos que iria desvendar um esquema multimilionário que tinha enganado compradores e galerias de todo o mundo. As pinturas de Wolfgang chegaram a leilões e coleções particulares, incluindo a do ator Steve Martin. Os Beltracchi tinham até enganado peritos de arte - ou, como alegaram, pagaram a um deles comissões suficientemente altas para comprar o seu silêncio.

Em 2011, após mais de 30 anos de atividade, Wolfgang e Helene foram condenados a seis e quatro anos de prisão, respetivamente, embora ambos tenham sido libertados mais cedo. Foram também condenados a pagar 35 milhões de euros em indemnizações.

Uma mulher olha para a falsificação "Zwei rote Pferde in der Landschaft" ("Dois Cavalos Vermelhos na Paisagem"), que Wolfgang Beltracchi criou ao estilo do artista Heinrich Campendonk, no museu de arte Moritzburg, em Halle, Alemanha, em 2014. Crédito: Peter Endig/picture alliance/Getty Images

Em vez de forjar pinturas existentes, Wolfgang produziu centenas de obras originais que imitavam habilmente os estilos de artistas europeus falecidos, incluindo Max Ernst, Fernand Léger, Kees van Dongen e André Derain. A sua mulher, Helene, vendia-os depois como obras anteriormente não documentadas, às vezes por quantias de sete dígitos. A dupla alegou ter herdado a sua coleção de arte do avô de Helene, que disse tê-la adquirido a um galerista judeu que fugia da Alemanha de Hitler.

A história de como funcionou a operação foi exaustivamente detalhada em reportagens, num documentário e no julgamento do casal em 2011. Mas num livro recentemente publicado, a psicanalista Jeannette Fischer investiga o porquê. Através de uma série de conversas aprofundadas, acompanhadas de café e vinho no estúdio do casal na Suíça, após a sua libertação da prisão, a especialista explora os motivos do casal, os processos artísticos e as histórias de família.

O resultado é um retrato complexo e convincente de um homem (o livro centra-se principalmente em Wolfgang, a pedido da sua mulher) para quem a falsificação era uma forma de arte - e para quem o engano se tornou numa espécie de jogo. A dupla ganhou milhões de euros, mas o dinheiro foi apenas uma parte da atração, argumenta Fischer. Embora os Beltracchi vivessem confortavelmente, viajassem muito e tivessem comprado uma casa no sul de França, onde criaram os seus filhos, evitaram muitos dos excessos que se poderia esperar, dada a enorme riqueza que adquiriram, acrescenta a psicanista.

"A falsificação foi quase acidental", disse Wolfgang a Fischer. "Gostávamos de vender os quadros, divertíamo-nos, ficámos ricos. Eu pintava e também gostávamos de fazer a pesquisa. A falsificação era uma forma de combinar todas estas coisas."

A identidade do falsificador

A dupla, juntamente com dois associados, foi condenada por falsificar 14 obras de arte. Dezenas de outras foram excluídas do julgamento devido a estatutos de limitações. Mas eles afirmam ter produzido cerca de 300 falsificações, muitas das quais nunca foram identificadas de forma conclusiva.

O seu sucesso teve as suas raízes numa investigação meticulosa e numa obsessão com os pormenores. Fazendo o que chamavam de "viagens culturais", o casal viajou para locais onde os artistas que eles imitavam tinham pintado, ou para ver obras originais em museus de todo o mundo. Mergulharam também nas cartas e diários dos artistas, bem como o conhecimento que rodeava o seu trabalho.

Estes estudos deram forma às histórias falsas que a dupla inventou para as suas criações. Embora as pinturas tenham nascido em grande parte da imaginação de Wolfgang, muitas vezes foram-lhes dados títulos de obras conhecidas, mas consideradas perdidas (e das quais não existiam imagens), preenchendo assim lacunas nas obras dos artistas sem levantar suspeitas. A dupla comprou molduras e telas antigas em mercados de rua, e até usou uma máquina fotográfica dos anos 20 para tirar fotos antigas das suas criações como prova de proveniência histórica. Durante o julgamento dos Beltracchi, o juiz disse que a fraude tinha sido organizada "com precisão militar", de acordo com notícias publicadas pelo New York Times na altura.

"Eles são contadores de histórias e é por isso que fizeram muitas pesquisas", disse Fischer à CNN. "Eles sabiam tudo sobre os pintores que falsificavam."

"Penso que isto faz parte da criatividade de Wolfgang", acrescentou. "Ele tinha de saber tantas coisas antes de começar a pintar, e também (produziu obras de arte) que poderiam ter tido lugar na sequência da carreira desses artistas."

Arte de Wolfgang Beltracchi fotografada num tribunal em Colónia, Alemanha, onde o falsificador e a sua mulher foram julgados em 2011. Créditos: Paul Hahn/laif/Redux

Numa entrevista ao jornal alemão Der Spiegel em 2012, Wolfgang disse que dominava os estilos de "cerca de 50" artistas falecidos. A sua prática intensiva no estúdio fê-lo mergulhar completamente no mundo deles - na medida em que a sua própria identidade se perdeu, Fischer passou a acreditar.

"Faço a ligação entre o desaparecimento do nome Beltracchi e a emoção que flui para outra pessoa", explicou, citando a crença aparente de Wolfgang de que, através do seu trabalho, ele assumiu as identidades dos artistas que estava a copiar. "Ele diz de si mesmo que pode sentir os sentimentos dos outros."

Ao fazê-lo, argumentou Fischer, Wolfgang demonstrou uma notável capacidade de empatia. Ele descreveu sentir-se tão próximo do pintor do século XVII Hendrick Avercamp, o primeiro artista cuja obra forjou, que se sentiu como o seu irmão. O falsificador viu-se a preencher uma lacuna no catálogo do artista, como se as suas criações estivessem a contribuir para o corpo de trabalho original. Ele disse a Fischer que se sentia em casa no cenário que pintou.

Como Fischer escreve no seu livro, "o desaparecimento da sua identidade permitiu a Wolfgang Beltracchi assegurar a sua existência".

As vítimas

Esta mesma empatia não se estendeu àqueles que enganou. Para além de colecionadores privados, um número desconhecido de galerias e museus foi vítima da fraude - e alguns podem ainda ter em exposição obras de Wolfgang.

Vários peritos viram a sua reputação prejudicada, tendo um historiador sido processado por danos (embora sem sucesso, segundo o Art Newspaper) depois de ter autenticado erroneamente uma falsificação como sendo obra de Max Ernst. As casas de leilões, incluindo a Sotheby's e a Christie's, também foram enganadas, tendo esta última utilizado uma das falsificações na capa de um catálogo de venda noturna.

Mas, segundo Fischer, os Beltracchi viam os seus crimes como, essencialmente, sem vítimas. Wolfgang disse-lhe que só produzia imagens que considerava belas, e acreditava que os proprietários gostavam tanto delas como o mercado de arte lucrou com elas. Hoje, o seu site pessoal descreve a sua história como um "conto de Robin Hood". (Mas, ao contrário do herói, Wolfgang não parece ter usado os lucros dos seus crimes para ajudar os pobres, dizendo a Fischer: "Passei dias sentado junto à piscina, a ler, a sonhar acordado e a dormir, pintando de vez em quando, quando precisávamos do dinheiro.")

"Eles defraudaram o comércio de arte, que na sua opinião era em si uma fraude", disse Fischer. "Todos eram gananciosos pela venda e todos ganhavam com ela - os peritos, as casas de leilões, o casal. E, no final, só temos de dizer que todos ficaram felizes, incluindo o comprador. Se (os Beltracchi) não tivessem sido expostos, todos teriam continuado a divertir-se."

No entanto, foram expostos - e, dado o âmbito limitado do seu julgamento, os donos de muitas falsificações suspeitas ficaram sem respostas e sem opção de conseguir uma indemnização, além de processos civis dispendiosos. Em 2014, Wolfgang contou ao programa "60 Minutos" da norte-americana CBS que, além dos danos impostos pelo tribunal, tinha resolvido ações judiciais no valor de 25 milhões de euros.

Fischer manteve contacto com a dupla como amiga. (E até lhes dedica o livro nas suas primeiras páginas.) Ela abstém-se de fazer juízos morais, descrevendo o seu papel não como o de um jornalista que tem de prestar contas, mas o de um psicanalista que investiga as forças subconscientes em jogo.

Em particular, ela explorou o papel que a educação de Wolfgang poderia ter desempenhado na sua decisão de se tornar um mestre falsificador. Ele tinha desenvolvido as suas capacidades de pintura enquanto ajudava o seu pai, que também era artista, a restaurar os murais da igreja quando era criança. Aos 12 anos de idade, copiou de forma convincente - e depois acrescentou elementos da sua autoria - uma pintura de Picasso, e logo ultrapassou as capacidades do seu pai.

Das suas conversas com Wolfgang, Fischer concluiu que os seus pais ficaram "severamente traumatizados" pelas suas experiências durante a Segunda Guerra Mundial. A sua mãe tinha sido levada com os filhos para o interior da Alemanha, enquanto o seu pai tinha lutado em Estalinegrado e na Frente Ocidental, antes de passar quatro anos como prisioneiro de guerra em França.

"Todo este sofrimento, trauma e dor - e também raiva - estava lá, e tudo isto é transmitido às crianças", avaliou Fischer, explicando que os pais de Wolfgang nunca falaram abertamente das suas experiências com os seus cinco descendentes, dos quais ele era o mais novo. "Em tais circunstâncias, é quase impossível para as crianças crescerem despreocupadas, sem assumirem todas estas tensões sobre as quais não se fala."

O que pode surgir, explicou Fischer, é uma forma de "culpa do sobrevivente", em que as crianças sentem que desfrutar da vida é uma traição ao sofrimento dos seus pais. Ao assumir as identidades dos outros - nomeadamente as de artistas mortos, cujas assinaturas ele também forjou - Wolfgang poderia escapar a este fardo emocional.

"Ele desaparece, mas ainda pode ser ele próprio. Ele permanece autónomo, criativo, rico e inocente", escreve Fischer no seu livro. "A culpa que sente em relação aos seus pais dissolve-se com o desaparecimento do seu nome". Um 'ninguém' não pode ser culpado - ele não existe, por isso não pode fazer nada."

Nos anos que se seguiram à sua libertação, Wolfgang criou trabalhos em nome próprio enquanto continua a lucrar com a sua história sensacional. Aparece frequentemente em eventos e, em 2021, lançou uma série de NFTs, intitulada "The Greats", na qual reinventou "Salvador Mundi" de Leonardo da Vinci no estilo de artistas famosos, incluindo Andy Warhol e Vincent van Gogh.

Um vídeo promocional do projeto sugere que, longe de se arrepender, o mestre falsificador está a encontrar novas formas de beneficiar do seu passado.

"Armado com mais de 60 anos de experiência, ele é a única pessoa que tem o conhecimento e as habilidades cruciais para fazer isto", diz o narrador do vídeo, acrescentando que os NFTs o verão "tornar-se parte da própria história".

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