Michelle Obama discursou na segunda noite da Convenção Nacional Democrata, seguida do marido. O casal piscou o olho à classe média e não poupou nas críticas a Trump
Viveu-se “uma espécie de Benfica-Porto” na noite de terça-feira do outro lado do Oceano Atlântico. Barack e Michelle Obama pisaram o palco da Convenção Nacional Democrata, nos EUA, fizeram algo “inesquecível” e conseguiram o que há uns meses não se adivinhava: “legitimaram” Kamala Harris.
“Foi um momento extraordinário de política e de impacto numa convenção que acaba por cair na rotina”, avalia o professor José Azeredo Lopes. São “raras as vezes”, diz, “em que se viu um discurso tão mobilizador” - nem Joe Biden, que teve “um belo discurso”, chegou perto.
Para o também comentador da CNN Portugal, Barack Obama “esteve muito bem”, até porque “não sabe falar mal”. Mas a grande “surpresa” - ou, melhor, a “confirmação” - foi Michelle Obama. “Fez um discurso notável pela seriedade e pela demonstração de que se pode ser eficaz politicamente sem se baixar à calúnia. Falou para as pessoas, tem um dom extraordinário de falar ao coração das pessoas sem precisar de dizer que é negra”, analisa.
O casal não só correspondeu ao que era esperado, como esteve, portanto, “acima” do que seria expectável - a começar pelo facto de terem falado um depois do outro. Com “um piscar de olhos fortíssimo”, os Obamas conseguiram dar a Kamala Harris algo que lhe faltava: a “conexão” com a classe média. Michelle Obama aludiu aos valores da classe média que partilhava com Kamala Harris, ao dizer que nunca “beneficiariam da ação afirmativa da riqueza geracional”, criando um grande contraste com Donald Trump.
E tal não passou despercebido a Azeredo Lopes. “São duas pessoas com uma educação muito boa que subiram com mérito e trazem pela primeira vez para o discurso político a oposição entre o milionário mimado que teve sempre tudo em contraponto com pessoas como Kamala, como eles, como os americanos em geral, que lutam por tudo o que têm e que passam a vida a pagar os empréstimos estudantis”, explica.
De acordo com o comentador da CNN Portugal, estes são “valores fundamentais” na sociedade norte-americana. Separar o “mimado” Donald Trump “dos que têm mérito” é, afirma, “um enorme contributo político” para a campanha eleitoral da nova candidata do partido Democrata à Casa Branca.
Do uso da expressão "weird" (estranho, na tradução para português) ao "vizinho com o soprador de folhas”, foram constantes os ataques a Donald Trump, que "voltou a ficar na mira do Partido Democrata". Por exemplo, segundo Azeredo Lopes, o casal “varreu de uma penada a negritude de Kamala” - uma das armas mais utilizadas pelo candidato republicano nos ataques contra a adversária.
"Em bom rigor, quando olhamos para o discurso, há um discurso de multirracialidade, que pretende mostrar que essa América existe, mostrando que Trump é o antagonista da América", concorda o especialista em Ciência Política Jorge Botelho Moniz, admitindo não saber se o "muito foco" dado ao adversário é "necessariamente uma coisa boa".
Mas terá faltado alguma coisa nestes dois “inesquecíveis” discursos? “Era impossível”, reconhece Azeredo Lopes. Até a passagem da pasta de Michelle Obama para o marido é digna de nota para o comentador. “Quando ela diz que passa a palavra ao ‘amor da minha vida’ não parece inocente. Estabelecem contraste com a vida pessoal de Donald Trump, que é mais agitada com os casos recentes. Dizem que são um casal fantástico, que se ama - é um piscar de olho muito interessante”, analisa.
Já Jorge Botelho Moniz não é tão positivo. O especialista em Ciência Política garante que Michelle Obama dá "um trunfo extra" a Kamala Harris e "um elã" que a candidata ainda não tinha ao demonstrar publicamente o seu apoio, quando a antiga primeira-dama norte-americana era possivelmente "a mais popular para uma batalha política contra Trump". “A minha miúda Kamala Harris está mais do que preparada para este momento. É uma das pessoas mais qualificadas de sempre a candidatar-se ao cargo de presidente e é uma das mais dignas", disse Michelle Obama.
No entanto, o comentador acredita que o casal Obama colocou “muito foco um discurso de multirracialidade e na questão das minorias”, deixando “para segundo plano a economia, a América rural e a América branca” - temas que diz serem também de grande relevância para os americanos.
O balanço dos dois comentadores é, ainda assim, positivo. "O Partido Democrata não tem mais oradores desta qualidade. Foi uma aposta muito forte neste segundo dia da Convenção", sublinha Azeredo Lopes. E Kamala Harris só beneficiou. "Não sei se são o casal mais popular dos EUA, mas não devem estar muito longe disso. Por osmose, quase há passagem de popularidade para Kamala, mesmo tendo sido dos últimos representantes a apoiá-la, o que pode ter sido por alguma dúvida ou para pôr a cereja em cima do bolo", diz Jorge Botelho Moniz.
Tudo isto leva a um “quase milagre”. “Há uma galvanização dos democratas, é quase um milagre. Há um mês estavam a contar mortos e feridos e a contar que a batalha estava perdida, com Joe Biden em derrocada com as gafes e o terrível debate de 27 de junho. Quando Biden designa drasticamente Kamala, toda a gente duvidou. É uma grande surpresa”, garante Azeredo Lopes.
O comentador da CNN Portugal considera assim que o Partido Democrata está “a seguir uma estratégia muito, muito boa”: “Poupar o mais possível Kamala nestas lutas e a deixar outros fazê-lo com classe”. Enquanto Michelle e Barack Obama o faziam, Kamala estava a dezenas de quilómetros num comício, no Wisconsin, que, tal como a Convenção Nacional Democrata, contou com uma vasta audiência numa “outra demonstração de força”.
E ao milagre dos democratas junta-se a legitimação de Kamala Harris, não obstante o tempo que Barack Obama demorou a pronunciar o seu apoio à nova candidata à Casa Branca, quando a mesma foi indicada por Joe Biden. “Depois de uma hesitação demasiado longa de Obama, que demorou mais de uma semana a felicitar Kamala, legitima Kamala. É a última legitimação e já está perdoado esse pecadinho”, garante Azeredo Lopes.