"A Europa deixou-se dormir e a China transformou-se numa máquina imparável". O anúncio da BYD foi só um exemplo

27 abr, 08:00
Ministro da Economia, Pedro Reis, com Liu Jingyu, China Aviation Lithium Batteries (CALB) apresentação fábrica baterias de lítio em Sines (André Kosters/Lusa)

ENTREVISTA || Helena Braga é investigadora nas áreas das baterias, tem um rol de patentes com a sua assinatura e chegou a trabalhar na Universidade de Austin, nos EUA, com John B. Goodenough, vencedor do Prémio Nobel da Química de 2019 graças a uma investigação sobre baterias de lítio. A professor da FEUP garante que a Europa e os EUA estão 10 anos atrás da China nas baterias e alerta que Pequim está a tentar atrair as grandes mentes ocidentais

A corrida ao automóvel elétrico parece estar a entrar na fase de sprint, com as a gigantes chinesas à frente do pelotão e a ganhar cada vez mais distância. A BYD apresentou uma bateria capaz de recarregar um automóvel com 400 quilómetros de autonomia em apenas cinco minutos, a CATL respondeu com uma capacidade suficiente para percorrer 520 quilómetros nos mesmo cinco minutos. Agora, no salão automóvel de Shangai, até já foram apresentados elétricos de luxo de fabrico chinês.

Helena Braga é um dos nomes mais conceituados ligado ao estudo e investigação de baterias em Portugal. É professora e investigadora na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e, entre 2008 e 2011, fez investigação nos Estados unidos - no Los Alamos National Laboratory, Novo México, e na Universidade do Texas, em Austin -, onde trabalhou com John B. Goodenough, o Nobel da Química de 2019, graças a uma investigação sobre baterias de lítio.

A conversa com a CNN Portugal começou com um conjunto de perguntas sobre o anúncio da BYD, mas transformou-se numa entrevista sobre o futuro das baterias e dos carros elétricos, como o modelo científico da Europa e os Estados Unidos se deixou suplantar perante o processo científico e industrial chinês e sobre o estado da investigação em Portugal.

John B. Goodenough e Helena Braga no banquete dos Prémios Nobel de 2019. (Fonte: © Nobel Media)

O anúncio da BYD é um avanço científico relevante?

Se forem baterias que têm um eletrólito líquido, é um avanço. Possivelmente não é um avanço na parte científica, mas é um aproveitamento melhorado de LFP, que é o cátodo que devem estar a usar, porque é Lítio-Ferro-Fósforo-Oxigénio, portanto LiFePO4. Provavelmente, estamos perante um cátodo que permite carregar muito rapidamente, carregar e descarregar, permite uma potência muito mais elevada do que um NMC (cátodo composto por níquel, manganês e cobalto), que é o que usam, por exemplo, a Tesla e os fabricantes de carros europeus. Isto é algo que a tecnologia que existe já permite. Agora, uma coisa é fazê-lo em baterias pequeninas, chamadas de 'coin cells' e outra coisa é fazê-lo num automóvel.

Para melhor compreensão da entrevista deve ter-se presente que uma bateria é composta por um cátodo (positivo), ânodo (negativo), eletrólito e um separador - Diagrama genérico e simples de uma bateria. (Fonte: Getty)

Mas estamos perante uma bateria nova ou um novo tipo de bateria?

Pode não ser sequer uma bateria nova, pode ser só um desenvolvimento da bateria do LFP. Ou até pode ser um avanço que está aliado também aos carregadores que a BYD vai instalar, que permitam uma potência maior, logo um carregamento mais rápido. Talvez tenham supercondensadores, por exemplo, que é uma das coisas que se está a desenvolver para estes carregamentos ultrarrápidos. Não posso dizer exatamente o que é, mas posso dizer que no processo não estão a carregar as baterias completamente, devem carregar algumas até 80% naqueles cinco minutos [isto, porque abaixo dos 20% e acima dos 80% a velocidade de carregamento em todas as baterias diminui consideravelmente].

Com este anúncio abre-se uma nova fase para os carros elétricos?

Só com este facto de estarem a usar LFP, as marcas chinesas podem explorar algo que uma Tesla e as empresas europeias não podem, porque estão a usar NMC. O LFP tem esta vantagem de poder carregar muito mais rapidamente. A desvantagem é que têm de colocar mais baterias em cada carro para compensar a redução em termos de densidade de energia.

Este cátodo LFP encarece o processo de fabrico e pode deixar as baterias mais caras?

Não, penso que o preço vai ficar igual. E outra coisa, suponho que isto ainda não é a bateria de estado sólido, porque a bateria de estado sólido ainda vai permitir carregar mais depressa. Não deve ser, suponho, porque não o é dito. Ainda assim, nunca sabemos o que é que acontece nesta área, mas acredito que este anúncio ainda não está associado à bateria de estado sólido.

Helena Braga é professora e investigadora na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. (Fonte: Universidade do Porto/Egídio Santos)

Existe algum risco acrescido para o carros que tenham estas baterias?

Penso que não, pelo menos se for aquilo que penso que é, mas não posso estar a fazer grandes afirmações. Até ao momento há pouca informação sobre o anúncio da BYD, o que consegui ler foi zero, estou falar com base no que conheço das empresas chinesas. Em 2019, - quando fizemos um estudo intenso e aprofundado sobre a indústria chinesa - as empresas estavam a começar a introduzir o cátodo de LFP. Este é um cátodo que não tem cobalto e, como tal, não liberta oxigénio tão facilmente como o NMC, logo é mais seguro. A desvantagem é apenas a densidade de energia com o LFP, que passa a ser inferior. A solução passa por se colocar mais baterias em cada carro para conseguir a mesma energia. Mas, tudo isto não é de agora, em 2019 já se sabia que esta era tendência na China. Aliás, a Tesla, nos automóveis que fabricava ou vendia na China também usava o LFP, mas hoje em dia acho que já só usa o NMC.

A Tesla e os concorrentes europeus estão longe desta marca dos 400 quilómetros em cinco minutos?

Estão, por causa disto mesmo. Efetivamente, não podem pôr um NMC a carregar muito rapidamente, por muito que ponham mais baterias e que só as carreguem até 80% para atingir estes 400 quilómetros. Não podem fazer uso de toda aquela potência que se pode ser utilizada para carregar um LFP.

Para além do cátodo, pode haver aqui mais algum avanço ou aproveitamento de eficiência por parte da BYD?

Também pode ser uma diferença de BMS, Battery Management System, o sistema que faz a gestão de todas as baterias, pode ter havido um desenvolvimento a esse nível. Outra hipótese é um novo desenvolvimento no próprio carregador, talvez tenham começado a utilizar os supercondutores. Ainda assim, parece-me mais provável que estejamos perante uma mera utilização do LFP e que tenham passado a usar mais baterias, em suma, que tenham tornado as baterias mais eficientes.

Grande parte dos consumidores ainda se lembra do que se passou com as baterias do Note 7 da Samsung. Existe algum risco de replicação de um novo escândalo com baterias?

É impossível de dizer, mas essa é sempre uma possibilidade. Mas a China tem muita experiência. A minha verdade, e de muitas outras pessoas que analisam esta indústria, é que a China está muito à frente de tudo o que está a ser feito e não revela o que está a fazer. Conseguem manter o segredo sobre que estão a fazer e têm um avanço, diria, de uns anos em relação ao que está a ser feito em todo o resto do mundo. Mas, continuo a dizer, se isto é uma bateria que usa o LFP, é muito mais difícil entrar em combustão do que uma com NMC, porque a libertação do oxigénio neste cátodo é mais difícil por uma questão estrutural do material, que tem uma estrutura atómica cristalina ao contrário dos átomos presentes num NMC. E com o LFP existe menos probabilidade de que um carregamento rápido termine em tragédia.

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A diferença é assim tão expressiva em comparação com as baterias dos fabricantes ocidentais?

A China é responsável por mais de 90% dos cátodos que são fabricados no mundo, por 100% do eletrólito líquido que é usado e por mais de 90% dos ânodos. Isto, para se ver como a China está tão à frente nesta tecnologia. Já estão a usar e a trabalhar com este cátodo há muito tempo, há mais tempo do que em qualquer outro lado. Mas acredito que isto não seja um passo tão disruptivo, que seja pura e simplesmente o aproveitamento de uma tecnologia que já dominam.

Estranha o facto de haver pouca informação científica sobre esta novidade da BYD? Podemos estar perante uma estratégia de marketing?

Claro que sim. Isso tem acontecido muito com o estado sólido e até tem acontecido com outro tipo de coisas, como anunciar-se uma bateria de sódio e depois, quando se abre, a bateria é de lítio. Já ouvi várias histórias. Há uma série de histórias, e também há uma série de contra-ataques, porque as indústrias dos outros países também não são santas. Temos [ocidentais] de ser muito humildes em relação à China, porque a China tem uma tecnologia muito, muito avançada.

Para quem está nesta área há vários anos, é impressionante este crescimento científico e industrial chinês?

É. É impressionante, principalmente tendo em conta o que a China era há 15 anos e o que é hoje. Lembro-me do primeiro artigo chinês que recebi sobre estes assuntos para rever e corrigir - o que é normal entre a comunidade científica - e realmente a qualidade era muito, muito diminuta. Hoje, a China está à frente de toda a investigação e de todas as revistas científicas. Não digo só industrialmente, mas cientificamente também estão a dar cartas. Temos [indústria norte-americana e europeia] de ser humildes e encontrar os nossos nichos, particularidades em que possamos ser criativos e trazer tecnologia que efetivamente seja uma mais-valia, porque se vamos agora tentar imitar a China nunca mais vamos tirar nenhum proveito disto. A China está a fazer bem, depressa, de forma criativa, com qualidade e com capacidade de inovação.

Que futuro prevê para a indústria de baterias ocidental e para as marcas automóveis da Europa? Vão ter de recorrer obrigatoriamente às baterias chinesas?

Exatamente e infelizmente. A competição é muito importante e era fulcral o plano europeu das 39 gigafactories, mas desde o fracasso da Northvolt - empresa sueca que era vista como a esperança europeia na indústria das baterias -, atrasou-se um bocadinho o avanço europeu, mesmo cientificamente. A principal, aquela que era a pioneira, no fundo, falhou. Na Europa, todos tinham os olhos postos na Northvolt. E o reflexo é, por exemplo, o que está a acontecer em Portugal. Temos a CALB - empresa chinesa com fábrica em Sines. Estamos novamente a importar tecnologia asiática, chinesa. Ainda assim, também pode ser uma mais-valia, especialmente se promover o trabalho e a investigação.

Depois da queda da Northvolt o que resta na Europa?

Não há nada aqui na Europa. Onde é que estamos a fabricar baterias? São poucas as indústrias. Não há uma indústria do tamanho de uma CATL ou de uma CALB. Por isso, é que defendo que, como a diferença já é tão grande, é uma pena não apostarmos naquilo que é realmente disruptivo. O disruptivo não é uma aposta cara e é algo que pode trazer uma grande mais-valia. Não vale a pena querermos imitar aquilo que os outros já estão a fazer muitíssimo bem e mais barato. Não vamos tirar nenhuma mais-valia disso, por muito que aprendamos fazer a copiar. No fundo, estamos só a tentar fazer aquilo que a China fez há um tempo atrás.

O que seria realmente disruptivo?

As baterias sólidas também já quase não são disruptivas. Ia para passos mais à frente. Já todos estão a fazer baterias sólidas e de certeza que já estão a ser bem-sucedidos. Talvez não numa escala destas, mas já devem estar a fazê-las. Aliás, já há anúncios, muitos anúncios. Diria para apostarmos muito mais à frente do que isso: talvez em baterias com materiais muito mais sustentáveis. Por exemplo, utilizar só sódio ou um misto sódio-lítio no início. Ir mais para o sódio e abandonar por completo os cátados com cobalto.

Ainda é possível apanhar este ímpeto chinês?

Temos de ter uma locomotiva na Europa e esta tem de ser uma locomotiva que esteja sempre a estudar o que vai ser disruptivo, não o que já todos estão a fazer, porque não temos qualquer capacidade, nem sequer de copiar o que a China está a fazer. Quando eram eles que faziam isso, eram milhares de milhões de pessoas a fazê-lo. Nós não somos milhares de milhões. Para além disso, a Índia também vai dar o salto, porque a China já está a instalar fábricas na Índia. São os dois países com a maior população. A Europa não pode nem conseguirá copiar o que estão a fazer. Não temos qualquer hipótese de sermos bem-sucedidos. Não podemos usar a estratégia que a China tinha connosco. Podemos competir em criatividade, em tentar ser disruptivos e em estar atentos, porque eles também têm gente muitíssimo capaz. Aliás, estão a dar cartas na ciência, mas essa capacidade todos temos, todos temos o mesmo cérebro com capacidade para pensar e só nisso é que podemos apostar.

Mão de obra barata, matérias-primas, infraestruturas de ponta e investigação científica em velocidade cruzeiro, a estratégia de Pequim parece perfeita, mas tem alguma falha que pode ser explorada?

Neste momento a China é uma máquina imparável porque começaram por copiar, mas mandaram os seus melhores para todas as universidades ocidentais. Estive nos Estados Unidos e sei, porque os via em todo o lado. Estavam lá e viam como é que as coisas eram feitas. Não era só copiar, já participavam no que ali estava a ser feito, depois, começaram a voltar para a China. Na China, foram equipados com o melhor em todas as áreas. Por exemplo, não têm de esperar um mês para utilizar um equipamento porque só existe um na Universidade do Porto e que tem de ser previamente marcado porque há não sei quantas pessoas que o querem utilizar. Não, na China, vão ao fundo do corredor e têm esse equipamento disponível, pronto para ser utilizado e com um técnico especializado à espera. Imediatamente é feito o estudo completo, podem fazer basicamente tudo isto em duas semanas. Aqui temos de esperar meio ano e é com muita sorte. Isto para dizer que estão a fazer tão bem, tão barato, têm matérias-primas, têm tanta gente com tanto know-how, têm o negócio operacional, têm as fábricas: têm todos os elementos necessários. Portanto, onde é que nós vamos competir?

Helena Braga foi professora associada na Escola de Engenharia Cockrell da Universidade de Austin, no Texas, onde trabalhou com o Nobel da Química John B. Goodenough. (Fonte: Universidade do Porto) 

Tem resposta para essa pergunta?

Só podemos competir numa vertente: inteligência. Cérebros todos temos. Somos pessoas diferentes, mas todos temos a capacidade de pensar, mas é preciso equipar bem as universidades para que se alcance este break-through. Não gosto de ser 'Velho do Restelo' nem de dizer 'eu disse', detesto, mas a ascensão chinesa é impressionante. Aqui, querem tudo feito sem arriscar, não querem arriscar em nada ou arriscar o mínimo possível e só arriscam com empresas que já sabem que são boas. Ou seja, a CALB veio para cá e já tem não sei quantas empresas portuguesas a querer arriscar para trabalhar com ela. Contudo, estas próprias empresas nacionais mais pequenas já poderiam ter utilizado, por exemplo, as tecnologias das universidades portuguesas para desenvolver tecnologia e para estarem elas mais à frente. E há outro detalhe: só vamos estar na CALB nas coisas que a CALB venha a precisar. E se depois a CALB for embora? Ficamos onde estávamos.

Perante este fosso abismal entre as condições oferecidas pelo Ocidente e China não há o risco de os cérebros ocidentais começarem a rumar a Oriente?

Se não há o risco? Claro que há e claro que já estão a rumar para a China. Pequim até tem um programa de talentos. Já não sei precisar, mas é algo como um programa que anualmente se propões a captar 500 talentos. A ideia é ir buscar mentes a todo o mundo para irem desenvolver e trabalhar com as indústrias chinesas. São as próprias indústrias que, em parte, financiam o projeto, juntamente com o Estado chinês. E não é para ir trabalhar na universidade, é para ir trabalhar diretamente nas indústrias. Portanto, claro que sim, o risco existe e pagam muitíssimo bem.

E como se trava uma debandada de génios?

Vimos as coisas a acontecer à nossa frente e nunca pensámos que iam ser assim. Deixámos a China entrar e nem sequer fomos humildes para olharmos para aprender com o que é que eles estavam a fazer. Está na altura de virarmos este cenário e sermos nós a ver como é que eles fazem. Não vamos espiar, mas devíamos começar a estar atentos a como é que eles estão a investigar e isso é público. Os investigadores chineses publicam nos mesmos jornais, aliás, estão à frente de todos os melhores jornais. É nisso que digo que a Europa se deixou dormir, porque todos os melhores jornais científicos agora estão associados a uma universidade chinesa ou são fortemente subsidiados por universidades chinesas. Quem for lá ver pode comprová-lo, está lá o selo, é público. Temos de ser humildes. Aqui na Europa e nos Estados Unidos, falta-nos humildade. Deixámos as coisas passar, claro que é fundamental a regulamentação, porque tudo tem de ser sustentável, e claro que é muito importante a liberdade, porque, obviamente, no regime chinês não há democracia, pelo menos a democracia da mesma maneira que a conhecemos. É uma democracia um pouco diferente.

Perante este advento intelectual chinês, a Europa continua a ter espaço para se destacar na inovação?

Por exemplo, os investigadores chineses também fazem a correção de artigos, ou seja, também têm nas mãos o desenvolvimento, o local onde está a criatividade e a possibilidade de fazer diferente, porque essas são condições que vêm da universidade, do laboratório ou da indústria como laboratório. A China tem isso na mão, estão nas revistas, veem os artigos que surgem, estão sempre em cima, sabem exatamente o que está a ser investigado e onde. A Europa deixou-se dormir nos seus louros, porque não fez absolutamente nada com o que tinha. É nisso que digo, é uma questão humildade, devíamos estar a lutar para ter as melhores revistas, para estar a olhar, para tentar ser revisores, para ver o que é que está a ser feito também na China. 

O que se pode esperar em termos de baterias nos próximos anos?

Penso que finalmente vamos entrar no estado sólido e com o estado sólido pode haver carregamentos ainda mais rápidos. E espero que entremos para o estado sólido para não haver acidentes, porque o inflamável é algo que me preocupa. No sentido em que quando é muita gente a usar, apesar de serem muito poucos acidentes, basta um para poder fazer uma grande perturbação, como aconteceu naquele parque em Lisboa em que depois vieram dizer que não era um automóvel elétrico. Deu-me vontade de rir. A parte mais importante do estado sólido é mesmo essa: o ser mais seguro, porque se toda a gente começar a ter carros elétricos, um acidente pode realmente causar uma grande perturbação. No interior das baterias atuais está o combustível e o comburente, o oxigénio e o eletrólito inflamável e num ambiente fechado. Juntando-se uma temperatura mais elevada, está ali tudo. Aí pode haver uma célula que falha, e vai-se a bateria, o automóvel e com ele todos os outros que estão à volta. E o lítio é muito difícil apagar. Apesar de o risco de incêndio ser menor com os cátodos LFP, a dificuldade de o apagar é igual, porque o eletrólito continua a ser lítio. Para além das baterias de estado sólido, espero que chegue também o eletrólito de sódio, porque tornava tudo bem mais democrático e são materiais mais sustentáveis.


Reportagem na TVI24 transmitida em março de 2018 || Há sete anos atrás, Helena Braga alertava para o potencial das baterias de estado sólido e já tinha patenteada a investigação inicial para um eletrólito de vidro em vez de lítio 

Como é que a Europa e os EUA se deixaram ficar tão para trás nesta área?

Como é que todos os impérios caem? A Europa foi o primeiro império a cair nestes últimos anos. Agora já estão a cair os Estados Unidos, claramente. Os únicos impérios que caem são os ficam arrogantes enquanto os competidores trabalham com muita vontade. A China também já foi império, já deixou de ser império e agora já está a ser império outra vez. O que acontece é que quando as máquinas [estatais] começam a ser muito grandes, ficam difíceis de gerir e toda a gente quer estar somente a aproveitar os seus louros.

Em Portugal, como está a aposta na investigação científica e tecnológica? 

Tem vindo a melhorar nos últimos anos, também não posso ser injusta, foi melhorando. Mas, a nossa maneira de ser é muito pouco aventureira enquanto povo. A minha teoria é que nos Descobrimentos as pessoas mais aguerridas, com mais vontade e mais aventureiras foram nas caravelas e nas naus para todo o mundo, constituíram lá família e muito poucas voltaram. Com isso, perdeu-se esse traço de ADN, sendo que o que ficou aqui em Portugal foi o traço genético dos 'Velhos do Restelo'. Temos medo, talvez também por causa do Salazar e de todos os anos em que estivemos sob ditadura, é um bocadinho este pensamento: o dos pequeninos, o do sós e orgulhosamente sós. Esta mentalidade não leva a que as pessoas vão, tentem e explorem. Esta nossa maneira de ser não ajuda neste momento, mas talvez isso vá mudar com estas novas gerações que estão a ir para fora e a explorar cada vez mais.

Não teme que com isso, à semelhança da Europa, Portugal fique órfão das suas grandes mentes?

Ao contrário do que as pessoas pensam - do 'ai que os cérebros vão todos para fora' -, considero ótimo ir para fora, é fundamental viver lá fora e ver Portugal de longe. É fundamental, porque aprendemos a ver o que é bom, o que é mau e a saber comparar. Perceber o que é que os outros estão a fazer é fundamental. Não devemos estar preocupados com o facto de estas mentes saírem de Portugal, temos é de estar preocupados em como é que as vamos atrair para voltarem. Agora, o irem e o ir embora são fundamentais. Nota-se uma diferença muito grande de investigadores que viram o que há lá fora, porque vêm e trazem outras maneiras de fazer e de refrescar do tecido científico e educativo.

Quais são as grandes diferenças entre ser investigador em Portugal ou nos EUA?

Aqui, em vez de se responsabilizar e de se dizer 'olha, tens um projeto e tens aqui um cartão de crédito, agora, pegas nesse cartão de crédito, compras o teu equipamento - e o melhor equipamento ao melhor preço -, faz A, B, C e D e depois, no final, vê-se se cumpriu ou não as regras'. Não, aqui para se comprar um parafuso, para se comprar qualquer coisa por mais mínima que seja, temos de fazer três orçamentos. Somos considerados suspeitos ou culpados até prova em contrário. 

Depois, ainda há aquela coisa do poderzinho. Uma pessoa num gabinete que tem poder sobre alguém que tem de criar algo e esse é o único poderzinho que tem, mas tem a capacidade de fazer com que a máquina fique completamente emperrada. Parece que é algo que não tem diretamente a ver com a ciência, mas agora imagine-se: na China, os investigadores têm o equipamento à disposição e nós, aqui, nem que tenhamos o dinheiro, o equipamento e o objeto de análise, o processo demora 550 mil anos porque tenho de pedir autorização à A, B e C, arranjar três orçamentos. É de loucos, e é uma coisa que podemos mudar. Nos Estados Unidos nunca tive que fazer um orçamento, nunca tive que justificar porque queria comprar algo. Havia uma secretária a quem pedíamos e, depois, sim, havia uma responsabilização. Mesmo quando não tinha afiliação à Universidade de Austin chegava, comprava e era ressarcida pelo que comprava. Aqui isso seria algo impensável, tendo em conta esta máquina burocrática de regras e regrinhas e regrinhas.

Helena Braga alerta para a desaceleração da investigação científica na Europa e nos Estados Unidos e lembra: "Não se pode apostar com medo". (Fonte: Universidade do Porto/Egídio Santos)

O que se perde com este excesso burocrático?

Tudo isto é dinheiro perdido, ter 20 pessoas para ver se foi almoçar no dia X ou no dia Y. Não é preciso se realmente responsabilizarmos as pessoas. Depois sim, se virmos que as pessoas prevaricam, então é atuar com pulso de ferro. Até lá temos de deixar as pessoas voarem rápido, deixá-las assumir a decisão, porque, ao fim e ao cabo, não estou a tentar roubar a minha universidade. Antes pelo contrário. Às vezes cansa. Derrota-nos. É desgastante. É desmotivador. Só me apetece perguntar de que cor é que quer a justificação? Com quantas linhas? É quase assim. E nisto podemos mudar. Temos muito que aprender. É demasiada regulação, inclusivamente na Europa, onde já tínhamos toda a regulamentação para as baterias, como iam ser feitas, como iam ser testadas, como é que iam ser a recicladas, mas ainda não tínhamos baterias. Esse é que é o problema.

A regulamentação da União Europeia é uma bengala ou mais um entrave ao advento inovativo?

Somos muito de regulamentar, mas onde está realmente o investimento? Há outra coisa que entendo que não seja uma boa política e que a Europa utilizou, foi que começámos a investigar os projetos da Comunidade Europeia, por exemplo, as baterias de ião-lítio. Era o projeto 3A, o 3B, etc... e depois é que fomos para o 4A, 4B, ou seja, o estado sólido. Quando na China e nos Estados Unidos, já estavam muito à frente. Mesmo, na Coreia do Sul e no Japão, já estávamos muito à frente desses 3A e 3B. Acho que não é assim. Devíamos ter apostado no que ainda não tinha sido aprovado. Devíamos ter começado pelo estado sólido e logo com o sódio, ou magnésio, ou alumínio ou o que fosse, porque se aquilo não desse uma grande mais-valia por ser inovador caía e não se gastava mais dinheiro com isso. O que se teria gasto era só para a investigação e para tentar levar aquilo a bom porto, a um estado em que pudesse depois ser industrializado. A mim parece-me lógico, mas não, começámos ao contrário.

Se a China está na ponta da investigação e se a União Europeia está a tentar chegar onde a China já está, como vai algum dia Bruxelas sequer aproximar-se de Pequim?

Não faz sentido alocar-se um volume de fundos desta dimensão para se chegar a algo, quando a China já está dez anos à nossa frente. O que é que nós vamos investigar? Quando lá chegarmos onde eles já estão? Já estão nas outras tecnologias e a tirar partido delas. O que temos de fazer é colocar os fundos todos naquilo que pode vir a trazer a maior mais-valia, ou seja, no que é realmente inovador.

É demasiado tarde?

Se não começarmos vai ser sempre demasiado tarde. Mas, temos de começar a apostar no que não se sabe se vai ou não vai dar certo e ter a coragem de o fazer. Agora, não é apostar a meias. Não é como costumamos fazer. Vamos dar um dinheirinho minúsculo ou vamos pôr quatro pessoas a trabalhar naquilo em toda a União Europeia. Não pode ser assim, porque se não, não teremos aquela chamada energia de ativação para passar para o lado de lá. Há um obstáculo que tem que se cumprir e ultrapassar primeiro. Para isso são precisos fundos para comprar o equipamento para formar investigadores, para capacitar, para educar. O investimento inicial tem de ser sempre o maior. Não se pode apostar com medo.

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