Uma menina de 9 anos luta contra a vergonha do período, dizendo aos adultos à mesa de jantar que “mais de metade da população mundial sangra”. Dois homens lutam pelo coração de uma mulher, gabando-se de quantos livros leram da ícone feminista japonesa Chizuko Ueno. Um perseguidor que segue uma jovem até casa é confrontado e afugentado por uma vizinha.
Estas cenas do mais recente êxito de bilheteira da China, "A História Dela", tornaram-se o tema de conversa das redes sociais chinesas, onde a comédia é saudada por muitas espectadoras como a resposta do país à “Barbie”.
Os comentários no Douban, o maior sítio de crítica cinematográfica da China, onde o filme tem uma classificação de 9,1 em 10, elogiam a celebração sem pudor da feminilidade “desperta” e o comentário social ousado sobre a China moderna - tudo isto com um humor de fazer rir e chorar por mais.
Desde o seu lançamento, a 22 de novembro, “A História Dela” arrecadou mais de 680 milhões de yuan (perto de 90 milhões de euros), segundo a plataforma de venda de bilhetes Maoyan, tornando-se o filme de maior bilheteira da China continental durante 17 dias consecutivos.
Mas a sua crítica espirituosa às normas de género também ofendeu alguns homens nas redes sociais chinesas, que o acusaram de provocar “antagonismo de género” - uma expressão frequentemente utilizada pelos meios de comunicação social estatais para policiar o discurso feminista online que as autoridades consideram ter “ultrapassado os limites”.
Ao longo da última década, o Partido Comunista da China - cuja liderança é inteiramente masculina - tem reprimido o ativismo feminista. Em 2015, cinco feministas foram detidas por planearem um protesto contra o assédio sexual e, há apenas alguns meses, uma jornalista que promoveu o movimento #MeToo foi condenada a cinco anos de prisão sob a acusação de subversão.
Embora ainda sejam permitidos trabalhos culturais menos carregados de política em torno do empoderamento das mulheres, como a comédia feminista, estes são fortemente regulamentados e frequentemente alvo de poderosas forças não oficiais - homens conservadores.
Críticas entusiasmadas
Escrito e realizado por Shao Yihui, “A História Dela” gira em torno da vida e das relações de três mulheres em Xangai: uma mãe solteira independente, a sua filha em idade escolar, de inteligência apurada, e a sua nova vizinha - uma jovem cantora e auto-descrita “sóbria tola romântica”.
He Zeyu, uma editora de livros de 29 anos de Pequim, já viu o filme três vezes.
“Estou sempre a rever o filme porque me vejo nele”, diz à CNN. Da última vez, levou os pais, que “gostam muito do filme”, continua. “Queria partilhar as duas horas com os meus amigos e pais para sentir a mesma ligação, como se eu também estivesse a ser vista e abraçada”.
Para Xu, de 20 anos, uma espectadora ocasional que apenas indicou o apelido por razões de privacidade, o facto de a comédia se centrar na “emancipação feminina”, em vez de “repetir as lutas das mulheres”, é o que a torna “única”.
Para além da sua narrativa fresca e liderada por mulheres, os espectadores chineses também elogiam a crítica social “subtil mas corajosa” do filme sobre questões como o confinamento na era da pandemia, o declínio do jornalismo - e o que consideram ser a cultura tóxica de relatar os delitos dos outros.
Numa cena, um professor critica um aluno por ter denunciado um colega. Noutra, a jovem cantora mostra a sua reserva de bens essenciais para o dia a dia, enquanto uma grande estátua de elefante se ergue na sala de estar - um aceno silencioso ao confinamento de Xangai devido à covid-19, que durou semanas em 2022.
“Não posso deixar de aplaudir estas expressões inteligentes”,refere Wang Rui, um homem de 48 anos que levou recentemente a sua mulher para ver o filme pela segunda vez.
“Ri-me muito durante a primeira sessão, mas na segunda vez, percebi o que estava escondido por detrás do humor e dei por mim a chorar várias vezes”.
Um comentador online - que se identificou como homossexual - ficou impressionado com a forma como o realizador fez passar elementos LGBTQ+ pelos censores chineses, notando cenas fugazes de bandeiras arco-íris e um casal gay a namoriscar em segundo plano.
“É raro ver tanto cuidado e reconhecimento das minorias sexuais num filme convencional, apresentado de uma forma suficientemente subtil para passar pela censura”, lê-se na sua publicação no Weibo, o equivalente chinês da rede social X, que acumulou milhares de gostos.
“Este é um filme que tem tudo que ver com o género, mas vai para além disso”, lê-se numa crítica popular no Douban, com mais de oito mil gostos.
Homens em conflito
Apesar de “A História Dela” ter sido maioritariamente celebrado pelas mulheres chinesas, nem todos os homens são fãs.
Em Pequim, Xu viu um casal a discutir sobre o filme quando saíam do cinema - o que ela chamou de “o verdadeiro ovo de Páscoa do filme”, referindo-se a uma expressão norte-americana que identifica uma curiosidade.
Falando alto o suficiente para “ser ouvido em todo o cinema”, o homem disse à mulher que a “estrutura narrativa do filme é uma merda”, com o que a mulher discordou, e depois foi-se embora, recorda Xu.
Anedotas semelhantes de homens a protestar durante as projeções ou a abandonar as salas de cinema circularam nas redes sociais chinesas - espelhando a reação conservadora observada durante as projeções de “Barbie” nos Estados Unidos no ano passado.
“Muitos enredos deste filme já glorificaram a maioria dos homens na vida... Parece-me objetivo e gentil o suficiente”, escreveu Xu no Xiaohongshu, uma plataforma chinesa semelhante ao Instagram. A publicação recebeu mais de mil gostos.
No entanto, mesmo as piadas “suaves” parecem ser demasiado para muitos.
Os utilizadores do Hupu, um fórum online chinês centrado nos homens, deram a “A História Dela” uma classificação média de 4,8 em 10. Acusaram o filme de “rebaixar e de fazer uma reversão da realidade sobre os homens” e rejeitaram quaisquer comentários positivos sobre o filme - que já são poucos e raros na plataforma.
Não se sabe ao certo quantos comentadores do Hupu viram o filme, mas Wang e um homem mais novo, Chen Xiaohe, disseram ambos no Xiaohongshu que gostaram da projeção.
“Certos grupos de homens tendem a colocar-se no lado oposto ao das mulheres e a opor-se a tudo o que as mulheres gostam”. Wang, que assistiu duas vezes, diz à CNN. “É isso que é tóxico”, acrescenta, citando uma frase do filme.
Mas o filme “não deve ser rotulado como feminista”, reitera.
Chen, 29 anos, “adora o filme leve e bem-humorado”, com personagens femininas “de carne e osso” e “totalmente desenvolvidas”, publicou no Xiaohongshu. Outros utilizadores masculinos da plataforma, dominada por mulheres, discordaram.
Para Chen, não é surpreendente ver a onda de comentários negativos sobre a Hupu.
“Há muito tempo que existe uma grande diferença na perceção do género no nosso país”, continua, em declarações à CNN. “Os homens rejeitam instintivamente as ideias feministas, o que torna difícil para eles apreciar este filme.”
Tolerância decrescente às vozes femininas
Esta não é a primeira vez que os homens chineses na Internet se irritam com o facto de as mulheres gozarem com eles.
Yang Li, uma comediante de stand-up conhecida pelas suas piadas afiadas sobre homens, é um alvo frequente. Entre todas as suas piadas, a “como é que ele tem um aspeto tão mediano, mas ainda assim tão confiante” é a que mais atinge estes homens.
No mês passado, os que ainda se ressentem da piada de quatro anos lançaram um boicote nacional contra o gigante chinês do comércio eletrónico JD por ter apresentado Yang numa transmissão promocional ao vivo.
Cedendo à reação online, a empresa emitiu mais tarde um pedido de desculpas e cortou relações com Yang. No entanto, os comentadores masculinos não se ficaram por aqui. Em vez disso, tentaram até pintar a comediante feminina como uma “força estrangeira maléfica”, depois de os meios de comunicação ocidentais se terem aproveitado da história e terem demonstrado o seu apoio à desigualdade de género.
“Atualmente, o movimento feminista na China só é visível na frente cultural”, afirma Lü Pin, uma proeminente feminista chinesa radicada em Nova Iorque. “E isto é exatamente um sinal do quanto o movimento encolheu”.
No entanto, mesmo as vozes já restritas, como os filmes feministas e os espectáculos de stand-up, são frequentemente atacadas por homens conservadores.
“O feminismo na China ainda é muito fraco e não conseguiu muito. Mas estes homens pensam que os seus interesses (futuros) já estão ameaçados”, diz Lü. “Veem [a ascensão do feminismo] como um sinal perigoso”.
Shao, o argumentista e realizador de “Her Story”, disse num vídeo promocional que “o feminismo liberta não só as mulheres, mas também os homens”.
“Acredito que, se investigarem as causas profundas, vão perceber que precisam de se unir às mulheres”, afirmou.