Elvira, Ricard e Ramón, de dois, quatro e cinco anos, foram encontrados sozinhos e sem conseguir dar respostas sobre a família ou sequer indicar o próprio apelido. Uma investigação do The Guardian acompanhou a aventura dos irmãos para solucionar o mistério da família, que se depararam com um mundo de gangues e crime organizado espalhado por várias cidades europeias
Escreve o The Guardian que, na primavera de 1984, três crianças foram encontradas numa estação ferroviária em Barcelona. É incerto quanto tempo lá estiveram, eternamente à espera de quem não regressaria, até a mais jovem - a pequena Elvira, de apenas dois anos e caracóis dourados a emoldurar-lhe o rosto - começar a chorar e chamar a atenção dos funcionários. O que acontecera? O irmão mais velho sabia francês e espanhol e explicou aos adultos curiosos que os três tinham chegado no Mercedes-Benz de um amigo francês do pai, Denis, que lhes pedira para aguardarem num canto enquanto comprava doces. Só que os doces prometidos, tal como Denis, nunca apareceram. Outros adultos surgiram pouco depois, desta vez fardados de polícias, e voltaram a insistir: mas, afinal, quem eram os pais? Durante 40 anos, nenhum dos irmãos soube responder a esta pergunta.
Elvira tinha dois anos, e o silêncio poderia ser justificado pela tenra idade. Mas Ricard e Ramón, de quatro e cinco anos, poderiam facilmente responder a questões tão simples como onde viviam, como se chamavam os pais, como era o próprio apelido. Ainda assim, a polícia deparou-se com uma hesitação atípica a esta faixa etária: do seu passado, as crianças pareciam recordar-se de muito pouco para além de terem vivido em Paris. As autoridades mantiveram-se esperançosas - as crianças estavam bem cuidadas e certamente alguém as procuraria. Pais, amigos da família, professores, qualquer pessoa que os conhecesse. Os irmãos esperaram três dias num orfanato em Barcelona, mas ninguém telefonou. Pensou-se que a culpa poderia ser dos constrangimentos comunicacionais da década de 80, com cartas escritas à mão e telegramas demorados. Um pouco por toda a Europa, a polícia foi informada do caso - mas, à medida que o tempo passava, o mistério apenas se adensava.
Já depois de transferidos para um centro de acolhimento para crianças vulneráveis, os irmãos permaneciam incapazes de responder a questões sobre a sua identidade. Sempre que as perguntas iam desembocar nos pais, ou no passado anterior à viagem de carro com Denis, as crianças emudeciam ou afastavam-se, sem uma palavra. Os funcionários acabaram por desistir da questão, mencionando um “bloqueio psicológico” num dos relatórios elaborados. Entretanto, para além da polícia, também os serviços sociais espanhóis foram notificados do caso das três crianças. A psicóloga Marisa Manera deteve-se na imagem de Elvira, Ricard e Ramón, anexada a um quadro de cortiça, e leu as palavras que a antecediam: “Estamos à procura de informação sobre estas crianças”. Ao lado, também anexado com um pionés, um cartão de visita com o número do centro de acolhimento infantil. Marisa não tinha informações para facultar, mas tinha uma casa espaçosa que partilhava com o marido e em que ocasionalmente recebia crianças que precisavam de abrigo temporário. Então, telefonou.
As crianças mudaram-se para a casa de Marisa no final de junho, poucos meses depois do súbito aparecimento na estação de Barcelona. O verão foi passado a acampar nas margens do Rio Ebro e, quando os mergulhos fluviais deram lugar ao chocolate quente do outono, os cinco tinham já uma certeza: a casa temporária era agora permanente. Em 1986, o pedido de adoção formal foi concluído e Marisa e Lluís tornaram-se os pais que sempre quiseram ser. E Elvira e os irmãos receberam novos apelidos para preencher o espaço vazio daqueles que não se lembravam: Moral Manera, um herdado de cada pai. Foi uma infância tranquila e abastada, no seio de uma família de classe média, com as janelas do apartamento a desaguar numa pista de corridas de galgos. Sabiam-no em crianças, e sabem-no agora com 40 anos de reflexão, que lhes saíra a sorte grande após um começo de infância em branco. Como não se lembravam dos pais, também não havia espaço para saudades. Só que, de vez em quando, mesmo sem saber o mero nome dos progenitores, um laivo de memória vinha à mente. Um Porsche de pintura negra, um Jaguar cinzento-esverdeado; eram sobretudo bens materiais, luxuosos, a despoletar estas recordações inusitadas. “Olhem, o carro do papá!”, exclamou Elvira durante aquela primeira viagem em família no Rio Ebro, ao ver passar um Mercedes-Benz branco.
Elvira ia crescendo e maturando, sem se deixar condicionar pela incógnita do primeiro par de anos de vida. Admite que por vezes se sobressaltava com um toque inesperado na campainha do apartamento - seria possível que fossem eles? - mas os pensamentos vinham e iam sem se demorar. Só nas noites da adolescência e do começo da idade adulta, em que regressava ainda de cabeça num rodopio depois de um serão nas discotecas, é que se atrevia a regressar ao passado com os irmãos. Entre murmúrios, lá iam tentando descortinar o que podiam de uma outra vida quase indecifrável. Lembravam-se de Paris e de cidades verdejantes no interior de França, de viagens à Bélgica ou aos mantos de neve da Suíça. Lembravam-se dos carros velozes do pai e de uma figura de negro, talvez uma avó, que os forçava a beber leite quando ficavam ao seu cuidado. Esses devaneios ficavam reservados àquele período quase irreal entre a noite profunda e o amanhecer - quando acordava, de cabeça límpida, não lhe restava qualquer desejo de procurar os pais biológicos. Tinha em casa o que precisava.
A Elvira dos caracóis louros tornou-se uma mulher alta, de cabelos lisos e tingidos de louro-cinzento. Aprendeu língua gestual e tornou-se professora de crianças com necessidades educativas especiais, em honra do pai adotivo, Lluís, que morreu antes de ver a filha atingir a maioridade. O seu destino, traçou-o pela própria vontade e pela influência da única família que conhecera. Acreditava e continua a acreditar: no que toca à formação do caráter e da personalidade, a socialização importa mais do que a disposição genética. Mas, quando engravidou, não pôde deixar de questionar a herança desconhecida que estaria a passar para o filho, desde traços físicos a doenças hereditárias. Então, com 32 anos, decidiu procurar os pais.
Dos caminhos sem saída às respostas
Foi preciso Elvira tornar-se mãe para questionar como teria sido a sua. Será que a mãe também a costumava segurar no colo com este misto de amor e assombro pela criatura pequena que tinha nos braços? Como é que teriam partilhado aqueles dois anos juntas, agora apagados da sua memória? Quando foi mãe pela segunda vez, em 2017, a certeza de que havia uma peça perdida na história da sua vida redobrou-se. Se o amor maternal era assim tão incondicional, como é que a mãe a poderia ter abandonado sem olhar para trás? Soube que algo de terrível deveria ter acontecido, com uma repentina certeza inabalável. E a maior prova residia na própria ausência de memórias, tanto de Elvira como dos irmãos. “Que criança de cinco anos é que não sabe o nome dos pais?”, questionava-se.
A aventura começou com um teste de ADN que recebeu como presente de Natal. Esperava que a enorme base de dados da empresa conseguisse identificar parentes próximos, mas os resultados da amostra de saliva defraudaram todas as expectativas. Para começar, a meia mão de pessoas com correspondência genética eram parentes distantes, que nem sequer devolveram resposta quando contactados. Depois, a questão da naturalidade. As memórias nebulosas de Paris e a fluência do irmão em francês sugeriam um resultado diferente daquele que os resultados apresentaram: muito provavelmente era originária do sul de Espanha, e não do norte de França como sempre pensara.
Se esta porta se fechou, outra mais inesperada logo se abriu. Marisa soube que a filha procurava os progenitores e marcou uma reunião familiar de urgência. Ricard não estava em Barcelona, mas Elvira e Ramón acorreram ao apartamento da mãe. Espalhados numa mesa, estavam recortes de jornal que a matriarca tinha recolhido ao longo do verão de 1984, o mesmo em que decidiu criar os três irmãos. A história era digna de um thriller e tinha como grande protagonista o francês Raymond Vaccarizzi, um chefe da máfia que se mudara para a costa espanhola de L’Escala no início dos anos de 80. Fugia da polícia francesa e da rivalidade entre gangues em Lyon, mas acabou detido no final de 1983. As acusações que lhe imputavam eram várias, e nenhuma delas leve. Geria uma rede de prostituição e exigia dinheiro a troco de alegada proteção, embora os grandes rivais não conseguissem escapar à sua fúria. Recebeu a alcunha "O Diabo" por espancar quem ousava desafiá-lo e chegou até a matar pelo menos três pessoas do largo grupo de inimigos - a última vítima, já em Espanha.
Foi parar a uma prisão em Barcelona, situada num bairro residencial, onde acabou por nunca sair. Em julho de 1984, espreitava pelas grades da janela enquanto tentava falar com a mulher, Antoinette, quando uma bala atingiu em cheio o centro da sua cabeça. Escusado será dizer que ninguém chorou a morte do temido “Diabo”. Só talvez a mulher, que viu o filho adolescente do casal ser raptado por uma família mafiosa rival e acabou por ter de abandonar Espanha e desaparecer sem deixar rasto. "A nossa teoria é que vocês podem ser filhos dele", concluiu Marisa, perante os olhares atónitos de Elvira e Ramón. A história parecia inacreditável, mas batia certo com alguns dos detalhes fugazes que as crianças referiam. Os carros de luxo, as viagens de um ponto da Europa para outro. O ano de 1984, decisivo para todos.
As dúvidas eram tantas que Elvira aceitou a teoria, ainda que relutante: “Tudo parecia possível”, diz agora, em reflexão, citada pelo The Guardian. Ramón, por sua vez, recusou-a terminantemente. Em criança, tinha visto um homem de cabelo claro na televisão e gritado, com um dedo apontado: “Parece o nosso pai”. Talvez fosse mera sugestão, mas a imagem do pai como um homem de cabelos quase brancos e de ar vitorioso, confiante, ficara-lhe gravada: era esse o pai biológico, não Viccarizzi de cabelos pretos. Os irmãos acabaram por também descartar a teoria do mafioso francês. Apesar de terem passado quase quatro décadas desde o último contacto com os pais, quem quer que fossem, Ramón era o mais velho e as suas memórias mais confiáveis.
Para além destes recortes de jornais, Elvira pouco tinha que a ajudasse a contextualizar o seu passado. Os documentos oficiais dos médicos e cuidadores do centro de acolhimento eram vagos e só agravavam as incertezas quanto ao país de origem. O nome de Ricard aparecia escrito em diferentes papéis como Richard, Ricardo e Ricard - ou seja, em francês, espanhol e catalão. Qual seria a versão correta, e como o saber? Como descartar por completo a teoria do “Diabo” mafioso, sequer, se a refutação era baseada apenas em memórias traiçoeiras?
Marisa tinha acompanhado as crianças desde o início da transição para a nova vida e sabia que, mesmo que o pai não fosse Viccarizzi com os seus cabelos escuros, a história das crianças estava conectada ao submundo do crime. Por muito que negasse esta associação, Ramón veio a admitir algumas memórias que tinha remetido para as profundezas do subconsciente. Aquela vez em que estava a brincar com o irmão Ricard com uma pistola que encontrou no chão e disparou - só que a arma era verdadeira e foi lançado para o chão com o ímpeto do disparo. Lembra-se com detalhes vívidos do jardim no exterior da casa, ladeado por paredes brancas, e do quão furioso o pai ficou quando se deparou com os estragos da brincadeira. Lembra-se, também, de quando a misteriosa figura paternal os levou a um restaurante onde não chegaram a jantar - entrou o pai primeiro e saiu minutos depois com a cara inchada e ensanguentada. Lembra-se da ansiedade da viagem no Porsche preto, de regresso a casa. Só não se lembra de casa.
Os irmãos chegaram a discutir submeterem-se a técnicas de hipnose, para desenterrar de vez as memórias encravadas ou incompletas. Os psicólogos advertiram, no entanto, que não se tratava de um procedimento completamente credível: mexer no subconsciente é sempre duvidoso e pode implantar memórias falsas ou erradicar por completo as verdadeiras. Os irmãos tinham chegado a um impasse frustrante. Depois de testes de ADN, teorias mirabolantes e memórias incertas, nada mais restava senão um apelo desesperado. Elvira seguiu a sugestão de uma amiga e gravou uma entrevista para um programa de rádio, a ser transmitido uns dias depois. Quando terminou, não teve a catarse que esperava: em vez de alívio, sentiu-se humilhada por ter exposto a sua história perante o voyeurismo de estranhos que, certamente, não a poderiam ajudar. Nem sequer reuniu coragem para ligar o rádio e ouvir a transmissão, em março de 2021. Mas centenas de milhares de pessoas ouviram.
Nos dias que se seguiram, o telemóvel não parou de tocar. Velhos amigos e antigos colegas de trabalho com quem não mantinha contacto telefonaram e deixaram uma palavra de conforto (outros, indignaram-se por não terem tido conhecimento da história em primeira mão). Também nas redes sociais os ouvintes comentavam o caso, comovidos com os três irmãos pequeninos deixados à sua sorte numa estação de comboios numa grande cidade. Um grupo no Facebook, com publicações na língua inglesa e na língua francesa para chegar a uma maior audiência, atraiu genealogistas e criminologistas amadores e "testemunhas" que garantiam ter informações exclusivas sobre o caso - mas que, afinal, nada tinham a oferecer senão explicações falaciosas e até bizarras sobre o aparecimento dos três irmãos na primavera de 1984. Outros criminologistas amadores, como Carmen Pastor, eram mais moderados nas suas pesquisas e tornaram-se amigos próximos de Elvira.
E foi Carmen quem obteve a primeira pista em anos, após meses de uma pesquisa diária de quase 14 horas por dia. O olho atento da criminologista detetou uma parente distante de Elvira, a quem os resultados dos testes de ADN atribuíam uma correspondência de 1,4%. Quando contactada, a mulher reconheceu que a história das três crianças lhe parecia familiar e prometeu que voltaria com uma resposta em breve, depois de falar com outros familiares. Era um beco sem saída, pensou Elvira, até receber um telefonema de Carmen. “Acabei de falar com a tua prima em segundo grau. Falou-me sobre três crianças desaparecidas, e que a mais velha se chamava Ramón”, contava a criminologista pelo altifalante. Se as informações que tinha obtido estivessem corretas, os nomes dos pais seriam Ramón e Rosario e seriam espanhóis, um de Sevilha e outro de Madrid, longe do recorte parisiense que os irmãos tinham imaginado.
Elvira e Ramón agendaram uma chamada por videoconferência com a prima em segundo grau, Lorena, e uma série de outros tios e primos que queriam conhecê-los. Ricard, que reside numa comunidade alternativa na Catalunha e não usa telemóvel, não participou no reencontro familiar. Não estavam certos de que se tratasse de um reencontro familiar, na verdade: quando todos os convidados atenderam a chamada e ligaram as câmaras de vídeo, fitavam rostos que podiam ser completos estranhos ou, quem sabe, família perdida. A confirmação veio quando uma das primas (esta, em primeiro grau) virou a objetiva da câmara para uma série de fotografias e ali estavam eles: os três irmãos, como tinham sido encontrados em Barcelona.
"É a senhora velhota que nos dava leite!", exclamou Ramón, quando viu uma foto da mulher idosa vestida de negro que era, afinal, a avó Inés. Quando a câmara deslizou para um outro conjunto de fotos, fez-se silêncio. Um casal brincava com os três irmãos numa série de fotografias, mais vívidas do que qualquer memória extraída a muito custo. Davam-lhes de comer, abraçavam-nos, faziam uma pose sorridente no interior de um Jaguar cinzento-esverdeado que, nas memórias de Ramón, seguia sempre sem condutor. O pai, com um sorriso aberto e o cabelo cor de cinza que o filho homónimo bem conhecia. A mãe, uma mulher de cabelo escuro e rosto belo, de feições esculpidas com uma nota de tristeza impagável. A estranha sensação de olhar para o passado no futuro e finalmente preencher o vácuo entre um e outro. “Onde estão agora?”, perguntaram os irmãos, rompendo por fim o silêncio. A resposta foi desconcertante: o paradeiro do casal era desconhecido desde 1983.
A incerteza permanente
As semanas seguintes foram de desenvolvimentos rápidos e vertiginosos, uns sucedendo-se aos outros depois de ultrapassada a etapa mais difícil. Entre Madrid e Sevilha, Elvira foi reunindo as peças do puzzle que o lado do pai e o lado da mãe forneciam e chegou a uma conclusão que, de certo modo, já sabia. As memórias cinemáticas de Ramón tinham a sua razão de existir, confirmou a família, que recordava a vida do jovem casal como um filme “quinqui” - um género de filmes espanhóis centrados em personagens marginalizadas, de classe trabalhadora, que se envolviam em assaltos e uso (e abuso) de estupefacientes.
Elvira encontrou uma foto do pai e do tio num jornal de 1973, a anunciar a detenção de ambos. Em 1978, os pais fugiram para Paris depois de um tiroteio com a polícia - justificando assim os vestígios da Torre Eiffel nas reminiscências das crianças e a fluência no francês - e Ramón começou a aperfeiçoar a arte da criminalidade. De pequenos assaltos, passou a fabricar dinheiro falso e a contrabandear jóias e outros bens altamente preciosos - e altamente arriscados. O casal ia tentando ter filhos e iniciar família, entretanto, mas todas as tentativas foram infrutíferas. Quando Rosario engravidou, engravidou três vezes seguidas. “Os vossos pais amavam-vos”, garantiam os familiares ouvidos pelos dois irmãos, sublinhando em particular o amor de Rosario pelos filhos que tanto lutou por ter. Sabiam-no pelos relatos da avó Inés, que ocasionalmente recebia as crianças na sua casa em Madrid. Sabiam-no pelos telefonemas e cartas constantes que mantiveram ao longo dos anos 70 e 80, antes da súbita interrupção em 1983.
Os telefones fixos deixaram de tocar, tanto em Madrid como em Sevilha, à exceção de uma voz feminina que por vezes ligava e se perdia num discurso incoerente em francês onde só eram perceptíveis os nomes Ramón e Rosario. Como ninguém do outro lado da linha falava francês, nunca foi possível saber o que queria a mulher e porque repetia os nomes dos desaparecidos, aflita, sem conseguir transmitir o resto da mensagem. A família não poderia sequer denunciar o desaparecimento do casal - conhecendo o seu histórico de violência e criminalidade, envolver a polícia poderia significar um risco maior do que deixá-los permanecer nas sombras. Sem outras alternativas, os parentes de Madrid recorreram a um adivinho e leram nas estrelas um sabor agridoce: “As crianças estão bem, mas os pais não”.
Traçar o retrato do pai e da mãe permitiu a Elvira descobrir quem e como teriam sido aquelas pessoas na rotina que outrora partilharam. O pai sorridente nas fotografias, mas de disposição instável e violenta; a mãe que, dizem, tinha também um lado negro e raramente sorria. Mas, quanto mais descobre sobre os pais, menor clareza tem sobre o provável desfecho do casal. O pai poderá ter assassinado a mãe e fugido com uma das suas muitas amantes. Poderão ter deixado as crianças num local público para as proteger e fugido juntos para um outro continente, como uma versão alternativa de Bonnie e Clyde a cavalgar em direção ao pôr do sol. Os inimigos que se começavam a acumular - especialmente na reta final, quando Ramón planeava assaltar um banco - podem também ter encurtado o caminho de Ramón e Rosario mas concedido uma segunda oportunidade às três crianças, ilibadas dos crimes dos pais. Quem sabe, um destes inimigos poderá ter sido o próprio “Diabo” Vaccarizzi, afinal encaixado neste passado ainda que não da forma que Marisa imaginava. Tudo parece igualmente provável, e tudo se encerra na mesma realidade imutável: um casal desaparecido e três crianças abandonadas.
Elvira prefere imaginar que ainda estão algures no mundo, ambos com 70 e alguns anos. A imaginação, se nada mais, pelo menos serve como bálsamo apaziguador de uma realidade fragmentada. Em março de 2023, prepara-se para visitar L’Escala com o irmão Ramón e ver se aquela cidade costeira, tão abundante em histórias de gangsters e crimes tirados de um filme noir, tem algo de novo para lhes contar. Mas sabe que, sejam quais forem os segredos do passado, em nada mudam quem é Elvira, a mulher esguia de 42 anos bem distante da menina com os caracóis de ouro e a cara contorcida num pranto. As respostas mais prementes que procurava, obteve-as. “Era mais velha ou mais nova do que pensava? Até coisas tão ridículas como isto: qual é o meu signo do Zodíaco?”
Foi atribuída a cada irmão uma data de nascimento estimada pelo Santo com nome equivalente. Decidiu-se então que Elvira nascera no dia de Santa Elvira, a 25 de janeiro de 1982. De certificado de nascimento na mão, sabe agora que nasceu em Paris a 29 de dezembro de 1981. É mais um pedaço de tempo roubado da sua vida, mas não o encara desse modo. Romantiza até aquele passado nos carros desportivos a voar pelas estradas, com uma amálgama de paisagens europeias a atropelarem-se no remoinho da memória e a Torre Eiffel sempre presente. Agora que sabem que nasceram em Paris, os três irmãos planeiam fazer uma tatuagem com a mesma silhueta meia desvanecida, mas sempre presente, da torre francesa. A ligação hereditária pouco contribuiu para quem é hoje, repete Elvira, mas deu-lhe a mais bela constante da sua vida: os dois irmãos.